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Surra de bainha de facão

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 172-176)

A longa resistência Tupinambá

3.1.3. Surra de bainha de facão

No discurso dos indígenas, como se indicou no capítulo 1, a resistência de Marcellino impregnava todo o território Tupinambá, da costa às serras. Dona Nivalda Amaral de Jesus, nascida em 1932, mãe da cacique Valdelice, estava na vila de Olivença quando de uma das prisões de Marcellino (“eu vi ele sair como um porco, amarrado”, disse, em depoimento durante um seminário na Uesc, em 2011). Ela contou do padecimento de Marcellino e dos demais índios: “nós sofríamos mais, porque ele fugia, mas nós ficávamos”. Em depoimento concedido na mesma ocasião, Genilda Maria de Jesus (Karimã), que em 2011 tinha cerca de 65 anos de idade e vivia no Acuípe do Meio, recordou:

Meu pai me falava que, à noite, Marcellino nos chamava. Nós dormíamos num sote [jirau], na travessa da casa. [Quando ele chamava] Nós descíamos à beira do fogo, para comer carne moqueada, beber giroba e ficávamos ouvindo as histórias. Nesses tempos, a polícia andava nas matas. Quando encontrava um índio, um patrício, perguntava o paradeiro de Marcellino39.

O pai de Karimã, Manoel Liberato de Jesus (Duca Liberato), como indiquei no capítulo 1, foi um dos indígenas torturados pela polícia a fim de que delatassem Marcellino: teve uma ou mais unhas arrancadas por saibro e sua orelha esquerda foi pregada na parede da casa (“meu pai fez força, rasgou a orelha e saiu”). O lóbulo acabou permanentemente mutilado, como pude ver no retrato em sua carteira de filiação ao Sindicato Rural de Ilhéus. Um dos netos de Duca, o cacique Rosevaldo de Jesus Carvalho, que em 2012 vivia no Santana, contou-me que, no local de morada do avô, uma mangueira tinha cravada, até então, uma bala disparada pela volante. Segundo ele, os familiares ficaram longo tempo escondidos na mata para escapar da violência policial. “Sempre meu avô falava: „Nós temos que pegar nossas terras de volta‟.” Josefa Guedes de Araújo Filha (dona Zefa) – uma não-índia nascida em 1917, que migrou ainda jovem de Rio Real, município baiano que faz divisa com o Sergipe, para a Serra do Padeiro, onde vivia em 2012 – disse-me recordar o ruído dos tiros durante as perseguições, na área da fazenda Serra das Palmeiras, retomada em 2010:

Eu já era casada [dona Zefa casou-se aos 15 anos, portanto em 1932 ou 1933]. Nós estávamos ali [no sítio da família] e começamos a ouvir uns foguetes na serra (“pôu, pôu, pôu”). “O que é, meu deus?” Depois perguntamos aos vizinhos e a gente veio a saber: “isso é Marcellino, procurando os terrenos dele” [risos].

39 Note-se que, no tempo de Marcellino, Karimã ainda não era nascida; o pronome “nós” é por ela empregado

132 “Essa serra era dele mais o povo dele”, comentou dona Zefa, aludindo a Marcellino, que ela avistou uma vez apenas, quando ele passou diante de sua casa, junto a três companheiros, retornando a Olivença. Ele era “moreno, de bom tamanho”; os quatro trajavam roupas de mescla, estavam calçados e armados. Uma das passagens de Marcellino pela região, em setembro de 1936, foi registrada por Silva Campos:

O Caboclo Macelino, implantando o cangaço na região, tentava reproduzir ali as façanhas de Lampião. Invadira a zona do Macuco [atualmente, Buerarema], no município de Itabuna, à frente de grosso magote de bandoleiros. Perseguido por numerosa força volante, foi cercado na serra do Padeiro, onde houve cerrado tiroteio (2006: 746)40.

Também na Serra do Padeiro, conheci duas irmãs, cujo avô fora um dos companheiros de Marcellino: Rita e Maria de Lurdes dos Santos (ver imagem 3.13), que em 2012 tinham, respectivamente, cerca de 70 e 65 anos de idade. Ambas eram netas de Pedro Pinto, índio da Serra das Trempes, primo carnal de Marcellino, que aparece no retrato do “bando” tomado logo após a prisão de seus integrantes em 1936 (ver imagem 3.11). O Velho Nô, conforme seus filhos, apoiava Marcellino e, por isso, também foi perseguido. Arlindo Fulgêncio Barbosa (Bida), quando menino, “pegava para brincar cascas de arma, da briga de Marcellino”, disse-me um de seus filhos, Ednário Silva Barbosa. Segundo ele, Bida contava as histórias do tempo de Marcellino como se fossem narrativas ficcionais; para Ednário, ele buscava, com isso, proteger os filhos. A perseguição a Marcellino exerceu profundo impacto na identidade dos indígenas e em sua história subsequente. “Muitos têm medo de dizer que são índios, porque se lembram daquele tempo”, disse Karimã. “Tem muitos índios fora da aldeia, porque ficaram com medo e não querem mais voltar.”

