• Nenhum resultado encontrado

A parcialidade da imprensa

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 117-126)

O campo da disputa territorial

2.2. Sentidos em disputa

2.2.1. A parcialidade da imprensa

A reverberação dos motivos discursivos indicados aqui tem sido garantida por veículos de imprensa de circulação local, regional e, mais excepcionalmente, nacional. Uma análise da cobertura midiática da disputa indica que a ampla maioria das peças jornalísticas alinhava-se com a perspectiva da frente contrária à demarcação. No contexto da disputa, a produção jornalística vinha sendo acionada inclusive por juízes, em suas decisões, para “comprovar” práticas delituosas atribuídas aos índios. Ao conceder liminar de interdito proibitório a um fazendeiro, a juíza federal em Ilhéus Karine Costa Carlos Rhem da Silva justificava que as “ameaças” de que eram acusados os Tupinambá constituíam “fato notório, conforme amplamente divulgado recentemente na imprensa escrita, falada e televisionada” (Brasil, Poder Judiciário Federal, Juízo Federal da Vara Única de Ilhéus, 2006g).

Jornais como Agora e A Região, de Itabuna, trazem reportagens claramente editorializadas – não é difícil encontrar em seus textos afirmações preconceituosas em relações aos indígenas e se notam, também, procedimentos como a veiculação de informações não checadas. Em 2010, A Região falava em “bandidos que se dizem índios” e “caboclos fantasiados de índios” (Juiz, 2010). Quando, no mesmo ano, o cacique Babau foi preso, o jornal comemorou: “Foi de alívio o clima no sul da Bahia, ao receber a notícia de que o suposto cacique Babau [...] foi preso [...]. Ele estava sendo caçado desde agosto do ano passado” (Sul, 2010, grifo meu). Emissoras de rádio eram ainda mais virulentas. Rivamar Mesquita, apresentador do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, sugeriu a realização de emboscadas contra os índios (Bahia, Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia, 2010a)26.

26 Em carta à Funai datada de 13 fev. 2008, o cacique Babau denunciou que, no dia anterior, Rivamar e dois

convidados haviam discorrido sobre o caso Tupinambá durante aproximadamente 40 minutos, durante os quais foram proferidas “ameaças de morte aos índios da aldeia” e falas discriminatórias.

83 No que diz respeito à imprensa de circulação nacional, duas reportagens tornaram-se notórias, pela profusão de erros factuais e afirmações preconceituosas: “O Lampião tupinambá”, publicada pela revista Época em 2009, e “A farra da antropologia oportunista”, publicada pela revista Veja em 2010 (Sanches, 2009 e Coutinho; Paulin; Medeiros, 2010). Na última, os índios da Serra do Padeiro são referidos como “neotupinambás” e como “os novos canibais”. Em 2010, o ex-diretor de redação da Época, Paulo Moreira Leite, publicou no portal da revista na internet uma inventiva nota afirmando que estava em elaboração, pela Funai, um decreto anulando a demarcação da TI, após o órgão haver constatado “que os estudos antropológicos que identificam as terras como sendo dos tupinambás eram grosseiramente falsificados” (Leite, 2010). O texto dizia ainda que o cacique Babau estava prestes a perder “sua carteira de identidade indígena”. Como se sabe, nada disso ocorreu – e, se houvesse ocorrido, tratar-se-ia de violações grosseiras ao ordenamento jurídico brasileiro.

Para indicar alguns mecanismos manipulatórios adotados pela imprensa, pareceu-me pertinente analisar a produção de um jornal de circulação estadual, A Tarde, de Salvador, no qual o engajamento com a frente contra a demarcação é menos caricato, mas, ainda assim, evidente. Os textos caracterizam os índios de maneira preconceituosa – por exemplo, ao falar em “mestiços que se intitulam índios tupinambás” (Oliveira; Glória, 2010). Fazendo as vezes de juiz, apresentam os indígenas como culpados de crimes ainda não julgados (Ibid.). Também veiculam as versões de fontes envolvidas no conflito como se fossem os fatos – note-se como o jornalista incorpora a narrativa policial: “Houve confronto e os agentes reagiram com balas de borracha para conter os índios” (Araújo, 2008a, grifos meus). Em um exemplo claro de seu engajamento na disputa, em maio de 2009, A Tarde publicou reportagem em destaque (texto de página inteira, em domingo, dia de maior circulação) sobre a demarcação da TI Kiriri, no nordeste da Bahia (Wanderley, 2009). Tratava-se de uma matéria “fria” – para usar o jargão jornalístico, sem “gancho” a lhe atribuir atualidade e justificar sua publicação –, que cumpria um papel claro: indicar o caso Kiriri como um exemplo a ser evitado no sul da Bahia. Intitulada “Demarcação traumática”, a matéria trazia os seguintes dizeres, em destaque: “Caso de Banzaê expõe os riscos que rondam os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no sul”.

