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Prisões de lideranças

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 132-148)

O campo da disputa territorial

2.2. Sentidos em disputa

2.3.2. Prisões de lideranças

Paralelamente às operações violentas empreendidas pela PF contra os indígenas, destacava-se outro expediente utilizado com o objetivo de enfraquecer o movimento de recuperação territorial: o encarceramento de indígenas, em especial de lideranças. Em alguns casos, o elo entre prisão e disputa territorial era explicitado (mesmo que de forma enviesada) nos inquéritos e mandados de prisão. Por exemplo, ao representar pela prisão da cacique Maria Valdelice de Jesus (Jamapoty), da aldeia Itapoan, ocorrida em 3 de fevereiro de 2011, a autoridade policial argumentou, mencionando a ocupação de três fazendas em outubro do ano anterior, que a indígena comandava uma “verdadeira organização criminosa fundiária” (apud Brasil, Advocacia Geral da União, 2011). Referindo-se a sua prisão, a cacique Valdelice comentou-me: “Sei que fui presa por causa do movimento”. Em outros casos, a luta pela terra, a despeito de sua evidente conexão com as prisões, era ocultada sob acusações de dano qualificado, formação de quadrilha e desacato, entre outras, como se pode observar nos casos de Givaldo Jesus da Silva e José Aelson Jesus da Silva, irmãos do cacique Babau, presos em 20 de fevereiro de 2010, um dia depois da retomada da fazenda Serra das Palmeiras (Brasil, Ministério da Justiça, Departamento de Polícia Federal, Delegacia de Polícia Federal em Ilhéus-BA, 2010a).

Decerto uma análise jurídica dos processos está fora do escopo desta pesquisa, bem como uma recuperação pormenorizada de todas as prisões de lideranças, mas cabe mencionar que, em diferentes contextos, advogados, magistrados, membros do MPF e de outros órgãos enfatizaram a fragilidade – e, em alguns casos, a nulidade – das peças que determinaram as prisões. Por exemplo, em 17 de abril de 2008, o cacique Babau foi preso, em decorrência de um decreto de prisão preventiva emitido pelo juiz da Comarca de Buerarema, em março do

98 ano anterior, que não mencionava qual delito lhe era imputado43. Em função disso, Babau foi libertado dois dias depois, beneficiado por uma decisão em segunda instância. Note-se, ainda, que o cacique foi preso em consequência de uma decisão proferida pela justiça estadual, em uma tentativa de desconectar a prisão do quadro de disputa territorial – como se sabe, questões envolvendo direitos indígenas são competência da justiça federal. Procedendo, a seguir, a uma breve reconstituição daquela que foi a segunda e mais longa prisão à qual foi submetido o cacique Babau, em 2010, espero indicar elementos presentes na repressão contra os Tupinambá – que, insisto, visa frear o processo de recuperação territorial em curso –, alguns dos quais podem ser observados no marco de outras prisões realizadas na TI44.

Em 10 de março de 2010, o cacique Babau (ver imagem 2.7) foi preso, por determinação do juiz Holliday, que em agosto do ano anterior acolhera representação da PF em Ilhéus, mais precisamente do delegado Fábio Marques, solicitando a prisão preventiva do cacique. A decisão do juiz fundamentou-se em um conjunto de inquéritos e ocorrências policiais, a maioria dos quais relacionada à “invasão” de fazendas, em que se teria cometido, entre outros crimes, esbulho possessório e associação estável para a prática de delitos, isto é, formação de quadrilha. O cacique Babau, segundo Holliday, representava um “perigo à sociedade e à própria comunidade indígena” e abalava “a credibilidade das instituições”. Para o juiz, “a extensa relação dos procedimentos que o investigado tem contra si, [sic] demonstra a contumácia na prática de violência em toda a região”. Em outra parte, Holliday já opinara que “a ação contínua e sistemática promovida pelo representado [cacique Babau] em toda a região, [sic] induz à conclusão de que lhe é comum o desafio à lei e a ordem” (Brasil, Poder Judiciário Federal, Juízo Federal da Vara Única de Ilhéus, 2008a). Para o delegado Marques, o cacique Babau seria “acentuadamente propenso à [sic] práticas criminosas”.

