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1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

1.3. A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA

Muito antes do surgimento da televisão, a literatura já mantinha uma relação estreita com a ficção audiovisual, por meio do cinema. Essa relação está na base do desenvolvimento da sétima arte, conforme aponta Sérgio Lara Leite (1984), ao lembrar que as primeiras realizações do também primeiro grande criador do cinema, George Méliès, foram inspiradas em literatura: Cendrillon (Cinderela, 1900), do conto de fadas homônimo, e Le Voyage dans la lune (Viagem à lua, 1902), inspirado na obra de Júlio Verne. Ao longo desses mais de cem anos de história, “Todas as cinematografias do mundo, em maior ou menor grau, sempre se utilizaram da literatura como fonte de inspiração”. (LEITE, 1984, p. 11).

O principal motivo da frequente recorrência do cinema às obras literárias seria, na opinião de Ismail Xavier, a afinidade natural entre os gêneros narrativos, que têm em comum os elementos que os compõem: “o filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o romance têm em comum uma questão de forma que diz respeito ao modo de disposição dos acontecimentos e ações dos personagens” (XAVIER, 2003, p.64). Para Evaldo Coutinho, no entanto, tais elementos não pertencem ao cinema, que apenas os pega de empréstimo: “Da literatura o cinema tem várias influências, de logo manifestando-se a da continuidade da novela ou do romance tradicionais, o que descobre a arraigada dependência do filme em relação ao enredo, à história, que de direito pertence à literatura.” ( COUTINHO, 1989, p. 104),

Machado (1992) vai mais longe ao analisar que a aproximação do cinema com a literatura teve outro motivo, dessa vez de ordem qualitativa:

Para que o cinema deixasse de ser apenas uma diversão barata (...) e se convertesse numa próspera indústria cultural, para que ele pudesse atrair um público novo, mais sofisticado e sólido economicamente, era preciso que fosse capaz de alinhar-se às artes nobres do período: o romance e o teatro oitocentista. (MACHADO, 1992, p. 09)

A considerar o breve passeio pela história da televisão brasileira que empreendemos até aqui, é possível ajustar o argumento de Machado à aproximação da televisão com o teatro

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e a literatura. Basta lembrar que grande parte dos textos apresentados no formato de teleteatro, na primeira década da televisão, naquele momento em que se buscava uma televisão “mais cultural”, eram encenações de textos originais ou adaptados de obras dramatúrgicas e/ou literárias de Shakespeare, Pirandello, Goethe, Dostoievski, Balzac e Nelson Rodrigues, apenas para citar alguns exemplos.

Do mesmo modo, na década de 1970, período de reajuste da programação televisiva às exigências do governo, e em resposta às constantes críticas da classe intelectual, a Rede Globo promoveu uma sólida reaproximação da teledramaturgia com as produções literárias, que serviram de fonte para Casos especiais e novelas, em especial as do horário das seis da tarde. Aliás, no período compreendido entre 1975 e 1982, esse horário foi ocupado exclusivamente por adaptações de romances da literatura nacional.

Vale ressaltar que até o final daquela década, priorizaram-se obras produzidas dentro do período conhecido por Romantismo, como Helena (Machado de Assis), Senhora (José de Alencar), A moreninha (José Manuel de Macedo), e Escrava Isaura (1976). Exceções como O Feijão e o sonho (Orígenes Lessa) e A Sucessora (Carolina Nabuco), embora inseridas dentro do Modernismo, mantém alguns elementos de dramas românticos. Tais opções se explicam: o momento era de priorizar temas da realidade nacional, não necessariamente a realidade do tempo presente que, em plena ditadura militar, era tabu para a censura. Diante disso, a opção de buscar tramas centradas em outro período da história do país, atenderia aos interesses da TV sem ferir o ego do governo. Diz Tânia Pellegrini:

A frequência com que a televisão busca modelos e textos numa certa produção literária do século XIX sugere continuidades entre o romance oitocentista de cunho sentimental e voltado para públicos amplos e os programas de TV baseados nesses textos. Em ambos os casos [...] parece haver o desejo de produzir narrativas capazes de representar, por meio de dramas individuais, a história nacional, o que resulta na curiosa conjunção de história e sentimentalismo, nação e drama doméstico, invenção oitocentista muito vigente na produção ficcional dos veículos voltados para público de massa. (PELLEGRINI, 2003, p.97-98)

Tal leitura torna-se mais pertinente ao constatarmos que a partir de 1980, quando a abertura política estava em curso e a TV Globo já era campeã de audiência, foram adaptadas obras com temáticas mais atuais, como As três Marias, de Raquel de Queiroz, que aborda a independência feminina, e O homem proibido, de Nelson Rodrigues, cuja narrativa gira em torno de um triângulo amoroso. Por tudo que o nome de Nelson Rodrigues representava, na

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época, essa novela não passou isenta pela censura, mas apesar dos cortes sofridos, foi exibida até o final.

