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1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

3.4. NO SONHO DO GIGANTE

3.4.1 A dona da voz

Há que se destacar, aliás, que a voz da narradora, nessa narrativa, tem presença mais constante e incisiva do que na primeira jornada, não se limitando a abrir e fechar os episódios, como naquela, mas interferindo sistematicamente na história, a ponto de interagir com os personagens em alguns momentos e dizer-lhes o que fazer. É o que acontece, por exemplo, quando dois bêbados comentam, em frente a um cartaz que anuncia Maria como a mais nova atração do teatro, sobre a sorte da menina em ter ficado famosa e rica da noite para o dia, momento em que se ouve a voz da narradora, indagando “E a infância, onde é que fica? Tira o nome de Maria da boca que dessa estória louca ocês num sabe um á! Vão andá! Pega a trilha! Minha réiva num é pouca, co’essa história à revelia!”84

Pela expressão corporal dos atores, vê-se que a voz é ouvida pelos bêbados, mas estes, confusos, ignoram-na e seguem cambaleantes. Noutra sequência, no entanto, já no segundo episódio, quando Maria encontra Dom Chico Chicote (Rodrigo Santoro) pela primeira vez, e este se apresenta como um servidor dos sonhos, do amor e da poesia, novamente a narradora intervém, travando com Chico o seguinte diálogo:

NARRADORA:

E vamo parando nesse tanto, que tô saindo do meu canto pra vê mió essa estória...

DOM CHICO CHICOTE Quem vem lá?

NARRADORA

Ara, quem?!!! Sô eu, seu Dom Chico Chicote! Aquela que tá contando a estória d’ocês, ué!85

Dentre as classificações de pontos de vista apontadas por Norman Friedman (2002), a narradora de HDM se aproxima mais do tipo “onisciente intruso”. Entretanto, Friedman, ao falar sobre as intromissões e generalizações do narrador, referia-se a digressões que muitas vezes mais afastam do que aproximam o narrador (e consequentemente, o leitor) da história

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Fala da narradora, episódio 2.

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narrada, propriamente86. Embora também afirme que o autor intruso possua “um ponto de vista ilimitado – portanto, difícil de controlar” (FRIEDMAN, 2002, p. 173), ele não previu que essa flexibilidade pudesse chegar ao extremo de colocar o narrador em contato com os personagens, como uma espécie de interlocutor extradiegético.

Dessa maneira, ao que parece, HDM inaugura uma nova possibilidade de narrador intruso, que pode ser explicado justamente pelos empréstimos que a narrativa faz da literatura oral, onde aquele que conta – e muitas vezes, (re)inventa – uma história oralmente, se concede o direito de intervir, de dirigir-se aos personagens com conselhos e repreensões, até porque muitas vezes o ouvinte – especialmente sendo uma criança – é feito protagonista da ação narrada, como é o caso da minissérie. A proximidade que a narradora demonstra ter com os personagens e a liberdade que ela assume para interferir nas ações daqueles será esclarecida ao final da trama, quando a dona da voz é figurativizada na avó que conta histórias para a neta doente, que é a própria Maria.

Diferentemente da primeira jornada, que apresenta uma superposição de isotopias, o que faz com que o discurso inteiro possa ser lido de, pelo menos, duas maneiras diferentes, nessa segunda jornada, embora a pluri-isotopia também se faça presente, há claramente a articulação de duas isotopias independentes, apontando para duas narrativas paralelas, o que fica evidente a partir da cena em que a narradora oral se torna personagem. A presentificação da narradora, portanto, e de duas caracterizações da mesma Maria, indicam, ora uma narrativa em que a menina é ouvinte, e que chamaremos aqui de “realidade ficcional”, ora outra narrativa, que é um “faz de conta”, fruto do sonho da menina, uma representação ficcional daquilo que vai sendo narrado e que é, portanto, uma ficção dentro da ficção, da qual Maria é protagonista.

Vale a pena ressaltar, ainda, que as figuras dessa narrativa paralela87 são elementos que apontam um tempo e um espaço mais modernos, onde há luz elétrica e chuveiro, por

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Segundo explica Arnaldo Franco Júnior, “O narrador que utiliza esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os fatos narrados, elaborando pausas frequentes (digressões) para a apresentação de sua opinião e de seu posicionamento, seja em relação à história e aos elementos que a constituem, seja em relação aos comportamentos e/ou valores sociais aos quais a história narrada faz referência e com os quais dialoga.” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 42).

