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Uma frente contra a demarcação

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 100-105)

O campo da disputa territorial

2.1. Uma frente contra a demarcação

No contexto da demarcação, era possível identificar pretensos proprietários de áreas no interior da TI que se movimentavam intensamente para reverter o processo; de quando em quando, alguns deles davam declarações empedernidas, negando a identidade étnica e desqualificando a demanda territorial dos Tupinambá. Outros pretensos proprietários, contudo, registraram em documentos enviados ao poder público, ao longo do procedimento demarcatório, sua disposição a deixar os imóveis, mediante o recebimento das indenizações devidas. Havia não-índios contrários à demarcação para os quais a categoria “retomada” sequer existia: falavam em “invasão”, operando não a mera substituição de um termo por outro, mas, com isso, acionando um conjunto de repisados pressupostos em torno de noções de legalidade e legitimidade. Outros sujeitos contrários à demarcação, porém, reconheciam a existência de algo chamado “retomada” – mesmo que definido de forma distinta às caracterizações efetuadas pelos indígenas. Parece-me, assim, que uma complexa frente contra a demarcação foi engendrada no também complexo campo de disputa que se formou na região ao longo da última década.

A oposição à demarcação da TI teve o poder de aglutinar em uma mesma coligação heterogênea e temporária – por isso, penso em uma frente – setores da sociedade regional que, muitas vezes, não guardavam entre si qualquer outro ponto de conexão além de um inimigo em comum, qual seja a TI Tupinambá de Olivença. Compreender o funcionamento dessa frente, notadamente os modos como ela se relacionava à realização de retomadas – aquilo que mais diretamente nos interessa nesta pesquisa – passa, portanto, por reconhecer a diversidade de setores que a compunham, identificando, minimamente, as posições expressas por cada um deles; e por considerar que a frente transformou-se ao longo do tempo, isto é, grupos moveram-se no tabuleiro, e alianças foram feitas e desfeitas nos últimos nove anos (tomando como marco inicial a primeira retomada de terras, realizada em 2004, e como marco final, o ano de 2013).

Com o intuito de indicar, ao menos palidamente, como atuavam e o que diziam alguns dos sujeitos contrários à demarcação, foram realizadas entrevistas com quatro pretensos proprietários de terras no interior dos limites da TI e um vereador municipal, além de conversas informais com uma sitiante e uma trabalhadora rural. Seria possível caracterizar os membros da frente contrária à demarcação apenas coligindo argumentos espalhados em jornais ou em processos judiciais, com a cautela de ressalvar as mediações operadas por advogados, repórteres e editores, entre outros, e mesmo pelos códigos específicos desses meios. Ou, ainda, apresentá-los em seu reflexo, isto é, na caracterização que deles faziam os índios. Busquei realizar também esses dois movimentos, mas entendi que seria desejável estabelecer contatos pessoais com esses não-índios. Para apontar

66 apenas uma limitação dos dois primeiros caminhos investigativos indicados, basta dizer que sitiantes frequentavam pouco as páginas dos jornais na condição de emissores de discurso, ainda que fossem objeto frequente nas narrativas jornalísticas dos fazendeiros. Também ingressavam menos com ações judiciais e, quando o faziam, geralmente se tratava de ações coletivas. Vejamos, a seguir, breves perfis desses participantes da frente contra a demarcação.

2.1.1. Algumas personagens

Apesar de serem parte de uma mesma frente, conformada por indivíduos e grupos contrários à demarcação da TI, os sujeitos que entrevistei diferiam em suas trajetórias de vida. Roque Borges do Nascimento, à época vereador em Buerarema, eleito pelo Partido Progressista (PP) e então filiado ao Partido Social Democrático (PSD), é negro e se apresentava como agricultor familiar e apoiador dos agricultores contrários à demarcação5.