Em sua decisão, o magistrado contrariava manifestação do MPF, que opinara pela não decretação da prisão, por considerar ausentes os requisitos que autorizariam a prisão preventiva. Quando da expedição do mandado de prisão, o MPF sequer ofertara denúncia em relação aos crimes atribuídos aos indígenas; nesse sentido, segundo o mesmo,

43 Além disso, consta na decisão, equivocadamente, o nome Rosivaldo Ferreira de Jesus, em lugar de

Rosivaldo Ferreira da Silva.

44 Para a reconstituição, vali-me principalmente de relatos dos indígenas, reportagens na imprensa,

denúncias contidas em notas públicas, relatórios e das seguintes fontes policiais e judiciais: Brasil, Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Delegacia de Polícia Federal em Ilhéus-BA (2008a, 2009d e 2010b); Brasil, Poder Judiciário Federal, Juízo Federal da Vara Única de Ilhéus (2009); Brasil, Ministério Público Federal (2009a, 2009b, 2010b e 2010c); Brasil, Advocacia Geral da União (2010).

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Seria contraditório pretender a prisão preventiva se ainda não houve denúncia, pois, se a ação penal não foi iniciada, é porque não há indícios de autoria e materialidade suficientes.

Para a PFE-Funai/AGU, “conjecturas” e “juízos de probabilidade”, em lugar de fatos concretos, embasariam o decreto prisional. De fato, um olhar sobre o conjunto de inquéritos e ocorrências elencados pelo delegado e pelo juiz para confirmar a periculosidade do cacique Babau põe em evidência a forma como se explorou seu efeito cumulativo, a despeito de sua fragilidade individual. Vejamos um exemplo do tipo de ocorrência registrada pela PF de Ilhéus e acionada como justificativa para a prisão preventiva: em 4 de junho de 2009, Uaquim telefonou para a delegacia da PF “informando que os pequenos produtores vão realizar amanhã um manifesto [sic] público na BR 101, no município de Buerarema, e que já ficou sabendo que os índios vão tentar impedir o manifesto”. Como enfatiza Bonfim, queixas-crime como essa contribuem para o processo de criminalização de militantes, mesmo que se refiram a um crime de menor potencial ofensivo, mesmo que o juiz entenda que não houve crime porque não houve dolo, e que não haja a instauração de um inquérito policial (2008: 93).

As circunstâncias da prisão também suscitariam a reprovação veemente do MPF e da PFE-Funai/AGU, que enfatizaram sua ilegalidade. O cacique Babau foi preso em sua casa, entre 2h e 3h da manhã, o que constitui violação de domicílio, prática vedada pela Constituição Federal e justificada pelo superintendente da PF na Bahia, José Maria Fonseca, como medida “para evitar conflitos com outros índios” (Brandão, 2010). O horário da prisão, o fato de os policiais não portarem identificação e não haverem apresentado mandado de prisão, bem como o intervalo de cerca de quatro horas entre a invasão da casa do cacique e sua apresentação na delegacia da PF (cerca de quatro horas, a despeito da relativa proximidade entre os dois locais) ocasionaram grande comoção na aldeia: pensava-se que Babau fora sequestrado e, mesmo, que teria sido morto. O fato de os policiais não estarem identificados fez com que também o cacique Babau julgasse, inicialmente, ser vítima de sequestro. Houve luta corporal e o cacique se rendeu, segundo ele, quando um policial apontou uma arma para a cabeça de seu filho, Amatiri, então com três anos de idade.

No dia seguinte à prisão, conforme relato da antropóloga Sheila Brasileiro, da Procuradoria da República em Ilhéus, o cacique Babau usava algemas, apresentava hematomas em diferentes partes do corpo, dizia sentir dores e ainda não fora medicado. Perícia realizada pelo Departamento de Polícia Técnica, a pedido do MPF, confirmaria lesões corporais no rosto e nas costas do cacique. Para Fonseca, “se Babau se machucou, foi porque resistiu à prisão” (Brandão, 2010). Em cinco meses e 18 dias de cárcere, o cacique foi transferido a diferentes

100 unidades prisionais, mantido sempre em isolamento; pedidos de habeas corpus foram indeferidos; os advogados de defesa enfrentaram uma série de obstáculos para ter acesso a informações e pedidos de visita foram seguidamente negados. Às vésperas do Dia do Índio, mais precisamente em 16 de abril, o cacique Babau foi transferido da carceragem da PF em Salvador para um presídio de segurança máxima, a penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, decerto para evitar manifestações em apoio aos Tupinambá.

