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Da “mata donzela” ao “agreste”

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 176-181)

A longa resistência Tupinambá

3.1.4. Da “mata donzela” ao “agreste”

Já se indicou que a penetração dos não-índios, segundo os indígenas, fez com que a terra adoecesse. Matas que os indígenas haviam conservado por gerações, ao mesmo tempo em que retiravam seu sustento do território, desapareceram em poucos anos, convertidas em grandes plantações, pastos e fonte de madeiras nativas. A persistência, contemporaneamente, de ações

136 deletérias dos invasores contra o território foi reiteradamente denunciada pelos índios e compunha um rol de justificativas para as retomadas. “Denunciamos os crimes ambientais, mas o Ibama e o Ministério Público nos deram as costas, dizendo que isso era uma prática generalizada, que não tinha como combater”, afirmou o cacique Babau ao apresentar o caso Tupinambá ao Tribunal Popular do Judiciário, em Itabuna, em maio de 2012.

Nós respondemos: “Nós temos um jeito [para acabar com os crimes]. Nós somos os donos da terra, aquilo nos pertence e de hoje em diante eu declaro que não vai mais ter retirada ilegal de madeira, não vai mais ter caçador saindo de Itabuna para lá, com 10, 20 caçadores em cima de um carro, tudo armado de escopeta, de rifle, de carabina, para dentro da nossa mata”. E retomamos47.

Na Serra do Padeiro, era comum que o presente fosse contraposto ao período que antecedeu imediatamente as retomadas, caracterizado pela prática disseminada de crimes ambientais. Pássaros silvestres (como o curió, o sabiá-verdadeiro, o pintassilgo) eram capturados para venda e a caça ilegal era amplamente praticada. “Caça, de primeiro, não tinha mais, não. Você não via um bichinho. Vinham [caçadores de fora] com carro cheio de cachorro.” A introdução de agrotóxicos pelos fazendeiros havia impactado gravemente a fauna: “matava ingongo [centopeia], cobra, filho de passarinho...”48. As chuvas diminuíram e nascentes secaram;

alguns se lembravam inclusive de categorias de chuva que já não caíam, como a de cambueiro, que era forte e ventosa. Os instantâneos das fazendas no momento de retomada, que era possível desenhar a partir dos relatos dos indígenas, condensavam o que seriam décadas de ataques. Na Três Irmãs, por exemplo, retomada em 2006, havia “pilhas de madeira”, extraída ilegalmente para comercialização. O riacho que passava nos fundos de sua casa, disse-me uma indígena que vivia ali, estava quase seco, tamanha a quantidade de lixo que fora despejado em seu leito.

Uma das práticas mais frequentemente mencionadas pelos índios era a retirada de madeira. Em julho de 2004, o Ibama lavrou um auto de infração contra José Eleodório dos Santos, pretenso proprietário da fazenda Gruta Bahiana, onde foram apreendidas 30 pranchas de madeira nativa – a fazenda seria retomada em 2009 (Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional e Associação dos Índios Tupinambás de Serra do Padeiro, 2004b). Na

47 A degradação de áreas no interior do território tradicionalmente ocupado também foi apresentada como

justificativa para a realização de retomadas em outros contextos, como o dos Xukuru do Ororubá. A primeira área retomada pelos Xukuru, em 1990, denominada Pedra d‟Água, era um local ritual, que estava sendo destruído pelos posseiros que aí habitavam, como justificaram os indígenas em nota à imprensa, por ocasião da ação (Silva, 2008: 269-270, 277). Em fevereiro de 2013, alguns indígenas da Serra do Padeiro contaram-me que, recentemente, um fazendeiro vizinho com quem mantinham boa relação havia cortado um jequitibá. Logo que souberam do ocorrido, os indígenas avisaram-no que, se continuasse derrubando árvores nativas para venda, sua área seria retomada.

48 Cf. Lopes, o termo “ingongo” é variação de “gongolo”; em quicongo, ngongolo é centopeia, miriápode, e

137 ocasião, o Ibama puniu somente o pretenso proprietário dessa fazenda, apesar de os indígenas haverem denunciado outras três áreas nas quais ocorria extração ilegal de madeira: as fazendas Futurama (retomada em 2004), São Jerônimo (retomada em 2007) e Itaúna. No inquérito policial a respeito da retomada da Futurama, consta que o cacique Babau teria justificado a ação indicando que a fazenda era “improdutiva e praticamente desabitada, sendo ainda que as pessoas que lá labutavam apenas se dedicavam a desmatar aquela área”49. Referindo-se à

Unacau, um indígena comentou-me: “Antes de começar como Unacau, tiravam madeira. Isso aqui não foi queimado, não, foi tirada a madeira todinha para vender”.