Como ocorria em outros casos, seu mandato era identificado, pela população regional, à luta contra a demarcação. O fazendeiro – uso o termo sociologicamente, em oposição a pequeno proprietário e a posseiro, entendendo que o primeiro mantém uma relação com a terra fundamentalmente diversa daquela mantida pelos segundos – a quem chamarei Paulo é branco, vivia em Ilhéus e desempenhava posição proeminente, em nível regional, entre os articuladores da oposição à demarcação. Afirmava ser proprietário de uma área de cerca de 180 ha e, anos antes, ocupara um cargo de primeiro escalão na administração municipal de Ilhéus. Osvaldo (também um pseudônimo), branco, era identificado em Buerarema como o principal opositor à demarcação e, por vezes, como representante de outros pretensos proprietários junto aos seus pares em nível regional. Ele mantinha na sede do município um estabelecimento comercial de porte médio; disse-me que seu pai, já falecido, era proprietário de uma área de cerca de 120 ha na zona rural de Buerarema, que foi retomada pelos indígenas6.

Ao que eu saiba, nenhum dos dois fazendeiros mantinha relações diretas com os indígenas, apesar de nem sempre haver sido assim. Em 2012, a comunicação entre eles era mediada pela imprensa, pela justiça e por intermediários locais (inclusive na forma de boatos, revestidos de muita relevância no contexto de disputa territorial ali engendrado, como se verá em outra parte). Outros pretensos proprietários, contudo, mantinham relações diretas com os índios. Um deles, que vivia havia muito na região, foi-me enfaticamente elogiado pelos indígenas por ter

5 Em 2012, ele se candidatou a vereador, mas não foi reeleito.

6 A extensão da área que me foi referida por Osvaldo (cerca de 120 ha) está em contradição com o que foi

67 se recusado a participar das reuniões da frente, ao saber que se tratava de uma movimentação “contra os índios”. Havia casos, por outro lado, de relações muito próximas que foram rompidas, de vizinhos e compadres que, por se situarem em lados opostos da contenda, deixaram de se falar. E ocorriam ainda situações intermediárias: soube de pretensos proprietários ou posseiros que falavam mal dos “índios”, sem incluir aí seus vizinhos indígenas, com os quais seguiam mantendo as mesmas relações de antes; e também de indivíduos abertamente contrários à demarcação que continuavam frequentando a aldeia para se consultar com o pajé. Entre os meus entrevistados, como se verá, a proximidade com os indígenas refletia-se em um discurso ambivalente.

O homem que chamarei de Josias, branco, reivindicava-se proprietário de um terreno “devidamente registrado” com cerca de 25 ha, na Serra do Padeiro, que visitava com frequência e onde mantinha alguns trabalhadores em sistema de meação; já havia sido vereador e, por duas vezes, vice-prefeito de Buerarema. Mantinha relações cordiais com os índios, que conhecia havia mais de três décadas – estes, porém, afirmavam, algo condescendentes, que no início do processo reivindicatório foi ele o principal articulador da oposição aos índios em Buerarema, antes da ascensão de Osvaldo. Se, de um lado, apresentava-se como plenamente disposto a deixar a área, mediante indenização, e também como um “bom vizinho”, capaz de dialogar com os índios, não deixou de se precaver contra uma eventual retomada, solicitando à justiça um interdito proibitório, que lhe foi concedido.

Outro vizinho, que referirei como Aloísio, é negro e nasceu em uma localidade próxima a Jequié, na Bahia. Chegou a Buerarema ainda jovem, na década de 1950, junto a seus pais, que ali adquiriram um lote, onde ele e seus irmãos viviam em 2012, com cônjuges, filhos, netos e outros parentes. Diferiam de Josias: viviam na terra e da terra. Note-se que um irmão de Aloísio foi casado, até enviuvar, com uma indígena, e um segundo irmão manteve um relacionamento com outra mulher indígena, de que resultou uma filha. As relações de Aloísio com os índios oscilavam: ora eram tensas (alguns índios apontavam-no como um grande veiculador de boatos, que atuariam no sentido de inflamar fazendeiros contra índios), ora se distendiam, em ocasionais visitas e mesmo em demonstrações afetuosas de parte a parte.