O inquérito policial que deu origem ao pedido de prisão preventiva do cacique Babau foi instaurado para investigar a denúncia de que ele e outros oito indígenas teriam danificado uma viatura da PF e tentado manter em cárcere privado quatro policiais, que realizavam, na Serra do Padeiro, em outubro de 2008, a operação à paisana indicada na seção anterior. Salta aos olhos, contudo, a conexão entre a prisão e a realização de ações de reintegração de posse na Serra do Padeiro. Falando mais claramente, a prisão constituiu uma tentativa de criar condições para a reintegração das áreas retomadas, partindo-se do pressuposto de que o afastamento do cacique solaparia a capacidade de resistência dos indígenas. Em outubro de 2008, o juiz Holliday já decretara a prisão preventiva do cacique Babau, em decorrência do mesmo inquérito. Na decisão, o juiz afirmava:

por sua [do cacique Babau] liderança junto ao grupo indígena dos tupinambás, poderá ocorrer um forte recrudescimento de violência por ocasião da operação e reintegração de posse que serão levadas a efeitos entre dos dias 20 e 25 de outubro do corrente ano [sic] (Brasil, Poder Judiciário Federal, Juízo Federal da Vara Única de Ilhéus, 2008a).

Cumprir o mandado de prisão contra o cacique Babau e apreender armas de fogo que estariam, supostamente, em posse dos indígenas foram as justificativas para a ação policial realizada em 23 de outubro de 2008, na Serra do Padeiro, descrita na seção anterior. Os policiais, contudo, não conseguiram localizar o cacique durante a operação e o mandado de prisão preventiva foi revogado, em segunda instância, atendendo a um pedido de habeas corpus impetrado pelo MPF – primeiro liminarmente, no dia 24 de outubro, e, um mês depois, em caráter definitivo. Como indicado, em 20 de outubro, o TRF-1 havia suspendido, por 180 dias, as liminares atendendo aos pedidos de reintegração de posse em áreas retomadas pelos Tupinambá. Como a prisão preventiva do cacique fora decretada sob a alegação de permitir a realização de ações que não mais se realizariam – a menos não nos seis meses seguintes –, o desembargador federal responsável pela liminar entendeu que o decreto do juiz Holliday perdera sua fundamentação. A desembargadora que relatou a decisão definitiva, por sua vez, foi à raiz do problema, ao argumentar que a prisão preventiva “não é a medida processual adequada para resguardar o cumprimento de provimentos judiciais em ações possessórias, sob pena de

101 desvirtuamento do instituto”. A despeito disso, porém, como já indicado, um novo decreto emitido por Holliday manteria o cacique Babau mais de cinco meses na prisão, período durante o qual violentas ações policiais seriam realizadas contra os índios da Serra do Padeiro.

Em 20 de março, dez dias depois da prisão do cacique, seu irmão Givaldo (ver imagem 2.8) foi preso, também por determinação do juiz Holliday. Em 3 de junho, foi a vez de uma irmã, Glicéria, junto a seu filho, Erúthawã, à época com dois meses de idade (ver imagem 2.9). A prisão preventiva, determinada pelo juiz Hygino, ocorreu um dia depois de Glicéria se reunir com o presidente Lula, em Brasília, ocasião em que denunciou as arbitrariedades cometidas pela PF contra seu povo – cabia a ela, principalmente, a representação dos Tupinambá da Serra do Padeiro em espaços de participação junto a diferentes instâncias governamentais. Foi presa na pista de pouso do aeroporto de Ilhéus – com base em um mandado de prisão preventiva expedido pela justiça estadual, em que não constavam os delitos de que era acusada – e transferida com seu bebê para um presídio no município de Jequié, onde permaneceu por dois meses e 13 dias. Na prisão, Glicéria desenvolveu uma ferida no seio; a negligência das autoridades carcerárias e o agravamento de seu quadro clínico fizeram com que ela tivesse de interromper a amamentação da criança45.