Consideremos a produção do jornal em torno de um episódio-chave no contexto de disputa territorial – a retomada da fazenda Serra das Palmeiras, ocorrida em fevereiro de 2009 – e seus desdobramentos. “Índios da Tribo Tupinambá de Serra do Padeiro abriram fogo contra um grupo de fazendeiros locais pela posse das terras, em Buararema [...]”, lê-se em reportagem de A Tarde acerca do conflito ocorrido na fazenda nos dias 23 e 24 de fevereiro de 2010, quando agentes da PF e fazendeiros tentaram retirar os indígenas da área, retomada no

84 dia 19 do mesmo mês (Oliveira, Camila, 2010a). Diz a manchete: “Ataque de índios deixa 4 feridos e 3 desaparecidos”. Em lugar de atribuir as informações a fontes, o jornal afirma categoricamente. Já no corpo do texto, descobrimos que a informação baseia-se em relato de testemunha não identificada, que fala ainda em dois mortos. Apenas no último parágrafo o leitor é informado, a partir de declaração do delegado da Polícia Civil de Buerarema, sobre o fato de não terem sido registradas na polícia denúncias de morte ou desaparecimento. Além disso, a expressão “ataque de índios” parece-me eficaz quando se trata de evocar construções em torno da índole selvagem que seria inerente aos indígenas.

Em reportagem de 27 de fevereiro, o jornal recua – mas não retifica o que escrevera na véspera – e fala em “pelo menos um desaparecido” (Oliveira, Camila, 2010c). O “terror” vivido na mão dos índios ganha em densidade dramática: “Foi um massacre, uma carnificina. Fomos cercados pelos índios sem chance de defesa, estávamos despreparados. Nunca vi nada igual”, diz “um dos baleados”, que, conforme apurou o jornal junto a sua esposa, “teria sido atingido pelos disparos quando tentava dizer aos índios que se rendia” e sobreviveu “por milagre”. Ainda segundo a mulher, “mesmo à noite, o céu ficou claro com tantos tiros”27. E o

pior ainda estaria por vir, já que, segundo a reportagem, os índios ameaçavam “invadir” o centro de Buerarema – “ainda hoje”. Impossível não ouvir ecos, nesse episódio, do “medo” que tomou conta de Olivença em janeiro de 1936, quando correu o boato de que Marcellino “invadiria” a vila para expulsar os não-índios28. Nos dois casos, os boatos foram suficientes para mobilizar as forças policiais (Oliveira, Camila, 2010d).

Ao assumir como verdadeiras as declarações concedidas por fontes envolvidas no conflito, o jornal exime-se de apurar, a ponto de veicular informações jurídicas equivocadas, que poderiam ser facilmente verificadas. Em reportagem de 2 de março, noticiando a permanência dos índios na área retomada, A Tarde conversa com Domingos Alfredo Falcão da Costa e informa que o fazendeiro “mostrou o interdito proibitório, documento que proíbe a demarcação da terra” (Oliveira, Camila, 2010b, grifo meu). Como se sabe, “proibir demarcações” não está no escopo deste instrumento jurídico, já que o Estatuto do Índio (Lei nº6.001/73) veda a utilização de interditos possessórios contra a demarcação de TIs.

27 Para o jornal A Região, foi uma “noite infernal” (Juiz, 2010).

28 “Circulou ontem na cidade, quando se realizava o pleito municipal, uma notícia alarmante. O caboclo

Marcelino, o já bastante famoso „homem que se fez bugre‟, aproveitando o fato de estar Olivença desguarnecida, com a vinda para o Pontal [de Ilhéus] de muitos cidadãos eleitores, ameaçava assaltar aquela localidade” (Ainda, 1936, português atualizado por mim).