A exclusividade de se beber na fonte literária para a escrita dos roteiros das novelas das seis da tarde foi interrompida em 1984. A partir daí viram-se, com mais frequência, novelas com roteiros originais. A recorrência à literatura, no entanto, voltou a acontecer, ainda que esporadicamente, durante os últimos 30 anos. O cravo e a rosa (2000) foi livremente inspirada na peça A megera domada, de Shakespeare, e Ciranda de pedra, adaptada da obra de Lygia Fagundes Telles, teve uma versão em 1981 e outra em 2008. A recente Cordel Encantado(2011), escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid, revelou-se um mosaico de contos da literatura popular. Isso, aliado a uma estética impecável, proporcionada, em parte, pela finalização em película, constituiu-se num estrondoso sucesso de público e de crítica.

O formato inicialmente chamado de Caso Especial, por sua vez, consistia em episódios únicos, levados ao ar geralmente uma vez por semana, sendo presença constante na programação da TV Globo entre 1972 e 1979. A partir de então e até 1987, alternaram-se períodos de exibições regulares e esporádicas do formato, que em 1988 voltou com o nome de Quarta Nobre, saindo definitivamente do ar em 1995. Embora esse programa tenha sido alimentado por muitos roteiros originais, as adaptações de peças de teatro, contos e romances prevaleceram durante todo o período em que ele foi produzido. Jorge Amado, Mário de Andrade, Sérgio Porto, João Ubaldo Ribeiro, Jonh Steinbeck e João Cabral de Melo Neto são alguns dos autores cujas obras serviram de argumento para os episódios.

Na história recente da teledramaturgia global, prevalecem os roteiros originais. Obras literárias, entretanto, ainda são revisitadas, especialmente para a produção de minisséries e/ou microsséries, conforme se verá a seguir. Numa conclusão antecipada, no entanto, podemos afirmar que a literatura esteve presente em boa parte dos momentos em que a teledramaturgia, a audiência e a crítica estiveram mais afinadas.

1.3.1 Minisséries e microsséries

Na década de 1980, se por um lado a TV Globo acabou por ceder à concorrência e trazer de volta os programas populares de auditório e jornalísticos sensacionalistas, por outro lado, na esteira do sucesso alcançado com os já citados Casos Especiais e as Séries

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Brasileiras da década de 1970, ela também inaugurou um novo formato que foi e continua sendo um diferencial dentro de sua programação ficcional: a minissérie.

Narrativa ficcional disposta em capítulos, a minissérie se diferencia da novela, inicialmente, por ser menor, com uma extensão que fica em torno de25 a 40 capítulos contra os mais de 200de uma novela convencional. Em segundo lugar, e justamente por ser concisa, trata-se de uma obra fechada, o que em televisão aplica-se àquele produto que só vai ao ar depois de totalmente pronto. Dessa forma, na medida em que impossibilita interferências ocasionadas pelas preferências da audiência ou inserções de merchandising, práticas recorrentes nas novelas, esse formato proporciona maior liberdade de criação aos seus autores.

Há que se considerar, no entanto, vários outros fatores que fazem com que a minissérie seja uma exceção à estratégia da repetição de que sofre a teledramaturgia e que “se manifesta por diferentes figuras que vão da reiteração de temas, de estruturas discursivas, de mecanismos expressivos, às tramas narrativas, aos atores, cenários, ambientes.” (DUARTE, 2004, p. 58). Não obstante ser, na maioria das vezes, adaptações de obras literárias, o que já lhe garantiria alguma originalidade, esse formato costuma receber investimentos financeiros impossíveis de serem aplicados em todos os capítulos de uma novela, por exemplo, seja em virtude de sua extensão, seja pelo ritmo acelerado de produção. Esse tratamento diferenciado, aliado às demais questões já mencionadas, garantem às minisséries “nuanças estéticas sutis impossíveis de manter no ritmo industrial da novela”. (BALOGH, 2005, p. 195)