Um clima de apreensão tomou conta da aldeia. Diversas visitas “surpresas” foram realizadas pela polícia, sem a existência de mandados para tanto. O fogo do terreiro ao pé da Serra do Padeiro, comenta Ubinger, ficou aceso durante todo o período em que duraram os encarceramentos (2012: 84). Segundo dona Maria, foi nessa época que todos os seus pés de flores morreram, pois, com três filhos presos, imersa no ritual e nas ações de autodefesa, ela já não podia cuidá-los – quando estive em campo, o cenário no jardim era de fato desolador e ela recém-começara a replantá-lo.Os indígenas, especialmente os mais “visados” pelas forças de repressão, evitavam circular pelas cidades vizinhas, e escoar a produção agrícola tornava-se cada vez mais difícil. Como não conseguiam fazer farinha, sequer para consumo próprio, os indígenas tiveram de entregar as roças de mandioca a vizinhos não-índios, na ameia. Segundo eles, a polícia teria pressionado inclusive os compradores de cacau, para que não adquirissem o produto proveniente de áreas retomadas, pois poderiam ter problemas.

Era preciso replantar as roças perdidas; ajudar as crianças, especialmente, a superar o trauma decorrente das ações policiais; e garantir a libertação dos presos, sem ceder no que dizia

45 Ver levantamentos sobre a situação dos indígenas presos no Brasil, que indicam as condições precárias a

102 respeito às retomadas46. Uma frase dita à época por uma irmã do cacique, Magnólia, era repetida ocasionalmente para denotar o que seria uma firme decisão coletiva, compartilhada inclusive pelos indígenas encarcerados: “Se for para negociar a terra, deixem eles presos”. Os indígenas tinham convicção de que teriam de “segurar” todas as retomadas: “Se entregarmos uma retomada, não vai ficar nenhuma. Temos que aguentar todas”.

Os três irmãos foram libertados no dia 16 de agosto de 2010. Em 2012, contudo, muitos indígenas da Serra do Padeiro e de outras partes do território ainda respondiam a processos na justiça. Depois de soltos, os irmãos tiveram de ser incluídos no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos da SDH/PR, por meio de sua coordenação estadual, em decorrência das ameaças que estavam sofrendo (Bahia, 2010a; Bahia, 2010b; Bahia, 2010c). 2.4. Outra frente é possível?

Observar os papéis distintos desempenhados por camponeses e fazendeiros no contexto de disputa é fundamental para compreender o funcionamento da frente contrária à demarcação. Alguns sitiantes apontaram-me os fazendeiros como pessoas “entendidas” – diante da ausência da Funai, que não prestaria aos primeiros esclarecimentos suficientes acerca do procedimento demarcatório e de seus direitos, os fazendeiros aparecer-lhes-iam como o principal meio de obter informações sobre o processo. Além disso, os fazendeiros eram vistos por alguns como capazes, devido a sua penetração em espaços de poder, de barrar o processo em marcha. Para os grandes, como já indicado, os pequenos eram peça-chave na caracterização da demarcação como desencadeadora de um “problema social” de grandes proporções.

Aos índios não escapava a centralidade dessa composição. Por exemplo, quando a Serra do Padeiro foi visitada por representantes da CNPI, uma das providências solicitada pelos indígenas foi a presença do Ouvidor Agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na área, para esclarecer os ocupantes não-índios sobre seus direitos (Brasil, Ministério da Justiça, Comissão Nacional de Política Indigenista, 2009)47. O

pagamento das benfeitorias dos imóveis já avaliados era outra demanda dos Tupinambá – eles

46 Como indiquei, a prisão do cacique Babau foi presenciada por seu filho, à época com três anos de idade.

Quase dois anos depois, observei que, ocasionalmente, o menino fazia menção ao episódio, quando ficou, segundo ele, “encolhidinho” sobre a cama, para se proteger dos policiais. Durante o período em campo, era comum que crianças me mostrassem os lugares em que ficaram escondidas durante operações policiais. A passagem de um helicóptero sobre a aldeia sempre punha os indígenas em certo estado de alerta.

47 Lideranças de outras regiões da TI também solicitaram, em reunião com representantes do Incra

realizada em Brasília, em 2010, que a superintendência do órgão na Bahia e a Funai se articulassem, estabelecendo estratégias para informar os não-índios sobre seus direitos.