85

2.3. “Terra firme”: ações contra as retomadas

Não penso ser detalhe menor o fato de a PF haver denominado um conjunto de ações para o cumprimento de liminares de reintegração de posse na TI Tupinambá de Olivença de operação “Terra firme”. Como buscarei indicar nesta seção, os opositores à demarcação da TI concertaram uma estratégia ampla, combinando procedimentos diversos e envolvendo instâncias do Estado, com o intuito de perpetuar seu domínio sobre o território Tupinambá e impedir o reconhecimento dos direitos indígenas. Em face de uma brecha histórica, na qual os indígenas perceberam a existência de condições de possibilidade para romper com um longo processo de dominação, os detentores do poder, compondo com grupos e indivíduos que se consideravam ameaçados pela demarcação, não pouparam esforços na construção da reação. Protestos foram realizados e ameaças, proferidas; grande quantidade de processos judiciais contra os indígenas vem se acumulando e algumas lideranças foram presas. Paralelamente à contestação do procedimento demarcatório pela via oficial, temos notícia de intensas articulações nos bastidores do poder. Vejamos, a seguir, alguns dos principais caminhos da reação.

A frente contrária à demarcação tem protestado enviando cartas ao poder público; distribuindo panfletos, com o intuito de atrair aliados em meio à sociedade regional (“Reaja! A próxima vítima pode ser você”, dizia um panfleto da comissão contra a demarcação, sem data); e realizando manifestações públicas. Em agosto de 2009, não-índios bloquearam a BR-101, na entrada de Buerarema, em repúdio à publicação do relatório de identificação e delimitação da TI, ocorrida em 20 de abril daquele ano; em março de 2010, aproveitaram a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região, para protestar; e, em agosto de 2012, ocuparam o saguão do aeroporto de Ilhéus por 28 dias, munidos de apitos e faixas, exigindo providências do governo contra as retomadas (Oliveira, Camila, 2009; Oliveira; Glória, 2010 e Lopes, 2012). Indígenas Tupinambá e de outras etnias que passaram pelo aeroporto nesses dias denunciaram haver sofrido constrangimentos e ameaças por parte dos manifestantes.

A mobilização também vem ocorrendo longe dos holofotes. Por exemplo, com a realização de reuniões visando incidir junto a representantes do poder público – quando da conclusão desta pesquisa, sabia-se que já haviam ocorrido em torno de quatro dezenas de audiências dos fazendeiros com o MJ. Segundo um indígena, “quando eles [os opositores à demarcação] estão parados, é que estão se movimentando por outros canais”. Essa atuação assumia, em alguns casos, contornos criminosos. Como lembra Bonfim, a criminalização dos movimentos sociais ocorre também de forma extralegal, com o exercício de um poder de polícia “que não necessariamente está respaldado em uma norma penal, em uma decisão judicial ou

86 mesmo sequer em um cargo institucional” (2008: 55). Havia registros de incitação da população local, para que se armasse para enfrentar os índios, e estes vinham sofrendo ameaças de morte. “No sul da Bahia, diz-se que a cabeça de Babau valeria R$ 30 mil”, escreveu a revista Época (Sanches, 2010). Ainda que as lideranças fossem os principais alvos, outros indígenas também sofriam com ameaças de diversas ordens: da perda de um eventual emprego, como assalariado em fazenda, à morte29. A contratação de pistoleiros, documentada e denunciada pelos indígenas

reiteradamente, nunca foi apurada (Bahia, Poder Legislativo Estadual, 2010). Em diferentes pontos da TI (note-se que não na Serra do Padeiro), vários indígenas foram assassinados nos últimos anos, em circunstâncias não esclarecidas; alguns casos, senão todos, enfatizavam os Tupinambá, relacionar-se-iam à questão territorial30.

Note-se que a aprovação do relatório de identificação e delimitação da TI intensificou a movimentação dos opositores à demarcação. Em 20 de maio, um mês após sua publicação, realizou-se uma sessão especial na Câmara de Vereadores de Ilhéus, convocada pelo vereador Kruschewsky, para debater a demarcação; um dos participantes instou os demais a “reagir”, inclusive com uso de armas, se necessário, denunciaram os Tupinambá em carta enviada em junho à CNPI e a outras instâncias do poder público. Nos meses seguintes, realizaram-se outras sessões e audiências públicas, inclusive na Câmara dos Deputados. Os “trabalhadores rurais, produtores e empresários” da região, representados por Luiz Henrique Uaquim da Silva, enviaram uma carta à Funai, com cópia para o governador Jacques Wagner, ministros, deputados e vereadores aliados da frente, solicitando que o relatório fosse revisto. Em 5 de julho, a comissão contra a demarcação emitiu um documento sintetizando seus argumentos contra o relatório; como ponto central, defendiam que a demarcação seria ilegal, alegando que o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente o Decreto 1.775/96, não prevê demarcações em terras particulares. Como se sabe, a Constituição Federal considera nulos os títulos de propriedade emitidos sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Entre junho e agosto de 2009, foram apresentadas à Funai cinco manifestações solicitando a anulação do relatório de identificação, a redução da TI e mesmo a anulação do processo e seu arquivamento. Eram autores das contestações uma entidade de representação de produtores rurais de Ilhéus, uma empresa do setor hoteleiro, um grupo composto por 485 pretensos proprietários de terras, o município de Ilhéus e a prefeitura de Una. O grupo de fazendeiros e sitiantes buscou embasar seu pedido com três contralaudos (antropológico, etno-

