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1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

3.3. TUDO “COMOVEDORAMENTE ALSO”

3.3.4 Diálogos intertextuais

Jean-Marie Floch, em estudo sobre a obra do pintor alemão Immendorf, refere-se àquele artista como um bricoleur, termo com que Claude Levi Straus (1976) designa aquele

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que se expressa com os meios de que dispõe: “o bricoleur coleciona portanto um certo número de elementos de significação, isto é, de signos, para, a partir deles, realizar um conjunto estruturado”.(FLOCH, 2004, p. 248). No estudo em questão, Floch aponta a recorrência de elementos colhidos da História alemã, assim como de obras e artistas contemporâneos, nos quadros de Immendorf, o que permitiria dar à sua técnica a designação de bricolage: “Ele se contenta, se é que se pode dizer assim, com as figuras e motivos que encontrou em sua história pessoal e que conservou, com a ideia de que isto sempre pode servir”. (FLOCH, 2004 p.248 – grifo do autor)

Sobre as recorrências de um mesmo elemento em mais de uma obra de Carvalho, voltaremos a discorrer no último capítulo desta tese. Por enquanto, parece-nos oportuno mencionar o estudo de Floch e o conceito de bricolagem, de Levi Strauss, para embasar as referências intertextuais presentes em HDM, que, conforme já mencionou Pucci Jr., são muitas, e vão do cinema de Glauber Rocha ao de Fellini; do teatro de Brecht ao mambembe;

da pintura renascentista à modernista. A obra do autor, de maneira geral, é resultado de recortes recolhidos de seus mergulhos na história da arte, do teatro e da filmografia mundial, além, é claro, da cultura popular universal e brasileira. Assim, na impossibilidade de apontar todas elas, citaremos três exemplos: a pintura renascentista, a modernista e o cinema de Ingmar Bergman.

Figura 30 – A Madona, de

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No primeiro caso, um bom exemplo – embora não único – é a construção da cena em que a mãe de Maria aparece numa visão do pai desta, e na qual é evidente uma referência à imagem da madona, recorrente durante o Renascimento69 e reproduzida sistematicamente até os dias de hoje. Embora possivelmente apenas um público restrito consiga relacionar tal cena ao estilo pictórico renascentista, a imagem da mãe com o filho nu ao colo, com um manto na cabeça é imediatamente ligada à imagem bíblica de Maria com seu filho Jesus. Independentemente de saber a qual estilo ou época essa imagem é devida, o público a reconhece

graças ao culto religioso e à reprodutibilidade técnica da obra de arte, que Benjamim (1992) discutiu e à qual nos referimos no primeiro capítulo desta tese.

Quanto ao modernismo, convém lembrar que a obra de Cândido Portinari foi, assumidamente, uma das principais fontes das

quais o diretor se alimentou para compor o universo de Maria. Em texto de apresentação

divulgado em site da Rede Globo consta que “Toda a equipe da minissérie participou de um seminário sobre a obra de Cândido Portinari (...). A iniciativa de Luiz Fernando Carvalho pretendia familiarizar todos os envolvidos no projeto da minissérie com o universo do qual ela tratava.” 70. Visitando a obra de Portinari, não é difícil identificar a recriação de muitas telas do pintor modernista nas cenas de Hoje é dia de Maria, como o Menina com tranças e laços, recriado na personagem Maria, ou os retirantes, na cena em que Maria encontra os retirantes da seca.

