• Nenhum resultado encontrado

Breve caracterização do território Tupinambá

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 48-56)

O processo de territorialização

1.1. Breve caracterização do território Tupinambá

Situada nos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, sul do estado da Bahia, a Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença estende-se por uma região historicamente associada à agricultura e ao turismo. Sua história vincula-se a um longo processo de territorialização da população indígena da região, que tem como marco o estabelecimento do aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, em 1680, no que hoje corresponde à sede do distrito de Olivença, localizada a cerca de 21 km da cidade de Ilhéus (ver imagem 1.6).

Respondendo às demandas indígenas, em 2004, a Funai iniciou o procedimento de identificação e delimitação da TI. Transcorridos cinco anos, o órgão indigenista aprovou o relatório circunstanciado, delimitando a TI em uma área de 47.376 ha, o que faz dela a segunda maior TI da Bahia, inferior em extensão apenas à Reserva Indígena (RI) Caramuru-Catarina Paraguaçu (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009). Quando da conclusão desta dissertação, o processo demarcatório ainda estava em curso. Àquela altura, dezenas de áreas outrora em posse de não-índios já haviam sido retomadas pelos Tupinambá.

No sentido leste-oeste, a TI prolonga-se da costa marítima à cadeia montanhosa conformada pelas serras das Trempes, do Serrote e do Padeiro, e, no sentido norte-sul, do rio Cururupe à Lagoa do Mabaço. Conformam-na paisagens geomorfológicas diversas: planícies marinhas e fluviomarinhas; tabuleiros costeiros, predominantemente arenosos; mares de morros; e serras e maciços pré-litorâneos (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2004: 15-17). A área é recoberta pela Mata Atlântica e ecossistemas associados, podendo ser identificadas florestas densas e abertas, manguezais, restingas, campos de altitude e brejos. Nas últimas décadas, contudo, a expansão das atividades agrícolas na região reduziu drasticamente a vegetação nativa, restando poucas áreas bem preservadas (Ibid.: 32, 34).

Não se dispõe de dados precisos acerca do número de habitantes indígenas da TI1. Estima-se, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde/Ministério da Saúde (Funasa/MS) para 2009, que a área seja habitada por cerca de 4.700 índios. Sabendo-se, contudo, que no

1 E tampouco dos habitantes não-indígenas, a não ser as informações veiculadas por opositores à

demarcação da TI. Esses números não são considerados aqui, por serem seguramente inflados, como tem ocorrido em diferentes contextos demarcatórios (vide o exemplo recente, entre 2012 e 2013, da extrusão da população não-indígena da TI Marãiwatsédé, no Mato Grosso).

22 marco do processo de recuperação territorial a população tem crescido substancialmente, pode-se afirmar com relativa segurança que esses números estão defasados. A população distribui-se pelas diferentes regiões da TI: Acuípe de Baixo, Acuípe de Cima, Acuípe do Meio, Águas de Olivença, Cajueiro, Campo de São Pedro, Curupitanga, Cururutinga, Gravatá, Lagoa do Mabaço, Mamão, Maruim, Pixixica, Santana, Santaninha, Sapucaieira, Serra das Trempes, Serra do Padeiro, Serra do Serrote, Serra Negra e a vila de Olivença. Conforme levantamento demográfico levado a cabo durante o processo de identificação e delimitação da TI, a maior parte da população indígena concentrava-se em duas regiões: a das serras e aquela compreendida entre Sapucaieira e Santana (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009: 223).

Nas diversas localidades que compõem a TI, referidas em alguns casos como “comunidades”, encontravam-se conjuntos de casas mais ou menos dispersas. Contudo, eram muito dinâmicas as lógicas de integração das comunidades ao território, como alertavam os antropólogos Susana de Matos Dores Viegas e Jorge Luiz de Paula, responsáveis pelo relatório de identificação e delimitação da TI (Ibid.: 40)2. Isso ficará evidente quando nos debruçarmos sobre

a constituição de aldeias, no marco do processo de recuperação territorial. O que importa enfatizar é que vínculos de parentesco e a partilha de uma identidade comum, assentada em relações específicas com o território, uniam essas localidades historicamente. A partir de 2004, em várias delas passaram a ocorrer ações de retomada de terras, como se indicará adiante. Antes disso, observaremos como se constituiu a aldeia Serra do Padeiro, sobre a qual se debruça este estudo. 1.1.1. A aldeia Serra do Padeiro