Porém, se a perseguição a Marcellino contribuiu, em algumas situações, para o encobrimento da identidade indígena, em outras, atuou no sentido de reforçá-la. Couto (2003, 2008) e Viegas (2007), entre outros autores, já chamaram a atenção para a atualização da figura de Marcellino no processo contemporâneo de luta pela terra. Couto transcreveu, inclusive, duas loas ao indígena (uma das quais, atribuída a ele próprio), por ela coletadas em campo (2003: 53, 70). Além disso, indicou que alguns indígenas associavam Marcellino a um encantado, “„um índio velho da luta‟ cujo destino se mantém até hoje incerto, carregado de mistério, uma vez que nunca houve confirmação de sua morte física” (Ibid.: 57).

Alguns acontecimentos que se deram na Serra do Padeiro indicam que a constatação de uma injustiça, ruminada por décadas, conectava a revolta de Marcellino com as retomadas

133 de terras – neste caso, de uma forma bastante específica41. Certa noite, quando procuravam por Marcellino, os policiais invadiram um sítio habitado por três indígenas (os irmãos Flaviano, Lourenço e Rufino) e suas famílias. Para que “dessem conta do caboclo”, os irmãos foram amarrados, açoitados com varas e interrogados. Os filhos menores de Rufino foram poupados, mas os dois mais velhos, Estelina Maria Santana (ver imagem 3.12) e seu irmão Pedro, também foram amarrados e levaram uma surra de bainha de facão. Estelina foi registrada em 1914 e, portanto, poderia ter entre 14 e 22 anos de idade, aproximadamente, quando foi torturada. Em 1987, ela morreu. Essa história me foi contada por um de seus filhos e sua esposa. Para a nora de Estelina, era esse episódio que explicava por que o casal, mesmo possuindo um sítio no interior dos limites da TI, unira-se ao movimento de retomada. Outras razões concorriam para tanto, é claro (como o fato de o sítio ter se tornado pequeno para garantir a sobrevivência de filhos e netos), mas recuperar o território era para eles, sobretudo, uma obrigação moral, em memória de Estelina.

O caso de Estelina e outros também ocorridos na Serra do Padeiro compõem uma história de violência contra os indígenas que parece ter o poder de iluminar não apenas o que ensejou esta ou aquela retomada em particular, ou a participação de um ou outro indígena na luta pela demarcação, mas o quadro em que se inseria o processo de recuperação territorial como um todo42. Aqui jaziam os “cacos de panela” que uma indígena encontrou em 1971,

enquanto arrancava inhame, grávida do primeiro filho; seu sogro, na ocasião, disse-lhe que naquela área “era tudo aldeia, mas teve um massacre, mataram os índios”. Outra senhora ouvira histórias semelhantes quando menina: “Os índios que eles não queriam matar, colocavam em uma loca de pedra, tapavam de pedra, e aí morriam de fome ou morriam de sede”. “Os índios que morreram não tinham registro, não ficou nem um papel riscado”, comentou um indígena que vivia na fazenda Nova Aliança, retomada em 2009.

Certa vez, um índio trabalhou “na diária”; o patrão pagou-lhe o equivalente à limpeza de uma área de 4,5 tarefas, mas ele depois veio saber que tinha roçado 7,5 tarefas43. O cacau

dos pequenos, diziam, era constantemente roubado – e, o pior, muitas vezes por agentes do Estado. “Não podíamos secar o cacau, na barcaça, que a polícia levava”, contou uma índia. A

41 A respeito das narrativas em torno de um “passado de injustiças”, ver também Magalhães (2010, passim).

Note-se, contudo, que a antropóloga recusa a categoria analítica de “resistência”, ainda que a ela aluda, com frequência, como conceito nativo.

42 Na mesma direção, Ubinger propõe que os Tupinambá considerar-se-iam habitantes de um “território de

sangue” (2012: 13, 58). “As evidências etnográficas levantadas revelaram que para eles há uma intensa ligação entre a morte, a história e [a] memória, o que perpassa a construção simbólica do território” (Ibid.: 43).

43 “Tarefa” é uma medida agrária de larga utilização na região. Segundo meus informantes, uma tarefa

equivale a uma área de 30 x 30 braças, isto é, 66 x 66 metros, o que coincide com a tabela de medidas agrárias não decimais do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Agrário (MDA).

134 mão-de-obra das crianças indígenas era explorada nas fazendas, de maneira absolutamente informal. Em certa ocasião, alguns indígenas e eu olhávamos fotografias familiares; quando viu seu retrato menina, a primeira coisa de que se lembrou uma índia foi dos “favores” ou “ajudas” que os fazendeiros ou seus prepostos “pediam” às crianças. “Mandavam encher um saco de cacau. Era trabalho de pessoa grande que a gente fazia! [Depois, o fazendeiro] Ia à cidade e trazia um sabonete, um perfume, um „agrado‟.” Ao contar sua experiência de trabalho na fazenda São Jerônimo (retomada em 2007), quando tinha 14 anos de idade, um indígena indicou: “Como eles achavam que eu era muito trabalhador, eu ganhava o mesmo salário de um homem”. Narrando um caso de exceção, informava qual era a regra.

