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3 O DIREITO DE PUNIR NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

3.5 A REINTERPRETAÇÃO DO DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL SOB O

3.5.1 O Brasil como Estado Democrático Constitucional

A transição do Brasil para a democracia restou estrategicamente determinada por um caminho um tanto quanto autoritário, contornada pela elite dominante, através de políticos conservadores. A busca da legitimação do sistema penal resta confusa, quando traz para si elementos contraditórios como, por exemplo, repressão severa ao lado de penas alternativas, ou ainda, leis duras e garantias processuais, encarceramento em massa e proteção aos direitos humanos. Embora reste claro que o aumento do encarceramento não resolva o grave problema da crescente criminalidade, este discurso acaba ganhando força quando associado de maneira equivocada, a medidas democráticas. O grande desafio da sociedade é o de conquistar, de maneira democrática, instituições capazes de fazer emergir uma sociedade civil dotada de senso crítico, participativa e que atue de maneira coerente, cuja competência cívica os regimes autoritários buscam evitar. 232

Atualmente, a conjuntura jurídico-penal está associada à ideia de garantismo, ligada ao conceito de Estado Democrático Constitucional, modelo voltado a coibir as arbitrariedades estatais, cujo alicerce vem sendo construído desde o período iluminista. A

maneira radical como a Constituição e as demais leis eram interpretadas não pode mais figurar no Ordenamento Pátrio e nem tão pouco a maneira como as relações sociais são percebidas, apesar desta cultura ainda persistir com relação a alguns juristas. Faz-se necessária a busca de um entendimento crítico e dialético da ciência jurídica, posto que a lógica formal que imperou no positivismo não foi apta a tratar e a solucionar da melhor maneira os conflitos sociais. Além disso, torna-se necessário uma maior interação entre a Ciência do Direito com as demais ciências, fundamentando na interdisciplinaridade, como elementos de satisfação social. 233

O garantismo, surgido na Itália a partir da década de sessenta, teve como maior expoente Luigi Ferrajoli, através da obra Diritto e Ragione em 1989, numa fase de decadência do modelo positivado de Kelsen rumo a uma nova proposta quanto à fundamentação de cunho material das decisões judiciais. Apresenta-se o garantismo sob três perspectivas: a primeira, enquanto modelo normativo de direito, inserido na ótica da legalidade na seara penal com relação ao direito de punir estatal frente aos direitos dos cidadãos; numa segunda visão, percebido o garantismo como elemento de validade e de efetividade das normas jurídicas, e num terceiro ponto, como instrumento de imposição ao Estado de justificação das suas práticas com relação aos possíveis danos causados aos bens juridicamente assegurados e protegidos pelo Ordenamento.234

Na Europa, o processo de Constitucionalização ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e ao longo da metade do século XX, através da Constituição Alemã ou a Lei de Bonn em 1949 e a criação do Tribunal Constitucional Federal em 1951, influenciando as instituições contemporâneas. Em seguida, vem a Constituição da Itália datada de 1947 e a implantação da sua Corte Constitucional em 1956; nos anos 70, com o processo de redemocratização em Portugal (1976) e na Espanha em 1978. Restou o positivismo superado nestes países, especialmente pelo fato das maiores atrocidades mundiais contra seres humanos terem sido justificadas sob a proteção e cumprimento da lei. É reconhecida a normatividade dos princípios e a sua distinção com relação às regras e os valores, além da aproximação entre Direito e Filosofia. No plano teórico, três pontos foram fundamentais no processo de constitucionalização, quais sejam, o reconhecimento da força normativa da

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SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional: Nova Concepção de Jurisdição. São Paulo: Ed. Método, 2008, p. 26-27.

234 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Luiz

Constituição, a implantação da Jurisdição Constitucional e a nova hermenêutica constitucional. Todos estes movimentos influenciaram de algum modo no processo de Constitucionalização no plano nacional, por ocasião da promulgação da Constituição de 1988. 235

A Carta de 1988 tornou-se no Brasil o símbolo da passagem para um regime democrático. O direito infraconstitucional passa a seguir, a partir da promulgação da Lei Maior, um processo de constitucionalização, que embora seja percebido como recente, é dotado de intensidade. A Constituição passa a ser vista como o centro do Ordenamento Jurídico nacional, com uma visível supremacia, não apenas no aspecto formal, mas especialmente no aspecto material, com um sistema jurídico aberto e a valorização dos princípios nela contidos, substituindo o velho direito civil, que por muito tempo exerceu um papel preponderante no contexto jurídico. A ordem jurídica passa a ser analisada a partir de um olhar constitucional, por meio de uma nova interpretação de todas as leis infraconstitucionais. 236

Apesar das várias emendas que tem sofrido ao longo destes anos, a Constituição conseguiu cumprir de maneira satisfatória a passagem de um regime autoritário e intolerante para um Estado Democrático Constitucional. Surge um sentimento constitucional de dimensão nacional, o que merece ser celebrado, apesar de ser ainda um tanto tímido, mas que deve ser visto como um grande avanço, demonstrando uma superação quanto à indiferença que existia quanto à supremacia da Constituição. 237