A expressão Serra do Padeiro é empregada pelos sujeitos envolvidos no processo de retomada, e também nesta dissertação, com sentidos diversos. Em um plano mais geral, fala-se em Serra do Padeiro para aludir a uma das regiões geográficas da TI, a mais interior, como já se indicou. Com solos comparativamente mais férteis que os de outras áreas da TI, a Serra do Padeiro foi ocupada a partir de fins do século XIX pela monocultura cacaueira, principal motor de expropriação territorial dos indígenas a partir de então. Predominam na região colinas e morros, cujas altitudes variam de menos de 100 m a mais de 800 m, e onde nascem diversos rios que cortam a TI3. Nos topos desses morros, serras e serrotes é que podiam ser encontradas as

2 Para uma breve discussão sobre os conceitos de “comunidade” e “aldeia” entre os Tupinambá da Serra do

Padeiro, ver Ubinger (2012: 20-21).

3 O relatório ambiental elaborado pelo GT de identificação e delimitação da TI fala, erroneamente, em

23 formações florestais mais preservadas da TI: matas primárias e secundárias em estágio avançado de regeneração, onde ocorriam árvores de grande porte, cipós e epífitas (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2004: 39). Serra do Padeiro é também o nome de uma serra ou, em acepção ainda mais específica, de um pico em particular, encimado por uma grande afloração rochosa, que se destaca na paisagem (ver imagem 1.1). Há, finalmente, uma aldeia Serra do Padeiro, conformada em 2012 por cerca de mil indígenas, segundo dados da AITSP4.

A aldeia Serra do Padeiro estende-se pelos três municípios nos quais se localiza a TI Tupinambá de Olivença5. Os centros povoados mais próximos dali são dois bairros rurais: o

primeiro, a Vila Operária (também conhecido como Sururu), é um distrito de Buerarema e dista aproximadamente 10 km da aldeia; o segundo, a Vila Brasil, é parte do município de Una e se localiza a cerca de 18 km da Serra do Padeiro. Aproximadamente 60 km, percorridos ao longo de uma estrada secundária, separam a aldeia da vila de Olivença. O pico a que me referi há pouco é considerado pelos Tupinambá da Serra do Padeiro o centro da aldeia e a “morada dos encantados”; a seus pés, localiza-se o sítio onde, em 2012, viviam o pajé e parte de sua família extensa, incluindo o cacique6. Os demais membros da aldeia viviam em pequenas posses (sítios)

situadas principalmente nas proximidades dos rios de Una (ver imagem 1.2), Cipó e do Meio, que conseguiram manter apesar do processo expropriatório, e em fazendas retomadas7. Como se detalhará adiante, na Serra do Padeiro, 22 fazendas foram ocupadas entre 2004 e 2013, formando uma espécie de semicírculo em torno do centro da aldeia. Apesar de os indígenas, ao longo da última década, terem ampliado significativamente a área que ocupavam, esta permanecia descontínua, já que persistiam no território fazendas e sítios em posse de não-índios.

da SEI, percebe-se que há picos na Serra do Padeiro que excedem 800 m de altura (ver Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2004: 17).

4 No início de 2013, alguns indígenas comentaram-me a necessidade de se produzir um novo levantamento

demográfico na aldeia, uma vez que os dados que seguiam utilizando (cerca de mil indígenas, distribuídos em 180 famílias) estariam defasados.

5 Note-se que, por vezes, a aldeia é equivocadamente referida como localizada apenas no município de

Buerarema. Boa parte dela situa-se em Una e uma pequena fração, no distrito de Japu, em Ilhéus.

6 Mais adiante, falarei sobre os “encantados” ou “caboclos”, entidades centrais na cosmologia dos

Tupinambá da Serra do Padeiro e no processo de retomada territorial. A expressão “morada dos encantados” dá título à dissertação de mestrado da antropóloga Patricia Navarro de Almeida Couto, primeiro trabalho acadêmico a se debruçar sobre a religiosidade na Serra do Padeiro (2008).