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A figura 30 refere-se à tela Madona Mackintosh ou Madona da torre (1509-1511), e é apenas uma das inúmeras madonas representadas pelo pintor italiano Rafael. Óleo sobre madeira transferido para tela78,8 x 64,2 cm. Disponível em: www.pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_pinturas_de_Rafael . Acesso em 08/09/2013

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Disponível em http://memoriaglobo.globo.com

Figura 32 – Os retirantes, de Portinari

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A citação ao primeiro quadro na concepção física de Maria é tão direta que é a fotografia da tela de Portinari que ilustra a capa do encarte que acompanha o DVD da minissérie. Quanto aos retirantes, Portinari não tem uma, mas uma série de obras retratando o tema, em diferentes suportes e técnicas, como o desenho a lápis grafite, o desenho a lápis de cor, a gravura, o óleo sobre madeira ou sobre tela. Comparando o painel a óleo71, – que é o que mais se aproxima da cena audiovisual – com a sequência dos retirantes, na minissérie, percebe-se que as duas, embora apresentem muitos pontos de disjunção, mantêm, por outro lado, elementos convergentes, que possibilitam ler a cena da minissérie como uma paráfrase da pintura. Em ambas, predominam as cores preta e branca, com a diferença de que em Portinari predominam os tons escuros, que conferem maior dramaticidade ao quadro; enquanto Carvalho inverte essa proporção.

Tais escolhas se explicam pelo fato de que o pintor faz um retrato do Brasil pelo olhar maduro do homem que está por trás do artista, enquanto Carvalho dirige a minissérie com o filtro do olhar da infância, que tem o poder de suavizar as situações mais dramáticas. Ao contrário da referência à figura da Madona, o diálogo com a pintura de Portinari, se não chegar a ser compreendido pelo telespectador, em nada interfere na leitura da cena. A diferença é que o sentido que no primeiro caso é acionado pela familiaridade com a reprodução de uma obra de arte, aqui é acionado pelo conhecimento de representações fotográficas ou artísticas de uma dada realidade. Seja como for, ao recobrir o drama dos retirantes com o olhar da criança, a figurativização dos retirantes revela-se surpreendente em relação ao quadro que o originou, sem deixar de dialogar com ele.

Já a referência ao cinema de Bergman, especificamente ao filme O sétimo selo (1956) é também direta na cena que antecede a morte do pai de Maria. Embora seja uma obra bem mais atual em relação à pintura renascentista, a imagem emprestada do filme é, certamente, menos familiar, dada a pouca (ou nenhuma) visibilidade que tem o cinema desse diretor junto ao grande público. Entretanto, como já mencionado por Pucci Jr. (2010), ainda que algumas intertextualidades presentes na obra não sejam apreendidas pelo telespectador, é possível compreendê-las no contexto da obra.

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Figura 34 – Imagem da morte em O sétimo selo, disponível em http://elavestiaveludoazul.blogspot.com

Na cena em questão, o Pai, já velho e cansado, depara-se com uma espécie de alter ego, que entre outras coisas, lhe diz: “Constrói teu barco da morte, da morte bela e profunda. Constrói teu barco para a viagem rumo ao esquecimento.”72 A caracterização do ator Osmar Prado, o mesmo que interpreta o pai, aliada ao clima onírico, ao contexto da obra e ao texto, não deixa dúvida de que se trata de uma representação – ou mensageiro – da morte. A semelhança com o personagem – a morte – de Bergman não passará despercebida para quem já viu O sétimo selo, mas a compreensão da cena absolutamente não depende disso.

Dessa forma, as referências a obras de arte, a apropriação de elementos estilísticos de épocas ou autores, ou, ainda, a utilização de linguagens de outras manifestações artísticas, aparecem na obra de maneira a enriquecê-la sem, no entanto, torná-la hermética. E isso se dá graças ao mecanismo da bricolagem, que mobiliza diversas referências para submetê-las a uma nova unidade de sentido e uma forma própria de expressão.

Numa conclusão ainda preliminar sobre a análise dessa primeira jornada de HDM, pode-se adiantar que os vários aspectos citados aqui imprimem à obra um ritmo ora acelerado, ora desacelerado, garantindo a conjunção entre enunciador e enunciatário, na medida em que emociona e comunica ao mesmo tempo. Tal característica permite aproximar o estudo aqui empreendido aos conceitos apresentado por Zilberberg no artigo Louvando o acontecimento (2007)73. Para chegar ao conceito de acontecimento, o semioticista relaciona-o à linguagem estética, em oposição, por exemplo, aos fatos históricos:

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Fala do personagem. Episódio 7.