29 Viegas e Paula indicam que, em 2003, souberam que fazendeiros haviam ameaçado demitir trabalhadores

indígenas caso tivessem notícia de que estavam “envolvidos no „movimento‟ ou „processo‟ de reivindicação de terra indígena” (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009: 109).

87 histórico e jurídico). O primeiro foi produzido por Celia Beatriz Giménez, das Faculdades do Descobrimento (Giménez, 2009). Não cabe, aqui, uma crítica pormenorizada dos argumentos expressos no documento; apenas comento, a título de exemplo, a passagem que alude diretamente aos índios da Serra do Padeiro. Para caracterizá-los, Giménez tomou como única fonte um não-índio, suposto proprietário de um imóvel na área, que, por meio de adjetivos como “claro” (para cor de pele), procurou negar a indianidade dos antepassados dos indígenas que viviam na região. A autora intitulou a seção como “A linhagem dos rezadores”, referindo- se ao pajé e a seu pai como “rezadores e curadores” conhecidos, praticantes de ritos afins ao candomblé. Concluiu com esta espantosa análise psicologizante:

Os ancestrais do cacique Babau, portanto [,] teriam maior identificação com a cultura africana que com a cultura Tupinambá, e isso, [sic] provavelmente teria levado à crise de identidade que nos últimos anos o cacique manifesta com sua

conduta agressiva, onde [sic] diversos crimes lhe são imputados [...] (grifo meu).

No relatório etno-histórico, assinado por Angelina Nobre Rolim Garcez, a identidade étnica Tupinambá também é desacreditada – a autora fala em “caldeamento de raças”, “miscigenação e aculturação”, “encontros” e “permutas genéticas”, que teriam ocorrido no marco de “processos de aproximação enteretnica [sic]” ocorridos na região (2009: 20, 21). “Qualquer um, com qualquer fenótipo, desde que se declare índio, é „índio de carteirinha‟”, ironizou (Ibid.: 61). A adesão à narrativa do pioneiro é irrestrita: “os pioneiros do cacau ousaram e cumpriram”; labutando “com a fé e a coragem”, extraíram da terra “a messe redentora” e imprimiram à região “uma feição mais civilizada” (Ibid.: 11). Note-se que, no final da década de 1970, a mesma autora desenvolvera uma cuidadosa pesquisa em história agrária dando conta da inconsistência das cadeias dominiais na região cacaueira, o que resulta em uma situação insólita, com Garcez (1977) a demonstrar que, no mais das vezes, é nebulosa a origem das propriedades que Garcez (2009) avaliza31.

Finalmente, o parecer jurídico, que tem como autor Ilmar Galvão, insiste na afirmação (equivocada, como já se indicou) de que terras pretensamente pertencentes a particulares não poderiam ser alvo de demarcação. Note-se ainda a caracterização dos Tupinambá efetuada neste último contralaudo: tratar-se ia de “escassas centenas de indígenas, na maioria mestiços e vivendo no meio urbano, perfeitamente adaptados à civilização”; “indígenas que se acham misturados aos não-índios”; e que não mais viveriam “como selvagens” (2009: 17, 18).

Paralelamente à contestação administrativa, a via de ação explorada de forma mais contundente pelo grupo contrário à demarcação era a construção de um volumoso conjunto de

88 denúncias contra os indígenas, com o intuito de caracterizá-los como movimento criminoso, em lugar de movimento político. Refletindo a esse respeito, um senhor Tupinambá observou: “Quem luta é assim mesmo: só vive com processo [judicial]. É ele lutando, e os processos entrando”. Grande parte das queixas, pelo que pude levantar, girava em torno de supostas ameaças; outras davam conta de “invasões” de fazendas e danos ao patrimônio. Nelas, os índios são descritos como visivelmente embriagados, com “arma na cintura”, com “extrema arrogância”.