7 Viegas e Paula não consideram pertinente a utilização do termo “sítio” (conforme definição de

Woortmann, 1994) para se referir às posses mantidas pelos Tupinambá de Olivença, por se tratar, nessa acepção, de um “território de parentesco”, de uma terra que se herda (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009: 68). Penso que a categoria (tanto no sentido indicado, quanto no de “território de reciprocidade”, cf. Woortmann, 1988) aplica-se bastante bem ao contexto específico da Serra do Padeiro, como se verá ao longo desta dissertação. “Fazenda”, por sua vez, como se indicará mais claramente no capítulo 3, não designa uma simples extensão de terra, mas uma entidade constituída historicamente.

24 Observe-se ainda que, quando me refiro à aldeia Serra do Padeiro, não me restrinjo à região geográfica homônima, já que duas áreas situadas no litoral da TI, a despeito de estarem distantes mais de 60 km do centro da aldeia, eram consideradas por seus membros partes integrantes da mesma. A primeira delas, situada no extremo sul da TI, junto à Lagoa do Mabaço, era uma área titulada, comprada por volta de 1960 por Julia Bransford da Silva. Com 61 ha de extensão, a área era conhecida como Fazenda Prazerosa ou Sítio Rio do Meio, em alusão ao curso d‟água referido também como Maruim. Índia nascida em Olivença, Julia foi a segunda esposa de Francisco Ferreira da Silva (conhecido como Velho Nô), avô do pajé da aldeia Serra do Padeiro. O Velho Nô, que vivia ao pé da serra, costumava passar períodos no sítio – apreciava comer caranguejos apanhados no mangue, no encontro do rio Maruim com o mar, junto à Lagoa do Mabaço. Foi aí que faleceu, na década de 1960. Após sua morte, o sítio permaneceu desabitado, exceto durante os períodos em que alguns de seus parentes viveram ali. Em 1995, mudaram-se para lá uma filha do Velho Nô e seu cônjuge, que aqui serão referidos como dona Helena e seu Jorge, e que se dedicavam a cultivar coco, pescar no mar e coletar espécies como aratu, lambreta e caranguejo. A partir de meados da década de 2000, dona Helena e seus familiares passaram a sofrer as pressões de um hotel de luxo instalado à beira da lagoa, que tinha entre seus sócios o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga Neto. O terreno pretensamente pertencente a Fraga praticamente envolveu a Fazenda Prazerosa. “Nós ficamos no meio”, disse dona Helena, lembrando que pessoas ligadas ao hotel tentaram impedi-los de passar pela estrada e, algumas vezes, foram até sua casa, para tentar fazer com que ela e seu Jorge assinassem papéis (“queriam tomar mesmo”). “Fizeram um hotel lá para dentro – só vai gente rica –, puseram cancela, mas a gente está lá. Se vendesse, como a gente ia pegar o caranguejo, que nem nosso avô sempre fez?”, observou um bisneto do Velho Nô.

Em junho de 2012, dona Helena e seu Jorge transferiram-se para a Serra do Padeiro, com o intuito de viverem mais perto dos familiares, e outros indígenas mudaram-se para o sítio. Durante a andada do caranguejo, que ocorre de janeiro a março, indígenas da Serra do Padeiro acorriam ao sítio na Lagoa do Mabaço, refazendo ano após ano a viagem que, em seu tempo, o Velho Nô e outros “troncos velhos” empreendiam em busca do crustáceo8.

A segunda área costeira que integrava a aldeia Serra do Padeiro era a antiga fazenda Ipanema, localizada na região conhecida como Jairi, ao sul da vila de Olivença. Pretensamente pertencente aos descendentes de Lino Cardoso do Vale, já falecido, a fazenda era ocupada, em 2012, por uma família indígena extensa, composta por cerca de 20 pessoas.

