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1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

3.3. TUDO “COMOVEDORAMENTE ALSO”

3.3.2. Bonecos, cordas e excessos no palco de Hoje é dia de

Sylvia Nemer, em artigo intitulado Espaço e teatralidade na minissérie “Hoje é dia de Maria” (2009) chama a atenção para a “intenção de teatro”65 presente na obra. Tal intenção é clara e se manifesta em vários aspectos da composição estética de HDM, tais como o cenário, o figurino, a interpretação e entonação dos atores, a caracterização de personagens e animais em cena e, claro, a própria origem da narrativa, já que a oralidade se baseia, fundamentalmente, na gestualidade e na voz, matéria prima do teatro. Todos esses empréstimos da dramaturgia são antecipados na cena inicial da abertura, conforme analisamos no capítulo II, cuja imagem é uma cortina se abrindo para um palco de bonecos. Dessa maneira, conforme reflete Nemer, a referência às narrativas tradicionais não é uma mera transposição de uma linguagem para outra:

Trata-se, ao contrário, da busca de uma linguagem de articulação entre expressões orais e audiovisuais, feita através da música, do gestual, do uso de marionetes, do figurino, da maquiagem, da iluminação, do cenário e do recurso a acervos técnicos próprios ao meio audiovisual com destaque para a técnica de montagem de atrações características do cinema das origens. (NEMER, 2009, p. 131)

Ao mencionar o cinema das origens, a autora refere-se aos filmes de Georges Méliès, cuja linguagem estava ainda muito próxima do teatro, pelo mesmo motivo que a televisão também recorreu à interpretação teatral em suas primeiras produções ficcionais. Ou seja, na ausência de uma linguagem teledramatúrgica, particularizada, buscou-se apoio no tipo de encenação até então disponível, que era o teatro. Desnecessário dizer que, por mais próxima que a linguagem de Méliès ou dos primeiros diretores de televisão tivesse com a dos palcos, não se tratava de uma expressão teatral pura, pois uma vez submetida a novas técnicas, tal expressão iniciava, no meio audiovisual, o seu caminho rumo a uma linguagem nova.

Assim, na estética de HDM, ao mesmo tempo em que Carvalho volta ao cinema e à TV de origem, ele, por outro lado, vale-se de toda a evolução que a linguagem cinematográfica sofreu ao longo de mais de um século, seja pelas experimentações, seja pelo avanço tecnológico, para criar uma obra que, ao mesmo tempo em que dialoga com as origens da cinematografia, também aponta para uma nova possibilidade no meio televisual. “Há, portanto, uma proposta clara de articulação entre forma e conteúdo, entre a estética da minissérie e o seu enredo” (NEMER, 2009, p. 130).

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O termo entre aspas é de Paul Zunthor, em Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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Um bom exemplo disso é a montagem das sequências narrativas, permeadas pela presença de Maria, que confere unidade a uma estrutura fragmentada, característica do teatro de atrações66, também comum na cinematografia de Méliès, em que, conforme lembra Nemer, “cada atração visa captar, por meio da surpresa, do susto, do riso, a atenção máxima do espectador” (NEMER, 2009, p.130)

Dessa maneira, o espaço cênico onde as sequências se desenvolvem é mesmo um palco – a estrutura circular, palco da terceira edição do Rock in Rio – onde os cenários são substituídos à medida que a narrativa avança pelo espaço dramático67. Como no teatro, na minissérie não há uma preocupação em fazer parecer verdade: a imaginação é acionada para além do caráter ficcional da narrativa, chegando ao plano de expressão, para se revelar nas marcas deixadas pela criação humana, como, por exemplo, pequenas lâmpadas coloridas penduradas no alto, simulando

estrelas no céu68, nas cabaças de que são feitos os patos com que Maria brinca, nos cavalos/bonecos movidos a rodinhas utilizados pelos cangaceiros, ou nas cordas com as quais se imprime movimento ao pássaro que acompanha Maria em sua jornada.