As relações entre patrões e trabalhadores, aliás, eram as que talvez suscitassem o maior número de relatos sobre a violência contra os indígenas, tanto em um passado mais ou menos remoto, quanto contemporaneamente. Pois, como se sabe, a exploração do trabalho indígena veio de mãos dadas com a expropriação territorial44. Quando retomaram a fazenda

Santa Rosa, em 2009, os índios encontraram um pau de braúna no qual estava amarrada uma corda, com várias pontas: seria para torturar trabalhadores, pensaram. Na mesma fazenda, depararam com um barraco de tábuas, perto da sede, onde funcionava um bar. Em seu interior, havia um caderno com nomes de funcionários, o que lhes sugeriu que vigorava um sistema de aviamento, do tipo “barracão”, em que os trabalhadores seriam envolvidos em dívidas impagáveis e, consequentemente, escravizados45. Nessa mesma fazenda, disseram-me alguns indígenas, localizava-se o túmulo de um trabalhador conhecido como “Sete Tarefas” (era muito ágil e roçava várias tarefas em curto intervalo de tempo, daí o apelido), que, em meados da década de 1960, foi morto pelo patrão; sobre sua cova, brotou um pé de seringa.

Diversos trabalhadores, na Santa Rosa e em outras fazendas (como a Triunfo, retomada também em 2009), teriam simplesmente desaparecido46. O dia de “acertar as

contas” era o mais perigoso, disse-me uma indígena. Ou o coronel colocava o dinheiro na boca da “repetição” (rifle) – e quem teria coragem de estender a mão para pegá-lo? – ou deixava um jagunço escondido à beira de algum caminho, para matar o trabalhador logo

44 “A disseminação da diária e da empreitada [referida pelos Tupinambá como “empreita”] expressam a

outra face da expulsão e invasão das terras camponesas” (Moura, 1988: 93).

45 Um indígena disse-me certa vez: aquele que estivesse interessado em ouvir histórias contemporâneas

sobre trabalho escravo na região precisaria apenas ir a “uma venda qualquer” e esperar poucos minutos até que o assunto viesse à tona.

46 “Não bastasse o evidente caráter de superexploração do trabalhador [...], os relatos, quase em tom de

segredo, na região, dão conta de que inúmeros proprietários tentavam de todas as formas eximir-se de seus deveres, havendo, inclusive, informações de entendidos na história regional sobre um cemitério clandestino, onde eram „desovados‟ contratistas [trabalhadores precários, empregados para o estabelecimento de roças de cacau, cujo vínculo com o patrão consistia em um acordo verbal] que buscavam fazer prevalecer os seus direitos” (Falcón, 2010 [1995]: 57).

135 depois que ele recebesse o pagamento. A maioria dos indígenas que viviam na Santa Rosa recusava-se terminantemente a se banhar nas três represas da fazenda, dizendo que era ali que os patrões atiravam os trabalhadores mortos; em uma delas haveria, inclusive, um peixe grande e feroz, comedor de gente, que às vezes deixava ver sua cauda descomunal.

Contava-se de uma índia que, certo dia, lavava roupas no rio das Caveiras, na fazenda Santa Rosa, quando foi surpreendida por uma cobra violenta, de características estranhas. “Eu digo que aquilo ali é algum encante. Porque matavam os índios e jogavam no rio das Caveiras, apodreciam e ficavam as caveiras ali dentro. Eu digo que é encante.” Mencionando o rio das Caveiras e o rio da Sepultura, alguns indígenas buscavam indicar como certos topônimos eram muito pouco sutis a respeito das matanças que tiveram lugar nesse território. Referindo-se a um coronel que dominou a área vizinha a seu sítio, outra indígena enfatizou que ele foi um tremendo matador de índios “bravos”: “eles flechavam e ele matava”. Escravizando e matando, iam avançando sobre as terras:

Pegavam os pobrezinhos dos índios e dos negros, punham corrente no pé, punham para limpar [a roça] de mão, arrancar pau-bravo, araçá, para pôr roça deles [dos coronéis]. Se fizessem qualquer coisa, tomavam cacete; se fugissem, ele [o coronel] matava. Tem muitas covas aí dentro da mata, onde enterravam os coitados ali, aqueles pobres. Índio fazia roça cercada, por causa de caititu. Eles [os coronéis] esbagaçavam a cerca, queimavam tudo.

Por meio dessas narrativas, os indígenas punham a descoberto o uso da violência na “construção” da fazenda. Penso na ideia de “construção” da fazenda tomando-a não como uma neutra extensão de terra, mas como entidade constituída historicamente, que determinaria posições sociais e, no limite, a vida e morte daqueles que com ela se relacionavam. Em campo, despertou-me para essa possibilidade a fala de um indígena que habitava uma das áreas retomadas. Quando me contava sobre os processos de medição de terras como mecanismo de expropriação fundiária, indicando que a seu pai lhe tomaram a roça (localizada justamente naquela retomada), observou: “veja como foram feitas essas fazendas”. Desnaturalizar as fazendas parece-me um movimento fundamental quando se trata de retomá-las.

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 172-176)