Em duas ocorrências, registradas pelo administrador da fazenda Santa Rosa na quinzena posterior à retomada da área, ocorrida em maio de 2009, os indígenas foram acusados de derrubar árvores para comercialização de madeira (ocorrências nº836/09, de 18 jun. 2009 e nº911/09, de 6 jul. 2009 apud Brasil, Poder Judiciário Federal, Juízo Federal da Vara Única de Ilhéus, 2010a). As acusações nunca foram comprovadas, ao contrário das situações em que os índios denunciaram a prática de crimes ambientais por parte dos fazendeiros. Quando retomaram a fazenda Três Irmãs, em 2006, os Tupinambá encontraram grande volume de madeira derrubada, inclusive espécies como vinhático e jequitibá. Acionada, uma equipe do Ibama comprovou a denúncia feita pelos índios; segundo declarações de um fiscal à imprensa, tratava-se de crime ambiental gravíssimo, realizado em área repleta de nascentes, e seriam necessários ao menos 20 anos para que a mata se recuperasse (Conceição, 2006b)32.

As denúncias contra os índios geraram inquéritos e processos judiciais – uma “enorme quantidade” de processos, enfatiza relatório elaborado em 2011 pela Comissão Especial “Tupinambá”, composta pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). Ao menos até a conclusão desta pesquisa, não havia dados sistematizados que apontassem o total de processos contra os Tupinambá; o que havia de mais recente era um levantamento parcial, realizado por essa comissão, a partir dos nomes de duas dezenas de lideranças indígenas (as mais conhecidas), sendo a metade delas da Serra do Padeiro. Dezenas de processos foram identificados, mas não puderam ser apreciados qualitativamente, já que a comissão não teve acesso à íntegra de todos eles. Quanto às ações possessórias, localizaram 36, ressalvando que o número de demandas aumentava constantemente.

Nesta pesquisa, pude ter acesso ao conteúdo de alguns processos criminais, referidos ao longo deste capítulo, e de 18 ações possessórias. As possessórias (sendo 16 pedidos de

32 Tratava-se, ademais, de prática generalizada na região, como se detalhará no capítulo 3. Para um

exemplo, ver notícia no jornal A Tarde sobre apreensão de madeira realizada pela Polícia Rodoviária Federal na BR-101, próximo ao posto fiscal de Buerarema, em dezembro de 2004. O texto informa que em outubro de 2003 uma equipe do Ibama flagrara “mais de 50 pontos de desmatamento, somando quase 500 hectares de Mata Atlântica, em 14 municípios do sul da Bahia. A devastação atinge matas ciliares, de preservação permanente, e uma unidade de conservação” (Oliveira, Ana Cristina, 2004).

89 interdito proibitório e dois de reintegração de posse) foram movidas por 38 autores e se referiam a 63 imóveis – o que representava, uma vez mais, apenas uma parcela ínfima do total de ações movidas contra os Tupinambá. Analisando a proposição de ações possessórias contra a comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, a advogada Joice Bonfim, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), chamou a atenção para o fato de se tratar de uma “tentativa de criminalização mascarada por um instrumento cível e „legítimo‟” (2008: 59). Nesse sentido, a função exercida pelas possessórias extrapolaria a “proteção” da posse: a intenção de criminalizar o movimento quilombola podia ser percebida, inclusive, na manifestação dos fazendeiros nas peças judiciais (Ibid.: 81). No caso da Serra do Padeiro, das 18 possessórias analisadas nesta pesquisa, uma foi indeferida (um pedido de interdito proibitório).

Como enfatizou Ana Lúcia Lobato de Azevedo – em seu estudo sobre as ações judiciais no marco da disputa pelas terras tradicionalmente ocupadas pelos Potiguara, na Paraíba, na década de 1970 –, o poder Judiciário é “parte de um campo político mais amplo”, o que faz com que os processos judiciais articulem-se com os processos sociais em que estão inseridos (1998: 154). Nesse sentido, vale reiterar que as representações em torno dos Tupinambá realizadas por operadores do direito (como promotores e juízes), assim como por agentes da repressão (delegados de polícia), que se pode apreender da leitura dos processos judiciais, na maior parte das vezes coincidem com as representações efetuadas pelos opositores à demarcação da TI. Como observou Moura, as categorias pelas quais os fazendeiros se autodesignam e pelas quais designam seus antagonistas comumente são empregadas pelo próprio juiz, que, assim, comete uma violência simbólica contra o grupo subordinado, reforçando a verdade jurídica dos fazendeiros (1988: 158, 161).

Em parte das ações de interdito proibitório, os pretensos proprietários justificavam seu

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 117-126)