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Zilberberg parte da estrutura mínima: “dizer é dizer alguma coisa a alguém”, em que “dizer” corresponde à enunciação, “alguma coisa” corresponde ao predicado e “a alguém”, à comunicação. Lembrando que no que se refere às modalidades veridictórias, a comunicação é privilegiada em relação ao predicado, o teórico francês

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o fato é o enfraquecimento das valências paroxísticas de andamento e tonicidade que são as marcas do acontecimento. Em outras palavras, o acontecimento é o correlato hiperbólico do fato, do mesmo modo que o fato se inscreve como diminutivo do acontecimento. (...) É como se a transição, ou seja, o “caminho” que liga o fato ao acontecimento se apresentasse como uma divisão da carga tímica (no fato) que, no acontecimento, está concentrada. (ZILBERBERG, 2007, p.16)

Ainda de acordo com o teórico, enquanto o acontecimento suscita a surpresa, no momento mesmo em que o sujeito entra em contato com o objeto e é absorvido por ele,no fato o objeto é que é absorvido pelo sujeito. O estudo empreendido por Zilberberg parte, assim, dos modos de eficiência, existência e de junção, considerando a noção apresentada pelo dicionário francês Micro-Robert, segundo o qual modo é a forma particular pela qual se apresenta um fato.

O modo de eficiência, que Zilberberg assume ter tomado de empréstimo aCassirer74 está ligado à asserção ou maneira pela qual uma grandeza se instala num campo de presença.

Se esse processo for efetuado a pedido, segundo o desejo do sujeito, nesse caso teremos a modalidade do conseguir. Se a grandeza se instala sem nenhuma espera, denegando ex abrupto as antecipações da razão, os cálculos minuciosos do sujeito, teremos a modalidade do sobrevir. Do ponto de vista paradigmático, o modo de eficiência é estruturado pela distinção do conseguir e do sobrevir. (ZILBERBERG, 2007, p. 18)

Para melhor entendimento das diferenças entre conseguir e sobrevir, Zilberberg relaciona o primeiro ao estilo clássico, cuja simplicidade e aproximação com a natureza tornam o conteúdo previsível e facilmente acessível ao sujeito; ao passo que o segundo modo de existência, ele exemplifica com o estilo barroco, que com seus contrastes e excessos, provocam surpresa ou, seguindo o pensamento de Descartes, admiração: “Assim que o primeiro encontro de algum objeto nos surpreende e que o julgamos novo e muito diferente do que conhecíamos até então ou do que supúnhamos que deveria ser, esse fato nos faz admirá-lo e ficamos espantados.” (DESCARTES, 1991, pp. 108-9) O que se segue a esse encontro, diz Zilberberg, é o sujeito de estado, “em ‘admiração’ cartesiana (...)depois, dali em diante, marcado pelo ‘que lhe aconteceu’”(ZILBERBERG, 2007, p.22)

propõe-se a lançar um novo olhar sobre essa grandeza : “O que merece, o que vale a pena ser dito?” (ZILBERBERG, 2007, p. 14)

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Em estudo posterior, intitulado Sur la dualité de La poètique,75 Zilberberg volta ao tema para dizer que o acontecimento, ao contrário dos fatos cotidianos, é dotado de força sensorial e raridade (o admirável, o bizarro, o fortuito e o insólito), condicionadas pelas subcategorias de andamento e tonicidade. Exemplificando: o Barroco é acelerado porque causa surpresa, incômodo, e é instantâneo porque o estranhamento que suscita faz com que ele escape ao sujeito; ao passo que o Renascimento é desacelerado pela uniformidade, é belo e harmonioso, portanto, durável.

No capítulo seguinte, voltaremos a refletir sobre a linguagem barroca e o conceito de acontecimento, para analisar a minissérie A Pedra do Reino. Antes disso, porém, faremos uma breve leitura sobre a segunda jornada de Hoje é dia de Maria.

Figura 36 – Cena inicial da segunda jornada