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Estamos considerando como paralela a narrativa que se revela ao final da trama; e principal, a história de “faz de conta”, uma vez que esta apresenta-se mais completa e complexa do que aquela.

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exemplo. Da mesma maneira a composição do espaço – urbano, talvez88 – e dos personagens, se aproxima do naturalismo que esteve ausente até então, na minissérie, constituindo a isotopia da “realidade ficcional”, em oposição ao caráter de “faz de conta”, este conferido principalmente pela teatralidade predominante na linguagem utilizada na construção da narrativa principal.

Vale a pena ressaltar, ainda, que nessa segunda jornada a fantasia inerente aos contos populares que inspirou a maioria das sequências, na primeira parte de HDM, é substituída pela predominância de questões da realidade, mesmo na narrativa de faz de conta. Porém, na mesma proporção em que os dramas sociais quebravam o tom fantástico na primeira jornada, nesta, é a fantasia que quebra o ritmo por vezes excessivamente realista do enredo. Essa inversão de valores é introduzida no diálogo entre Maria e a menina Carvoeira, ainda dentro da barriga (lixão) do Gigante, pouco antes desta presentear aquela com o binóculo mágico:

CARVOEIRA

Nesse lugar fica tudo o que a cidade joga fora, até as pessoa. MARIA

Entonce, nóis tamo mermo no meio do pesadelo do Gigante? CARVOEIRA

Não, Maria, tamo é no meio da realidade do mundo.89

Seguindo essa proposta, a família que Maria vê ceando, pela janela de uma casa, quando ela própria está perambulando pelas ruas, sem teto e sem comida, foi composta em desenho animado com bonecos feitos de massinha; a bailarina que, por não conseguir mais dançar é jogada na rua por Cartola, leva o nome de Boneca, porque realmente é uma90, assim como são de brinquedo as armas usadas pelos soldados, nas sequências de guerra. A guerra, por sua vez, não é fruto de atos humanos, mas consequência do despertar do gigante e da ganância do demônio. Dessa maneira, a fantasia contribui para suavizar as sucessivas situações dramáticas que a protagonista encontra nesse passeio pela cidade grande.

Voltando ao encadeamento dos acontecimentos, no segundo capítulo Maria faz sucesso como bailarina, mas ao descobrir a verdadeira identidade de Cartola, ela foge e volta para as ruas, onde conhece Dom Chico Chicote a quem a narradora confere o papel de

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Embora o roteiro da obra indique que a casa de Maria, na narrativa paralela, esteja localizada na periferia de uma cidade, pelo audiovisual é impossível afirmar isso, já que o conforto da eletricidade, atualmente, estende-se também a grande parte das moradias rurais. Dessa maneira, a localização espacial dessa narrativa fica por conta da leitura de cada um.

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Episódio 1.

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A Boneca, neste caso, é interpretada pela atriz Inês Peixoto. Sobre isso falaremos um pouco mais no próximo item.

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proteger Maria. Essa figura, uma clara alusão ao Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, assume, assim, a função de adjuvante da heroína. É, no entanto, uma relação de troca, pois a menina também desempenha o papel de adjuvante para o desajeitado Chico Chicote, já que a partir desse encontro, torna-se impossível separar o percurso narrativo de um e outro.

Chico Chicote, ao mesmo tempo em que auxilia a menina, é também sujeito das boas ações que ela desempenhará daí por diante, para merecer encontrar o caminho de volta para casa. Além disso, se, na trajetória de Maria, há uma ênfase no resgate da infância, é através de Chico Chicote que o tema do amor romântico – objeto da busca da heroína na primeira jornada – é retomado, por meio de seu encontro com a espanhola Alonsa, batizada por Chico de Rosicler (Letícia Sabatela). Os três, por seu turno, pregam e praticam o amor universal, um dos grandes temas dessa narrativa, e também competência para vencer o mal.