A pesquisadora destaca o cuidado dispensado à produção de uma minissérie, que vai da pesquisa à preparação dos atores, da escolha de cenários e figurinos à iluminação e fotografia, além da finalização, que de alguns anos para cá é feita sempre em película. Não se pode deixar de referir sobre o público presumido de tais programas, para o que recorremos a Balogh:

A posição das minisséries no mosaico de programação, em geral após as dez horas da noite, dirige os processos de recepção para um público mais seleto e mais exigente do que o das novelas prévias do mosaico. Todos esses fatores acentuam o esmero das minisséries em relação aos demais formatos, tanto é assim que elas constituem em geral lacrème de lacréme da programação das emissoras e, em consequência, os formatos mais disputados pelos profissionais da área. (BALOGH, 2005, p.194)

Sendo disputados pelos profissionais da área, é natural que as minisséries sejam assinadas por autores e diretores experientes e que já trazem na bagagem outros sucessos de

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público e crítica, em televisão e/ou em cinema. Aliás, a recorrente aproximação entre TV e cinema de que fala Yvana Fechine e Alexandre Figueiroa (2010) no artigo Cinema e televisão no contexto da transmediação, de modo geral,

tem ocorrido de: minissérie remontadas como filmes (o filme é uma versão mais curta da minissérie), filmes remontados como minisséries (a minissérie é uma versão maior do filme), filmes que se desdobram em seriados (o filme funciona como piloto ou inspira novos episódios) ou vice-versa. (FECHINE e FIGUEIRÔA, 2010, p.285)

Os produtos mais consistentes resultantes desse diálogo, no entanto, parecem ser as minisséries, graças mais uma vez a seu caráter de obra fechada, o que impede o desgaste que quase sempre acomete os seriados com seus múltiplos episódios. Da parceria entre minissérie e cinema, podemos destacar O auto da compadecida, dirigido por Guel Arraes e exibido primeiro na TV, em 1999, e um ano depois nas salas de cinema. Outro exemplo, desta vez fazendo o caminho inverso, é o filme Gonzaga – de pai para filho, exibidos no cinema, em 2012, e logo em seguida, no final do mesmo ano, em forma de minissérie, na TV.

Vale ressaltar que tais produtos, por possuírem geralmente apenas quatro capítulos, são versões bem menores da minissérie, motivo pelo qual vem sendo com mais frequência nomeadas como microsséries. Embora esse conceito prescinda de melhor definição, vê-se com certa frequência entrarem nessa classificação, não apenas as obras que viraram filmes ou vice-versa, como também aquelas produzidas exclusivamente para TV, exibidos em no máximo uma semana.12. Tal opção, cada vez mais recorrente, atende tanto a questões financeiras quanto à preferência do público por obras menores, em função do ritmo acelerado em que vive o homem contemporâneo: é mais fácil “segurar” o público em frente à TV, durante uma semana, do que por um ou dois meses.

A redução no número de episódios, no entanto, em nada diminui a qualidade estética das obras, podendo até mesmo aprimorá-las, conforme veremos ao longo desta tese, já que as duas obras a serem analisadas tem extensão de cinco e oito capítulos.

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Em nossa pesquisa, não encontramos uma fonte que indicasse com precisão o número limite de capítulos para que uma obra seja classificada como microssérie e a partir do qual entraria na categoria de minissérie. Ballogh (2004), ao falar sobre a diferença entre os dois formatos, cita como exemplo de microssérie O auto da

compadecida, com seus quatro capítulos, que foi a obra que marcou o início dessa proposta de programas

ficcionais seriados menores. Já Fechine e Figueiroa (2010) usam o termo minissérie para se referir aos filmes que são convertidas em programa de televisão, geralmente em apenas três capítulos. No site Memória Globo, por sua vez, encontramos a definição de micro para O auto... e minissérie para Hoje é dia de Maria e A Pedra do

Reino; ao passo que nas teses e dissertações que consultamos, alterna-se o uso de um e outro termo em

referência a estas duas obras. Diante da falta de consenso,optamos por adotar a definição de minissérie, que é a utilizada pela emissora que exibiu os programas.

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