103 consideravam que essa medida contribuiria para distender os ânimos na região. Talvez por isso os indígenas da Serra do Padeiro tenham avaliado tão positivamente uma reunião com cerca de 25 pequenos produtores (em sua maioria, negros, com áreas de 10 a 40 ha), o cacique Babau e outras lideranças indígenas, ocorrida na aldeia Serra do Padeiro em 9 de junho de 2012, a pedido dos primeiros. Identificando em Babau uma liderança com capacidade de “conseguir coisas” para a região, os camponeses buscavam aconselhamento sobre como proceder para que a eletrificação rural chegasse a seus sítios. Alguns deles haviam frequentado a aldeia no passado, mas, com o início do processo demarcatório, deixaram de fazê-lo. “É um massacre em cima dos pequenos produtores”, disse um jovem indígena, depois da reunião. Ele se referia à participação dos pequenos na comissão contra a demarcação, condicionada, segundo ele, ao pagamento de uma mensalidade. A existência de tal entidade, em sua análise, seria legítima, mas que fosse um mecanismo para “fazendeiros explorarem os pequenos” é que lhe chocava. Conforme os indígenas, a passagem dos anos levara uma parcela dos camponeses a perceber tal “exploração” e, com isso, a frente contra a demarcação começava a se fender, como expressava a reunião de junho.

Em 17 de maio de 2012, como já indicado no começo deste capítulo, os indígenas retomaram parte do conjunto conhecido como Unacau. O que se passou com os meeiros que habitavam a área parece-me digno de nota quando se trata de refletir sobre a relação entre índios e camponeses. Criada em 1978, a Unacau Agrícola S.A. adquiriu diversas áreas contíguas nas imediações do rio das Caveiras, em Una, e estabeleceu sua sede e uma central de beneficiamento na fazenda São Felipe, localizada no interior da TI (ver imagem 3.19). “Tomaram muita roça aí nessa Unacau”, disse-me um indígena nascido em 1937, que exemplificou com um caso.

Quando estavam criando as roças da Unacau, mataram Zequinha da Manteiga – dizem que foram dois soldados que mataram. Esse Zequinha da Manteiga tinha uma posse encostada na Unacau; a Unacau quis comprar, ele disse que não, que ia fazer a rocinha dele, que não era para vender. Um dia, quando ele chegou, já estavam desmanchando a casa dele, tocaram fogo. Depois que mataram o homem, na mão da viúva, compraram [a terra] de graça.

Com o conjunto de fazendas constituído, a violência continuaria. Indígenas que moravam nos arredores lembravam-se dos “três maiores pistoleiros da Unacau”; em 2012, dois eles, conhecidos como Zé Bagueiro e Antonio Silvino, já haviam falecido. Rapidamente, a Unacau tornou-se uma das maiores produtoras de cacau do país. O avanço da vassoura-de-bruxa, porém, levou-a ao declínio e, a partir da década de 1990, já sob controle do grupo Gafisa, a empresa buscou nas culturas da pupunha e do café, mediante financiamento público, alternativas à

104 monocultura de cacau48. Os anos subsequentes seriam atribulados: a empresa foi autuada por crime ambiental; as fazendas, arrendadas; denunciou-se o emprego de trabalho escravo na produção de café; e, em 2006, iniciou-se o processo administrativo de desapropriação das fazendas (ou melhor, da porção das fazendas fora da TI) para a Reforma Agrária49. Em 2007, a rebatizada Unacafé Ltda. cedeu o conjunto de fazendas, com 2.064 ha de extensão, para um particular, em regime de comodato. Este, por sua vez, estabeleceu contratos de parceria agrícola com cerca de 50 famílias de camponeses, alguns dos quais antigos trabalhadores da Unacau, para que permanecessem na área, colhendo cacau em sistema de meação.

A área não fora retomada antes, diziam os indígenas, pois as famílias de meeiros não tinham “aonde ir”. Apenas com o avanço do processo de criação do assentamento vizinho à TI, e com a perspectiva de os meeiros para lá se mudarem, é que os indígenas dispuseram-se a ocupá-la. No fim de 2011, os encantados foram consultados e indicaram o mês de maio de 2012 como data para a ação. Nos dois dias que precederam a retomada, alguns indígenas dirigiram-se à área para conversar com os meeiros. Relatavam-me os diálogos, sinteticamente, nos seguintes termos: teriam dito que a área fazia parte do território Tupinambá e que, por essa razão, seria retomada; a partir de sua experiência face o Estado, analisavam que, caso os meeiros não pressionassem o Incra, os

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