Quando subíamos ao topo da Serra do Padeiro, dois indígenas e eu, atingimos uma área mais elevada, onde havia alguns “paus” de madeira nobre. Ambos comentaram: “se o fazendeiro tivesse visto, as árvores não estariam aqui”50. Apenas em locais de acesso mais

difícil restariam fragmentos de “mata donzela” (onde “nenhuma vara foi tirada”, onde era possível encontrar “cada pau desse tamanho”), como me disse outro índio, que vivia na fazenda São Jerônimo, retomada em 2007. “Aqui, mataram a mata”, afirmou a esposa desse índio, a respeito da São Jerônimo. “Antes tinha muita caça, os bichos passavam brincando. Mas desmataram muito e deixaram quase um agreste.” Junto a algumas áreas de mata relativamente preservada, a fazenda exibia extensões de pastos. Quando tiveram de fazer reparos na barcaça de cacau, os indígenas que ali viviam precisaram ir longe para encontrar a madeira adequada para esse fim, outrora abundante. Da mesma forma, anos antes, a palha de ouricana (que era encontrada com facilidade e utilizada para a cobertura de casas) havia se tornado escassa. A certa altura, indígenas que viviam na região do rio Cipó, contou-me um indígena do tronco dos Fulgêncio Barbosa, tinham de se deslocar à região do rio do Meio para buscá-la.

Referindo-se à retirada de madeira na Serra do Padeiro no final da década de 1960, um indígena lamentou: “aqui tinha braúna que dois homens não abraçavam, mas o povo derrubou tudo para fazer estaca”. O fato de o cacau ter sido cultivado no sul da Bahia em regime de cabruca – um sistema agroflorestal em que as árvores de menor parte são substituídas por cacaueiros, mantendo-se o dossel superior (raleado), já que o cacau necessita de sombra – fez com que a Mata

49 Os indígenas efetuaram denúncias como essa também em outras regiões da TI. Justificativa análoga foi

apresenta por uma indígena ao se referir à retomada da área que corresponde à Reserva Pataxó da Jaqueira, em Coroa Vermelha, realizada em 1997. Segundo ela, o pretenso proprietário da área “estava com máquinas desmatando a natureza, isto é, queria fazer loteamento, retirar madeiras, areia, barro etc. Foi quando percebemos o que estava acontecendo, nos reunimos e fomos ocupar o local que era nosso de direito” (Castro, 2008: 97).

50 Um cacique do Santana disse-me algo similar: “Fazendeiro olha para a mata e já vê pau e pasto”. Como

observaram E. e K. Woortmann, em sua pesquisa sobre o campesinato sergipano, o ambiente natural tem significados distintos para grandes proprietários (a mata é “algo a ser removido”) e sitiantes (é “algo a ser preservado, como parte mesmo do espaço de trabalho, ou utilizado apenas à medida das necessidades de reprodução social”) (1997: 27).

138 Atlântica fosse mais preservada aí que em outras regiões do país. Ainda assim, a retirada comercial de madeira na região é prática que remonta aos primórdios do período colonial51.

O ataque aos rios era outro tema constantemente aludido pelos índios. O desmatamento e a poluição, indicavam, provocaram modificações substanciais nos cursos d‟água que cruzavam o território e que os índios conheciam tão bem. Muitos minadores secaram. Do rio Cipó – disse um indígena que nasceu em sua margem –, “só ficou a espinha”, ainda que em dias de chuva forte ele recuperasse algo do vigor de outrora. O rio Macuco, por sua vez, foi convertido “naquele esgoto velho que tem ali na entrada da cidade”. A presença dos índios nas beiradas de rio, apontou-me um indígena, seria fundamental para evitar o desmatamento e o emprego intensivo de agrotóxicos, que, conforme me explicou, “enfraquecem a água”.

Também serve como exemplo o caso do rio de Una, que dá nome à bacia hidrográfica em que se situa a Aldeia Serra do Padeiro. Trata-se de um rio de águas pretas, repleto de corredeiras, cujo braço norte, que banha a aldeia, nasce na Serra das Lontras – mais precisamente, no pico conhecido como Serra Peito de Moça (Rocha Filho, 1976: 116). “Ele era um rio forte, nós ouvíamos o barulho dele lá de casa, nas cachoeiras”, disse-me um indígena que vivia em uma área elevada, não tão próxima ao rio. Nós dois cruzávamos por um sequeiro, quando ele apontou para algumas pedras descobertas, dizendo que, antes, ficavam submersas – conforme seus cálculos, nas últimas décadas, o nível do rio teria diminuído aproximadamente um metro. Em seguida, contudo, indicou outras pedras, estas cobertas pela água, para demonstrar que, desde que se iniciaram as retomadas, o nível do rio teria subido cerca de 20 cm. “Agora não se faz mais pasto na beira do rio, só da estrada para cima; aqui estamos deixando a capoeira.”