Dessa maneira, se Chico Chicote garante comida e companhia para Maria e encoraja-a a continuar acreditando no ser humano, Maria defende o amigo em um julgamento e é quem o salva quando, depois de perder Alonsa/Rosicler na guerra, ele se joga no mar do esquecimento. Depois disso, mesmo sem se lembrar da menina, já que perdeu toda a memória, Chico Chicote toma-a como guia. Ao reafirmarem a amizade que os une, a força da emoção dos dois acaba por provocar a queda do gigante e abrir uma brecha num muro, por onde se insinua a paisagem campestre do início da jornada. Maria finalmente encontra a saída que a levará de volta ao campo, mas antes de sair, levando o amigo consigo, ela professa: “As contas do meu rosário são bala de artilharia, que combatem os infernos gritando: Ave-Maria.” O amor e a fé se revelam, assim, as principais armas com que Maria encontra o caminho de volta, já que o binóculo que a trouxe à cidade fora pisoteado e destruído pouco depois de Chico Chicote revelar que tal objeto serve para revelar o invisível do mundo, que é justamente o amor, pois “O mundo não é o que a gente vê. O mundo é o que ele esconde.”

Seja como for, durante o percurso dos dois amigos em solo sertanejo, quando a narrativa já caminha para o seu desfecho, novos adjuvantes surgirão e, com eles, novas competências: são os cavaleiros da aurora e do dia, que lhes concedem a realização de dois desejos, o primeiro de livre escolha, o segundo, a justiça. Com o primeiro, Maria abdica do sonho de voltar para casa e pede que Chico Chicote finalmente realize seu sonho de voar. Ele consegue, mas acaba caindo e morrendo. Apesar deste desfecho de disjunção com a vida, a sanção final para Dom Chico Chicote é de junção com o amor, pois ao morrer, ele reencontra Rosicler.

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Para Maria, a jornada não acabou ainda: após dormir por cem anos, ela acorda de novo fora do seu tempo, recupera a chavinha que estava perdida e enfrenta uma nova prova, quando encontra a guardiã da escuridão, que tenta lhe cortar o fio da vida. A narradora, nesse momento, se materializa na figura de guardiã da vida, e encoraja Maria a seguir em frente. Ela encontra apenas resquícios do que foi o sítio, e vai reconstruindo, na memória, fragmentos da primeira jornada, quando vivia com o pai, a mãe e os irmãos. Por fim encontra o ciganinho a quem entrega a chave do amor e dá adeus ao mundo encantado.

É a partir daqui que a narrativa se desdobra em duas. Maria delira, e a avó, que é a narradora em ambas e também a guardiã da vida na narrativa fantástica, segue lhe contando a história, enquanto amassa ervas com que tenta conter a febre da menina. Nos dois percursos, a avó é aquela que instiga a menina a não desistir, de voltar para casa em um, e de vencer a febre, no outro: “O remédio cura o corpo, mas o que cura a alma são as história. Acorda, Maria. Escuita! Lá longe evém vindo o terceiro cavaleiro!”91

Voltamos, então, para a narrativa principal, no momento em que aparece, ameaçador, o cavaleiro da noite, a quem Maria enfrenta e pede que lhe seja concedido o caminho de volta. Quando está prestes a atravessar a cerca que a separa do sítio, ela ainda tem um desafio a encarar: Asmodeu reaparece e ela o enfrenta com o benefício da justiça, concedido anteriormente pelo cavaleiro do dia. Atingido por flechas, Asmodeu se transforma em um inofensivo e crente peregrino, a quem Maria dá o nome de Seu Zé do Riachinho. A exemplo da primeira jornada, também nesta a grande performance de Maria para merecer seu prêmio é vencer o mal, representado por Asmodeu, no mundo encantado, e pela doença, na vida “real”. Quando Maria finalmente vence o último obstáculo e segue em direção a casa, é na narrativa paralela que ela reencontra a família, acordando do delírio provocado pela febre. Assim, o retorno de Maria, que numa narrativa significa reencontrar o sítio, na outra significa voltar à vida. E é voltando ao começo, que a minissérie termina, ao mesmo tempo em que une definitivamente as duas narrativas. A voz que narra é a mesma do início, no entanto, o plano visual constitui-se de outro tempo e outro espaço, que é o de agora da protagonista. Numa casinha simples, a menina convalescente, deitada em uma cama, ouve atenta a voz pausada da avó que lhe acaricia lentamente os cabelos, enquanto (re)inicia a história:

No cumeço de tudo, a vida era fortaleza e todo vivente era estrela na beleza do céu.(...) Vai daí que seguiu muitas eras... O mundo envelheceu, o mal

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campeou e um Gigante com dentes de fera desandou todas as coisas em desespero, descrença e confusão. Mai, em argum lugar, no fundo do humano coração, morava a inocência. E ela clamou pela renovação do mundo. Longe, num lugar ainda sem nome, era uma vez uma menina chamada Maria. 92