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3 O DIREITO DE PUNIR NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

3.4 A PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL

O marco inicial de maior repercussão para a vitimologia foi a partir da publicação da obra The Criminal and his Victim em 1948 de Von Henting. Porém, assume um papel mais concreto a partir de 1947, cujo termo foi posto em público através do advogado israelense Benjamim Mendelsohn, sobrevivente do Holocausto, quando proferia uma palestra em Bucareste sobre o tema. Após o terrível episódio proporcionado pela Alemanha Nazista, surgiu uma massa vitimizada, que serviu de base para os estudos do advogado israelense, tendo como foco maior os motivos que levam a vitimização e o porquê de algumas pessoas serem mais propensas a se tornarem vítimas do que outras. Assim, a vitimilogia enquanto ciência é um tanto recente, porém, a questão da vítima sempre foi discutida no mundo teórico, desde a antiguidade até os dias atuais. 217

O Direito Penal divide a sua histórica em três grandes momentos. O primeiro que entendia ser o crime um atentado contra os deuses, acarretando a pena enquanto vingança divina; o segundo, regido pela Lei do Talião, o crime ocorria não contra uma pessoa, mas contra toda a tribo que ela fizesse parte, ocasionando a pena como vingança coletiva, através das guerras e das mortes em massa e no terceiro momento, o crime é entendido como uma agressão contra o Estado e a pena enquanto elemento punitivo e retributivo do Estado contra aquele que agiu contra o mesmo.

Em conformidade com os períodos pelos quais o Direito Penal transcorreu, a figura da vítima também, de maneira paralela, passou por suas fases e papéis distintos nestes períodos. Na época da vingança privada e da vingança coletiva, a vítima se

217 JORGE, Aline Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. Rio de Janeiro: Lumen

destacava e atuava como protagonista diante dos crimes. Porém, no terceiro momento, em que o Estado traz para si a exclusividade do direito de punir, a vítima fica relegada a um segundo plano, pois o interesse maior na punição contra o crime passa a ser estatal, que teve as suas leis infringidas, restando à vítima como mera testemunha do delito. O argumento para esse processo denominado de “neutralização da vítima” dava-se pelo entendimento de que a sua ação era movida pelo sentimento de vingança e não de justiça, daí porque deveria ser afastada de qualquer participação mais ativa no processo. Posteriormente, surge o período humanitário por meio do Iluminismo, dividido em dois grandes momentos; inicialmente, através da obra do Marques de Beccaria, no século XVIII, Dos Delitos e das Penas, que focava a humanização e proporcionalidade das penas e num segundo momento, em meados da década de 40, após a Segunda Guerra Mundial, numa mudança de olhar para a vítima, enquanto sujeito de direitos.218

Em 1979 surge a Sociedade Mundial de Vitimologia e em 28 de julho de 1984 surge na cidade do Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira de Vitimologia. Em seguida, no ano de 1985, a ONU aprovou a Declaração dos Princípios Básicos da Justiça para as Vítimas de Delito e de Abuso de Poder, com o credenciamento da Sociedade Mundial de Vitimologia como órgão consultivo. 219

A Vitimologia surgiu, inicialmente, com o intuito de estudar a vítima dentro de uma avaliação da sua culpa e de uma possível colaboração com o crime por meio das suas ações, o que acabava deixando a vítima numa situação mais difícil do que a ocupada na sua fase de total neutralização. Este panorama, onde a vítima restou totalmente esquecida, vem ganhando novos contornos, posto existir um movimento de cunho humanístico em vários países do mundo, inclusive no Brasil, onde se busca valorizar cada vez mais a vítima dentro do Sistema Penal e Processual Penal, através de uma participação mais ativa, enquanto pessoa, visando ampliar o seu papel, tanto na fase que antecede a instrução criminal, chegando inclusive até a fase da execução da pena imposta pelo Estado, dentro de uma visão mais humanística do Sistema Criminal.