Alguns indígenas narravam com horror as ocasiões em que, chegando ao rio de Una ou ao ribeirão das Caveiras, depararam com a superfície coberta de peixes e crustáceos mortos. Isso se deveria à aplicação proposital de veneno na água, principalmente carrapaticidas, para “facilitar” a pesca, provocando mortandade indiscriminada (“pega peixe grande, pequeno, desovando, fêmea...”). Ao que parece, em alguns casos, a aplicação de veneno no rio não estava atrelada à pesca: visava tão somente atingir os índios. Em novembro de 2008, mulheres e crianças indígenas banhavam-se no rio de Una quando avistaram funcionários de um fazendeiro despejando no rio o conteúdo de galões brancos. Os indígenas que estavam na água passaram a apresentar vermelhidão e coceira na pele, e cerca de 30 litros de camarões e pitus mortos foram recolhidos nesse dia (Centro de Trabalho Indigenista, 2008: 11)52.

51 A esse respeito, ver, por exemplo, Mahony (1996: 80-82) e Paraiso (1998: 160). Em Silva Campos (2006)

também se encontram diversas alusões à exploração madeireira na Capitania de São Jorge dos Ilhéus.

139 Além das aplicações circunstanciais de veneno, o rio de Una recebia também o esgoto da cidade de São José da Vitória, por onde corre antes de chegar à aldeia. Em 2004, no marco de um projeto desenvolvido pela Fase, intitulado “Construindo a consciência do direito a ter direitos”, os indígenas representaram junto à justiça federal e ao Ministério Público estadual, solicitando providências em relação ao desmatamento e à poluição do rio. Um inquérito foi aberto, pela Procuradoria Federal em Ilhéus, para investigar a denúncia de desmatamento; contudo, terminou arquivado pelo MPF, em 2011. Quanto à poluição do rio de Una, Jeová Nunes de Souza (PT), prefeito do município até 2012 e pretenso proprietário de duas fazendas no interior da TI, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 2005, comprometendo- se a construir uma estação municipal de tratamento de esgotos e a adotar outras medidas necessárias. Segundo os indígenas, sua mobilização neste caso em particular valeu-lhes ameaças de morte e, até o início de 2013, a estação de tratamento não havia sido construída.

Assim como a prática de crimes ambientais no passado e no presente, a perspectiva de crimes ambientais futuros também mobilizava os indígenas. Como se sabe, o avanço da monocultura do eucalipto no extremo sul da Bahia tem impactado gravemente os Pataxó (como ocorre também com os Tupiniquim, no norte do Espírito Santo). A expansão do cultivo para o sul da Bahia deixava os Tupinambá da Serra do Padeiro em alerta. Dizia-se que antes da retomada da fazenda Santa Rosa, em 2009, estavam em curso negociações para a introdução de eucalipto na área. À época, os indígenas teriam transmitido um recado claro: “Nós falamos: „Nós não vamos deixar plantar. Toda área em que vocês entrarem [com eucalipto], nós vamos atrás, retomando‟”53. Como se verá na próxima seção, os indígenas teriam obrigação, em face dos encantados, de zelar pelo território. E o conjunto de crimes ambientais aqui indicados, além dos evidentes efeitos deletérios sobre o meio e a vida dos indígenas, repercutiria de forma avassaladora na existência das entidades que aí habitavam.

53 Já na região costeira da TI, a extração comercial de areia e argila em áreas de restinga – seja de forma

ilegal ou por parte de empresas portadoras das licenças exigidas por lei – era identificada pelos indígenas como a atividade de maior impacto ambiental. Em 2010, o jornal A Tarde flagrou lavras embargadas pelo Ibama que continuavam em atividade. “Uma das áreas exploradas fica a cerca de 3 km de Olivença, dentro da área pleiteada pelos tupinambás” (Oliveira, 2010a). Em junho de 2012, participei de uma reunião entre lideranças da TI, em que o tema foi abordado. Na ocasião, a cacique Valdelice enfatizou que os areais reduziam drasticamente o leito dos rios e destruíam as aroeiras, utilizadas medicinalmente. Outros indígenas presentes comentaram ainda que a ação dos areais inutilizava o solo, impedindo o cultivo de espécies como melancia, abóbora e mandioca, que vingam em solos arenosos. Note-se que o aquecimento da construção civil nos municípios da região vinha aumentando a demanda por areia.

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