A partir de uma releitura dessa importante transição, de um regime anti- democrático para um regime democrático e com a releitura das legislações infra- constitucionais a fim de amoldá-las dentro de um entendimento segundo a Carta Maior, buscando uma valorização mais concreta da dignidade da pessoa humana, passou o Brasil de um Estado Democrático de Direito para ser um Estado Democrático Constitucional, onde as normas constitucionais ocupam o topo da pirâmide do Ordenamento Jurídico, tanto

235 BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio

do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em:

HTTP://jus.com.br/revista/texto/7547/neconstitucionalismo/e/constitucionalização/do/direito. Acesso em 29 de abril de 2013.

236 BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio

do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em:

HTTP://jus.com.br/revista/texto/7547/neconstitucionalismo/e/constitucionalização/do/direito. Acesso em 29 de abril de 2013.

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Idem. Curso de Direito Constitucional e Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 268-269.

no sentido formal quanto no sentido material, com a função de trazer unidade ao sistema jurídico.

A partir do término da Segunda Guerra Mundial, desenvolve-se o Estado Democrático Constitucional, cuja característica mais marcante é a subordinação dentro do controle de legalidade a uma Constituição rígida, onde a validade das leis passa a depender não apenas da observância da formalidade quanto a sua produção, mas também da sua consonância com os ditames constitucionais, do ponto de vista do seu conteúdo. A Constituição passa a impor limites, tanto na atuação do legislador como também na do administrador. Outras grandes mudanças no cenário jurídico e político podem ser registradas, tais como, a influência da ciência do direito na atuação dos Poderes Públicos, a jurisprudência amplia a sua área de abrangência, inclusive passando a invalidar atos do Poder legislativo e Administrativo, além da interpretação das normas segundo a Constituição.238

Como Estado Democrático Constitucional, pode-se entender que no Estado de Direito a liberdade é uma “liberdade negativa”, ou seja, uma liberdade de proteção diante da atuação do Estado, onde a igualdade entre os membros da sociedade ocorre sob um prisma formal, ou seja, todos são iguais indistintamente, sem a realização da verdadeira justiça social. Enquanto no Estado Democrático Constitucional a liberdade é “positiva”, isto é, a liberdade firmada no exercício democrático do poder, sendo essa liberdade de cunho democrático, a legitimação do poder. Quanto à igualdade entre todas as pessoas, a mesma se dá do ponto de vista material, ou seja, através da implantação de metas e deveres para a garantia de tratamento desigual para os desiguais, a fim de construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Nesta perspectiva, o Estado Constitucional é mais abrangente do que o Estado de Direito, onde o aspecto democrático foi reconhecido não apenas como forma de limitar o poder estatal, mas como instrumento de legitimação deste poder. O Princípio da Soberania Popular assegura e garante a participação ativa e democrática do povo na própria formação

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional e Contemporâneo: Os conceitos

do poder, onde uma vez concretizado, assegura a compreensão do Estado Constitucional Democrático.239

Deste modo, os direitos fundamentais têm uma função democrática, onde o exercício do poder significa a contribuição dos cidadãos de maneira igualitária e livre, pois a participação igual dos cidadãos se torna um dos fundamentos funcionais da democracia240. No âmbito de uma ordem constitucional sob o aspecto material, a soberania do povo é eficaz e vinculativa, onde do ponto de vista procedimental, encontra-se aparelhada com instrumentos capazes de assegurar a prática do referido princípio. Deste modo, a Constituição material e formal legitimada, propicia o plano de construção da organização democrática, determinando o alcance e o poder de atuação da vontade popular241.

Reconhece o Supremo Tribunal Federal, por meio da sua jurisprudência, a supremacia das normas constitucionais e dos princípios que se encontram implícitos, além da possibilidade do exercício do controle de constitucionalidade das leis emanadas do Congresso Nacional, limitando assim a atividade do legislador no tocante a edição de leis que não estejam em sintonia ou de acordo com os valores que fundamentam a Constituição Federal.

O Brasil ao intitular-se como sendo um “Estado Democrático de Direito”, leia-se atualmente “Estado Democrático Constitucional”, o faz logo no preâmbulo da sua Constituição, a partir da premissa de que a democracia está voltada a assegurar a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça, enquanto valores mais elevados de uma sociedade pluralista. A ligação estreita e indispensável entre o Princípio Democrático e o Princípio da Soberania Popular é indissociável dentro da perspectiva de compreensão de um verdadeiro Estado Democrático Constitucional, cuja legitimação de todas as suas atividades, objetivos e finalidades advém da vontade e da participação popular.

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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed. Coimbra: Livraria

Almedina, p. 100.

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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed. Coimbra: Livraria

Almedina, p. 290-291.

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