A situação da mulher que chamarei de Dora era algo semelhante. Ela vivia no sítio habitado por sua família extensa (aqui serão os Pereira); seus pais eram negros pobres, que se transferiram da região de Jequié para a Serra do Padeiro, onde, com grande dificuldade, conseguiram adquirir um pedaço de terra, que costumava ser palco de festas animadas, com coco e umbigada. Os indígenas identificavam os Pereira como vizinhos e compadres; conforme certo relato, a permanência dessa pequena comunidade na terra teria sido garantida por um antepassado dos indígenas, que os defendeu dos coronéis. Ao menos um dos Pereira manteve relação com uma

68 índia (que, contudo, “não se assume”, disseram-me), com quem teve vários filhos, um dos quais se tornou atuante no movimento indígena e se mudou para uma retomada. Dora, que “fechou trabalho” com o pajé da Serra do Padeiro (isto é, iniciou-se no culto aos encantados), participava dos festejos de São Sebastião na aldeia, inclusive ajudando nos preparativos7.

De uma relação inicialmente próxima, contudo, os Pereira e os indígenas caminharam para um período de mal-estar: os primeiros temiam ter sua área retomada e os segundos passaram a se queixar da participação dos Pereira nas reuniões dos fazendeiros. Durante a realização desta pesquisa, pareciam viver outro momento, de distensão, com visitas recíprocas e outras trocas. Dora sempre levava mangalôs de seu quintal para uma senhora indígena que vivia à beira do rio de Una; em uma de minhas visitas a esta senhora, encontrei-a fazendo um jereré para dar a Dora8. Minhas conversas com esta última eram marcadas por grande

comedimento; ela me contou algumas de suas lembranças, levou-me para conhecer suas roças, falou sobre os índios, mas respondeu com evasivas sempre que lhe perguntei sobre o futuro e uma eventual saída do sítio. Esse silêncio prudente parece ter sido a estratégia adotada mais recentemente pelos Pereira para atravessar o processo de demarcação.

Finalmente, interessa analisar o caso de uma trabalhadora rural a que me referirei como Joana. Conhecemo-nos em um ônibus que circulava pela zona rural de Buerarema, quando ela me abordou para saber quem era eu, o que fazia ali (“você é antropóloga dos índios?”) e para manifestar sua opinião sobre os indígenas e as retomadas. É branca, vivia em um bairro rural de Buerarema, não possuía terras e trabalhava em fazenda (não quis informar que tipo de vínculo trabalhista mantinha). Criticou as retomadas de forma contundente e afirmou ser assídua participante das manifestações contra os índios. “Nós não gostamos deles [dos índios], nós não queremos eles aqui”, disse. Rindo encabulada, como se pega em contradição, confidenciou-me em seguida que tinha um filho com um indígena de outra área da TI.

Além de setores da população regional, como indicado, também compunham a frente contra a demarcação entidades representativas previamente existentes. O Conselho Regional Associativista de Buerarema e Adjacências (Crasba), criado em 2000, foi-me referido, por diferentes interlocutores, como um espaço de organização contra a demarcação; um dos fazendeiros que entrevistei escolheu receber-me no Sindicato Rural de Ilhéus, onde costumavam ser realizadas reuniões da frente. O apoio – sobretudo, financeiro – dessas organizações, como se verá adiante, era importante para viabilizar protestos e outras ações da frente.

7 Mais informações sobre a religiosidade na Serra do Padeiro serão apresentadas nos capítulos 3 e 4. Para

etnografias dedicadas ao tema, ver Couto (2008) e Ubinger (2012).