25 Em 1977, uma indígena que chamaremos Lúcia mudou-se para a Ipanema com seu cônjuge, que aqui será José, contratado como administrador da fazenda, cuja principal atividade econômica consistia na extração de piaçaba nativa e na produção de coco. Sobrinha do pajé da aldeia Serra do Padeiro, dona Lúcia nasceu no Santaninha, onde a mãe se estabelecera, para trabalhar em fazenda, e ainda jovem transferiu-se para a região costeira da TI. Na Ipanema, nasceram todos os seus filhos (exceto a primeira, que chegou ali com três meses de idade) e netos. Segundo ela, após a morte de Cardoso do Vale, os herdeiros não dedicaram atenção à fazenda, e os indígenas continuaram vivendo no local, sem remuneração. Em 2012, dona Lúcia, um filho e uma nora alternavam temporadas na fazenda Ipanema e em uma área retomada na Serra do Padeiro, ao passo que outros membros da família habitavam exclusivamente na Ipanema, deslocando-se ao interior do território de quando em quando, para visitar familiares, participar de retomadas, festas e outras atividades.

Note-se que os membros da aldeia Serra do Padeiro que habitavam essas duas áreas mantinham relações cotidianas com indígenas da região costeira da TI. Não que os demais moradores da Serra do Padeiro não se encontrassem com índios de outras partes do território; como se disse, eles nutriam entre si laços históricos, atualizados no contexto de recuperação territorial. No caso dos moradores da fazenda Ipanema e do sítio na Lagoa do Mabaço, contudo, a proximidade geográfica tornava os contatos mais seguidos.

Durante um período, dona Helena e seu Jorge acolheram no sítio famílias indígenas não oriundas da Serra do Padeiro, que lhes pediram morada e se sustentavam mariscando e coletando piaçaba. Da Ipanema, partia a estrada que dava acesso à localidade do Gravatá, onde se concentravam diversas famílias indígenas, que cruzavam a fazenda seguidamente, para chegar ao mar. Ao norte, a fazenda limitava-se com a retomada Guarani Taba Atã; um dos moradores da Ipanema, inclusive, vivia alternadamente na fazenda e na retomada. Quando teve problemas com um vizinho, proprietário de uma casa de veraneio construída à beira-mar, confrontando-se com a Ipanema, uma indígena que vivia na fazenda encontrou apoio tanto de seus parentes da Serra do Padeiro, quanto de um cacique da costa.

Historicamente, a região da Serra do Padeiro – onde, como se viu, situa-se a maior parte da aldeia homônima – constituiu-se, para os Tupinambá, como lugar de refúgio, no marco da territorialização. Ao reconstituírem a história do aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, a historiadora Teresinha Marcis, Viegas e Paula recuperaram fontes confirmando que, no âmbito do projeto jesuítico, os indígenas ocupavam, de forma permanente, um território bem mais vasto que a quadrícula jesuítica e seus arredores imediatos (Marcis, 2004: 42-43; Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio,

26 2009: 34, 146, 149, 601)9. Tal ocupação, comentam Viegas e Paula, desenvolvia-se conforme “a própria dinâmica social do grupo e pela pressão do seu enfrentamento com os projetos missionário e colonial” (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009: 34). Documentos da administração colonial analisados pelos antropólogos informam que os indígenas aldeados mantinham roças afastadas da quadrícula, e aludem ainda a fugas do aldeamento para as matas. Muitas vezes ouvi indígenas da Serra do Padeiro referirem-se à resistência dos antepassados remotos “que não se deixaram aldear”. Pesquisas históricas e antropológicas, que coincidem com relatos contemporâneos dos Tupinambá, indicam que as serras eram local de morada e de passagem também de outros povos indígenas – a hipótese mais difundida é de que se tratava de povos do grupo Jê10. As características da região fariam

dela, como indiquei, uma notável zona de refúgio.

A partir de fins do século XIX, desenvolveu-se um padrão de ocupação do interior do território Tupinambá (do Santana às serras) baseado na ação “desbravadora” do “pioneiro” e nos casamentos interétnicos. O relato sobre o deslocamento do sertão às terras férteis da região cacaueira estava disseminado nas descrições dos Tupinambá da Serra do Padeiro acerca das trajetórias de seus antepassados11. O “norte” (a designar o norte do estado da Bahia

e a região que atualmente corresponde ao estado de Sergipe) era o lugar de origem por excelência dos antepassados que vieram “de fora” – a ampla maioria, do gênero masculino. Tais localidades povoavam os cantos entoados durante as “sessões de encante” na Serra do Padeiro, quando indígenas (e alguns não-índios iniciados) incorporavam encantados12. Como exemplo, transcrevo a seguir um canto associado ao encantado Boiadeiro, que alude a um dos lugares de origem mais citados; também no canto, ainda que a associação com a ida ao sul não seja explícita, como ocorria nos depoimentos orais, o norte aparece inscrito no passado:

Em Vila Nova da Rainha, eu era bem empregado. / Na fazenda possuía muita cabeça de gado. / Joguei tudo isso fora, fiquei no meio do terreiro, / somente com um pandeiro e o nome de boiadeiro13.