O resgate da vítima dentro da seara criminal oportuniza a melhora de vários aspectos da política criminal, como a diminuição da vitimização, por meio de uma análise do seu comportamento em razão do crime e uma melhoria da forma de condução da

218 JORGE, Alline Pedra. Op. cit., p. 4-6. 219 Idem. Ibidem, p. 13.

instrução criminal, com a vítima sendo observada e reconhecida como sujeito de direitos. Os novos rumos da política criminal apontam para o caminho de uma maior valorização da vítima, na finalidade de equilibrar o interesse da mesma frente ao do Estado na repressão e prevenção do crime.220

O descaso proporcionado por muito tempo à vítima no Sistema Processual Penal, gerava uma nova forma de agressão a mesma, onde a sua função era a de tão somente responder aos questionamentos que lhes eram feitos por ocasião da audiência, atuando como um mero elemento de prova, revivendo no seu relato cenas que muitas vezes trazem angústia, mal estar, medo, dentre outros efeitos psicológicos negativos, sem, contudo, ter sido ouvida sobre estes sentimentos e os malefícios que eles causaram e, ainda, se seria possível alguma forma de minorá-los.

Importante definir o papel da vítima dentro do atual Processo Penal brasileiro. Fazendo um breve relato até chegar aos dias atuais, o Código utilizou várias expressões como, vítima, lesado e pessoa ofendida ou ofendido, predominando estes últimos. A vítima é vista como imprescindível na fase de inquérito, especialmente nos crimes de ação penal privada e pública condicionada à representação, posto que a grande maioria das comunicações de crimes surge das próprias vítimas. O maior problema da participação da vítima surge nas ações públicas incondicionadas, onde o interesse de punir do Estado se sobrepõe ao interesse da vítima e de seus familiares.

Apesar deste fato, existe uma tendência ao crescimento dos crimes condicionados à representação da vítima como forma de valorização dos seus interesses, onde destaca-se a Lei dos Juizados Especiais Criminais, tendo como um dos seus maiores vetores, o Principio da participação da vítima no processo penal, com o objetivo maior de buscar acordos na fase pré-processual, oportunizando a vítima de se manifestar de maneira mais decisiva neste contexto. Outro ponto importante é no caso da ação penal subsidiária da pública quando ocorrer à inércia do Ministério Público, apesar de ser muito pouco utilizada no sistema atual, além da possibilidade de atuar como assistente do MP. 221

Merece destaque também a situação em que a vítima não tem o poder de decidir se quer ou não ir a juízo prestar suas informações, sendo a sua recusa enquadrada como

220JORGE, Alline Pedra. Op. cit., p. 14-15.

221 KOSOVSKI, Ester; PIDEDADE JÚNIOR, Heitor. Temas de Vitimologia. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen

crime de desobediência, sendo admitida a sua condução coercitiva. Neste ponto, questiona- se sobre qual dos interesses deve prevalecer com relação a vários crimes onde somente uma determinada vítima é atingida e esta não demonstra nenhum tipo de interesse de que ocorra um inquérito ou ainda uma ação penal, muitas vezes motivada pelos horrores vividos em determinados crimes, cujo relato traria lembranças terríveis e indesejáveis.

Importante menção também diz respeito à questão da segurança da vítima durante o processo penal e a garantia da sua privacidade, onde a depender do crime, muitas pessoas são vitimizadas pela imprensa que passa a divulgar dados e situações de foro íntimo, sem a autorização, trazendo inclusive danos morais irreversíveis em razão de uma excessiva exposição nos veículos de comunicação, cujo problema se torna bastante difícil em razão da liberdade de imprensa. Mesmo com a edição da lei de proteção às vítimas e testemunhas e com a reforma do Código de Processo Penal ter inovado com relação à proteção da vítima no tocante a sua intimidade, vida privada, honra e imagem, na prática, essa pretensa segurança não tem sido percebida, especialmente pela ausência de estrutura de pessoal e, de preparo e determinação de agentes policiais para este fim.