O que se percebe é que ao mesmo tempo em que, no plano do conteúdo, a obra vale-se da magia dos contos de encantamento, buscando uma aproximação com questões reais, produzindo, assim, uma atualização temática; no plano da expressão, o que se propõe é aproximar as técnicas audiovisuais – movimento de câmera, montagem e edição – e teatrais, a fim de criar o maior distanciamento possível da imitação naturalista. Dessa forma, mesmo o impacto causado, por exemplo, pela tentativa de abuso sexual de um pai contra uma criança,

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Espetáculo constituído de várias atrações curtas.

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Nemer (2009), citando Pavis, 2007 e Gardies (1993), diferencia espaço cênico, dramático e fílmico, da seguinte maneira: o primeiro é o local de realização das filmagens; o segundo, aquele que se refere ao enredo e aos recursos de representação utilizados para desenvolvê-lo. Já o espaço fílmico é o que resulta dasoperações de câmera , processos de edição, etc.

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Cena de Maria no bosque, quando ela encontra a noite.

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acaba sendo minimizado pela presença de um protetor figurativizado por um pássaro/marionete.

A simples presença de um pássaro como ajudante da heroína não causaria surpresa, dada a aproximação que o conteúdo da minissérie mantém com os contos maravilhosos – tipo de narrativa que não apenas aceita, como requer a presença do insólito – e cuja proposta, a esta altura, já está clara no contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário. A surpresa está no fato de que o pássaro não é representado por uma ave natural, mas por um boneco de lata, manipulado por cordas, enquanto pai e filha são interpretados por atores de carne e osso. Essa interação atores/objetos, recorrentes no teatro devido às limitações que o meio impõe ao processo de criação, não é comum na televisão, onde os recursos técnicos disponíveis permitiriam a utilização de um pássaro real, por exemplo.

É o contraste, portanto, a mistura de elementos de linguagens de manifestação incomuns na TV – neste caso, a do teatro de bonecos – com outros do universo natural do qual a televisão busca uma aproximação maior, o que dá o tom na linguagem estética utilizada na construção da obra. Com isso, ao final do primeiro episódio já está claro que o recurso à inverossimilhança predominará em toda a obra. E a fantasia que tal recurso suscita no telespectador, nesse episódio de apresentação da narrativa, é fundamental para “arredar a tristeza” que ronda a protagonista ao longo dos quase 50 minutos de programa, pois apesar da sucessão de experiências dramáticas vividas pela heroína, momentos agradáveis são vivenciados, graças ao hibridismo de linguagens de que se constitui o plano de expressão, aliada à promessa latente de mudança de rumo no destino de Maria, conforme vimos no item anterior.

Na cena em que Maria brinca com patos, por exemplo, logo no início do capítulo, não obstante ser aquela praticamente a única em que a menina parece realmente feliz no primeiro episódio, é também a primeira em que há uma interação ator/bonecos. Até então tivemos uma cena de desenho ilustrando a voz da narradora, e a interpretação de atores em um cenário artesanal, o que já apontava para o tom lúdico da obra. A inserção de bonecos/personagens parece ser o elemento que faltava para confundir – ou surpreender

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– o telespectador naquele início de programa. Essa cena, assim, nos parece essencialmente importante para inserir o público na proposta geral da obra e prepará-lo para as sequências dramáticas que virão, sem lhe tirar a expectativa de entretenimento.

De fato, a teatralidade, que é algo inerente na narrativa principal, terá o seu auge a partir do 5º episódio, quando Maria encontra e se junta aos irmãos Rosa e Quirino, donos de uma companhia de teatro mambembe. Da mesma maneira que a obra apresenta narrativas menores dentro de uma narrativa principal, a performance do grupo de saltimbancos se constitui de pequenas intervenções teatrais e circenses dentro de uma encenação maior. Responsável por alguns dos momentos mais belos e divertidos da minissérie, o teatro, assim, reafirma a sua força de persuasão e entretenimento, especialmente quando em versões populares, como é o caso em Hoje é dia de Maria.