9 A sede do aldeamento compunha-se de uma praça quadrada, com construções em pedra (a igreja, a

residência dos padres e o colégio), e, a seu redor, casas de barro cobertas de palha, onde viviam famílias indígenas (Marcis, 2004: 41).

10 Marcis, recuperando informações da historiadora Maria Hilda Baqueiro Paraiso, chama a atenção para a

expressiva diversidade étnica encontrada pelos colonizadores na região (Ibid.: 25-26). Sobre a distribuição dos grupos linguísticos no atual estado da Bahia durante o período colonial, ver Paraiso (1994: 182-183). No capítulo 3, serão apresentadas algumas narrativas que conheci em campo acerca dos contatos mantidos na Serra do Padeiro entre os Tupinambá, os indígenas que seriam do grupo Jê e os não-índios que aportaram à região a partir de fins do século XIX.

11 “Sertão”, aqui, não tem de ver apenas com o semiárido; diz respeito ao interior, em oposição à costa.

Sobre isso, ver Camara Cascudo (1984: 710).

12 A expressão “sessões de encante” é de Couto (2008).

27 Vila Nova da Rainha é o atual município de Senhor do Bonfim, Bahia, próximo ao que foi o arraial de Canudos. Outros lugares de origem frequentemente mencionados pelos indígenas em seus depoimentos eram Tobias Barreto (hoje em Sergipe) e Caetité (na Bahia, a oeste da TI). Já quando se tratava dos ascendentes do gênero feminino, a narrativa modelar girava em torno das índias “pegas a dente de cachorro”, isto é, índias “bravas” (“minha avó era índia, índia mesmo, o cabelão dela batia por aqui”), que viviam com os seus na mata, e que teriam sido “amansadas” por não-índios, dando origem a famílias “mistas”. Encontrei, em campo, alusões a duas situações distintas. Havia os casamentos realizados no interior do território, unindo pioneiros a mulheres indígenas que já viviam na Serra do Padeiro, e havia os não-índios que, ao chegar a Olivença, teriam estabelecido relações com os indígenas, contraído casamento e então se deslocado para o interior. Note-se que, em ambos os grupos de narrativas, o casamento com a mulher indígena era apresentado como um salvo-conduto dos não-índios: era a união que lhes abria a possibilidade de se internarem sem resistência indígena no território que não era seu ou, caso já estivessem ali, de permanecerem. Além disso, como se evidenciará nos capítulos 3 e 4, os conhecimentos territoriais detidos por essas mulheres seriam fundamentais para a adaptação dos homens chegados de fora. Foi assim que, por meio de casamentos entre índias e não-índios, constituiu-se grande parte da população indígena que habita contemporaneamente a região da Serra do Padeiro14.

A ocupação da Serra do Padeiro relacionava-se, ainda, a um momento crucial da resistência à expropriação territorial dos indígenas, compreendido entre os últimos anos da década de 1920 e o fim da década de 1930, e que se tornou conhecido como “revolta do caboclo Marcellino”15. À época, despontou a figura de Marcellino José Alves, que mobilizou

14 Viegas e Paula encontraram no Santana e na Serra do Padeiro um conjunto expressivo de casos em que a

ida para a área explicava-se no contexto de casamentos interétnicos e ação desbravadora (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, 2009: 255, 266). Segundo eles, a ida das índias com seus cônjuges para o interior não fez com que rompessem de pronto seus laços com Olivença, o que só teria ocorrido após algum tempo – trajetória que, contudo, não é passível de generalização.

15 O termo “caboclo” tem sentidos diversos, dependendo do contexto de seu emprego; para uma discussão a

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 48-56)