A partir da formação de princípios ligados a proteção do bem jurídico, reservou para o Estado uma série de poderes, antes pertencentes à vítima, passando a ser o titular do conflito, assumindo o bem jurídico pertencente, na realidade, a vítima em nome do controle e proteção do Ordenamento Jurídico, visando à paz social. As críticas surgidas contra o tratamento dado à vítima, tanto no Direito Penal quanto no Processo Penal, ganham maior ênfase na década de 70 e 80, especialmente nos Estados Unidos, Canadá e em alguns países da Europa, através da Vitimologia e do movimento de vítimas que manifestam suas preocupações com o tratamento que lhes é dispensado na seara criminal, com os primeiros projetos de pequena repercussão e na maioria liderados pelo serviço social. 222

Dentro da perspectiva da vitimização secundária, ao chegar à fase processual, a vítima passa por grandes transtornos psicológicos, numa situação que é no mínimo incômoda, posto que nesta fase a mesma se depara com o agressor, seus familiares e advogado, este empenhado na grande parte das vezes, em demonstrar a falsidade do teor acusatório e ainda em denegrir a imagem da vítima, numa desqualificação total da sua pessoa perante à sociedade. Desta maneira, a vítima passa a ser utilizada no Processo Penal

como elemento de prova, sendo esquecidas todas as suas necessidades e sentimentos, acrescentando-se à vítima prejuízos sociais, além dos já ocasionados pelo delito.223

A conclusão desta realidade tem conduzido ao encaminhamento internacional desta problemática no sentido de melhorar a situação da vítima durante as fases que antecedem ao processo e especialmente durante o seu trâmite. Destaca-se um melhor tratamento dispensado pela polícia, de forma a não sofrer nenhum dano psíquico adicional, encaminhamentos para o recebimento de auxílios material, médico e psicológico, além de informações sobre a satisfação dos seus direitos tanto por parte do acusado quanto por parte do Estado, os chamados “fundos de assistência”. 224 No Brasil, com relação à assistência que deve ser prestada às vítimas, a Constituição Federal de 1988, trouxe esta previsão nas Disposições Constitucionais Gerais, art. 245, dependendo de Lei Complementar, determinando que: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o poder público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”. 225

A passagem do Estado Liberal para o Estado Social, em razão da formalidade excessiva e da não possibilidade de fornecer respostas mais concretas aos novos reclamos sociais, serviu o novo Estado Social, através de uma forte mudança de paradigmas à formação do Estado Democrático Constitucional, cuja distinção maior reside especialmente no fato de que no Estado Social o tratamento é concedido a todos de maneira igualitária, sem levar em consideração as peculiaridades do caso concreto e muito menos as características pessoais da vítima, onde no Estado Democrático o tratamento dispensado passa a depender principalmente do multiculturalismo e da pluralidade, reconhecendo o ser humano como sujeito de direitos e ainda como autores e destinatários das normas jurídicas. 226

Outro ponto importante fomentado pela Vitimologia atual é a busca pelo processo de reinserção social, não sob o prisma da ressocialização do apenado, mas da vítima, através do respeito e garantia dos seus direitos, por meio de uma investigação fundada na lisura dos fatos, maior participação no espaço destinado ao processo penal e ainda por

223 SANTANA, Selma de Pereira. Justiça Restaurativa: A reparação como conseqüência jurídico-penal

autônoma do delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.22-23.

224

SANTANA, Selma de Pereira. Op. cit., p. 23.

225 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 226 BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen

meio de programas que visem sua proteção, buscando a reparação e sua reinclusão social.227

Visando a não ocorrência da vitimização secundária da vítima pela alienação feita contra a mesma durante o período processual por parte do Estado, detentor exclusivo do direito de punir, Bustos e Laurrari228 propõem algumas reformas significativas. A primeira visa o aumento ou inclusão de medidas de proteção à vítima, através de uma reforma do Processo Penal. Dentre as propostas de reforma do processo está o deslocamento da reparação ou compensação civil à vítima do processo civil para o penal, podendo ocorrer em qualquer fase do processo, inclusive até com o efeito de suspender a imposição de outra pena; o aumento de medidas cautelares de caráter civil no processo penal e ainda a melhoria na qualidade da proteção dispensada à vítima. A segunda proposta pretende encontrar uma nova concepção de Processo Penal, buscando uma maior interação entre vítima e ofensor. A intenção é a de aplicar a conciliação dentro do Processo Penal, figurando o juiz como conciliador. Uma outra proposta de conciliação seria aplicada antes mesmo do processo, com fundamento maior no modelo abolicionista, porém sofre duras críticas, em razão das garantias de satisfação dos acordos e ainda com relação ao reconhecimento dos acordos pelo Poder Judiciário. Propõem-se ainda a compensação como sanção autônoma do delito e o trabalho comunitário, visando ao ofensor uma reparação dos danos à vítima e à sociedade em geral.