8 Jereré é uma rede (que pode ser elaborada com fibras naturais ou materiais industrializados), presa em

69 Ainda que não se possa dizer que compunham a frente, representantes de entidades do poder público, lastreados em entendimentos diversos sobre o que seriam as retomadas, atuavam como outras linhas de força identificáveis no campo de disputa. Parece-me que, grosso modo, tais atuações orientavam-se a partir de uma divergência central. De um lado, alguns agentes enfatizam que era necessário compreender as retomadas em um contexto político-social de luta por direitos; como exemplo, vejamos manifestações do MPF e da Procuradoria Federal Especializada da Funai (PFE-Funai/AGU). Ao se manifestar sobre as retomadas na Serra do Padeiro, o MPF argumentou que a realização de ocupações de terra, por si só, “não significa perturbação à ordem pública”, já que teriam de ver com “um problema de ordem social, que tem raízes históricas ligadas ao direito sobre as terras que [os indígenas] tradicionalmente ocupam” (Brasil, Ministério Público Federal, 2009b). Referindo- se a retomadas realizadas na região litorânea da TI, o MPF observou:

a invasão praticada pelos investigados não se deu com o fito de privar seu titular da posse, vez que munida de fim específico e político de “constranger” o Estado a promover as ações de demarcação, desapropriação e assentamento dos integrantes da comunidade indígena. […] Não há, dessarte, nas retomadas promovidas pelos indígenas, o dolo específico de esbulhar, o anti dominus, mas, apenas uma forma de pressão social das minorias, como soe [sic] acontecer com os que querem fazer valer seus direitos constitucionalmente garantidos (apud Brasil, Advocacia Geral da União, 2011)9.

As ações de retomada, sintetizara a PFE-Funai/AGU em outra ocasião, configuravam “luta social por terras” (Brasil, Advocacia Geral da União, 2010). Para a Procuradoria da República em Ilhéus, as retomada eram inclusive esperadas, já que constituíam um expediente normal de luta (Brasil, Ministério Público Federal, 2009a). Nesse quadro, o avanço do processo administrativo de demarcação é que poderia levar à distensão do conflito em torno do território Tupinambá, e não eventuais medidas de repressão aos indígenas em face das retomadas (Brasil, Advocacia Geral da União, 2010). A realização de ações de reintegração de posse, assinalou ainda a Funai em Ilhéus, criava “grave problema social”, desalojando os indígenas, destruindo suas roças e criações (Brasil, Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, Coordenação Regional do Sul da Bahia, 2012).

De outro lado, as retomadas eram caracterizadas como esbulho possessório; como tentativas delituosas, violentas, de apossamento de terras ainda não demarcadas. Afirmações de Antonio Carlos de Souza Hygino, então juiz da comarca de Buerarema, em entrevista ao jornal Agora, oferecem um exemplo: segundo ele, as “invasões desenfreadas” estariam “pondo em

9 Como se vê, também aqui as retomadas são caracterizadas como instrumentos de pressão, o que talvez se

70 risco a Democracia [democracia] duramente conquistada” (Hygino, 2010)10. Em depoimento à PF, em 2008, Orlando de Oliveira Filho, então prefeito de Buerarema, pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), afirmou que as ocupações de terras realizadas pelos Tupinambá fomentariam “a intranquilidade social e o temor dos cidadãos da região”.

Para o delegado da PF em Ilhéus Rodrigo Reis Moreira, inclusive os sinais diacríticos mobilizados pelos indígenas seriam provocativos; segundo ele, os índios fariam “uso ostensivo e intimidatório de pintura tribal”, diante de uma população já sobressaltada em decorrência dos atos “criminosos” realizados pelos indígenas (Brasil, Ministério da Justiça, Departamento de Polícia Federal, Delegacia de Polícia Federal em Ilhéus-BA, s.d.[a]). Outro delegado federal, Fábio Araújo Marques, opinou certa vez à imprensa que era preciso fazer com que os índios assinassem um documento comprometendo-se a não realizar novas retomadas e a aguardar a finalização do processo demarcatório (Disputa, 2009).

No documento O RETORNO DA TERRA (páginas 100-105)