De fato, o Estado subtraiu da vítima seu interesse e a sua oportunidade de solução do conflito, onde em troca lhe proporcionou um papel de elemento de prova no crime por ela vivido. Esse afastamento da vítima do processo é conduzido pelo Princípio da Intimidação como um instrumento para o afastamento pelo Estado da sociedade, deixando uma exclusiva atuação judicial na solução de conflitos de ordem criminal. Ocorreu uma positivação da vontade da vítima, quando o legislador supriu a sua manifestação de vontade, passando a ser presumida, quando necessário.229

Neste sentido é a precisa lição de Walter Nunes da Silva Júnior:

A esse respeito, registre-se que um dos maiores desafios do processo penal reside, justamente, no resgate da sua legitimidade, especialmente em relação à vítima,

227

SILVA, Maria Coeli Nobre da. Op. cit., p. 79.

228 BUSTOS, Juan; LAURRARI, Elena Apud PALLAMOLA, Rafaella da Porciúncula. Justiça Restaurativa:

da teoria à prática. IBCCRIM: São Paulo, 2009, 1 ed., p. 50-51.

que é, ainda hoje, a grande esquecida do sistema criminal. Se é certo que a finalidade do processo não é atender aos governantes, porém aos lídimos interesses da sociedade, até porque, em última ratio, a atividade jurisdicional é uma das manifestações do poder político que, embora exercida pelo juiz na qualidade de membro do Poder Judiciário, pertence e deve ser desempenhada em nome do povo, não se pode perder de vista a necessidade de que a resposta como resultado final do processo, na medida do possível, não se descure em satisfazer o sentimento de justiça da vítima.230

Como medida de combate ao esquecimento dos interesses da vítima dentro do Processo Penal, surge à reforma tópica do Código de Processo Penal, onde através da Lei 11.690 de 09 de junho de 2008, seguindo as garantias já consagradas na lei 9.807 de 1999, que trata da proteção à vítima e testemunhas, traça alguns dispositivos que visam responder a algumas necessidades essenciais da vítima, tratada a partir da reforma como o “ofendido”. Apesar de ainda ser percebida como elemento probatório, posto ter sido mencionada no Título VII intitulado “Da prova”, a vítima passa a dispor de alguns instrumentos de resguardo dos seus direitos e interesses maiores durante a fase processual, além da busca pelo legislador por uma maior legitimidade do processo, demonstrando significativo avanço na legislação processual penal.231

No Ordenamento Jurídico Pátrio, pode-se ainda citar a Lei dos Juizados Especiais Criminais (lei 9.099/95), com destaque para a possibilidade de conciliação entre vítima e ofensor nos crimes de menor potencial lesivo, antes mesmo de instaurada a ação penal, onde um dos objetivos maiores do processo nos Juizados é a reparação dos danos sofridos pela vítima, conforme preceitua o artigo 62 da referida lei especial. Tem-se ainda a reparação do dano na seara criminal, embora voltada para a vítima, a mesma em nada participa quanto à fixação judicial desta medida.

Atualmente, não se pode mais perceber a vítima dentro do Processo Penal numa posição marginal e de pouca importância. É preciso que seja proposto um modelo que reformule o atual sistema, onde a vítima deve ocupar o foco central da discussão, ao lado do infrator, que passa a não ser mais estigmatizado em razão do crime praticado, reconhecidos como sujeitos de direitos, dentro de uma perspectiva humanística. A vítima

230 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 608. 231

Idem. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o

necessita ser observada tanto com relação ao dano que lhe foi causado, como ainda com relação a uma possível reparação do mesmo.

Embora a reforma do Código de Processo Penal tenha ocorrido de maneira tópica e não sistematizada, como deveria ter ocorrido, foi bastante louvável as alterações trazidas pelo legislador, quanto ao tratamento dispensado à vítima, além da previsão anterior na Lei 9.807/99 de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, demonstrando uma mudança de entendimento com relação à verdadeira e necessária atenção que deve receber a vítima durante o difícil período do Processo Penal, além de demonstrar a tendência do legislador nacional no sentido de cada vez mais buscar a humanização do sistema penal em geral.

3.5 A REINTERPRETAÇÃO DO DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL SOB O