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Histórico dos Direitos Fundamentais de cunho criminal na legislação pátria

3 O DIREITO DE PUNIR NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

3.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS FORMADORES DO SISTEMA

3.1.1 Histórico dos Direitos Fundamentais de cunho criminal na legislação pátria

Importante ressaltar-se, embora de maneira mais sucinta, acerca do embasamento teórico e filosófico do atual sistema criminal no Brasil, observando o alicerce em que se fundamenta a Justiça Penal e Processual Penal e os seus modos de aplicação. Neste sentido, têm-se as Ordenações Afonsinas em 1446, com o pioneirismo em termos de legislação positivada, posto que no momento da descoberta do Brasil por Portugal, esta era a legislação criminal que vigorava naquele país, oriunda de um reclamo do Rei de Portugal à época, D. João I que determinou fosse feita a compilação de todas as leis penais como forma de convergência dos tratamentos penais, determinando tal tarefa a Afonso V, com a adoção do sistema inquisitivo, respaldado pelas características da legislação eclesiástica, com previsão expressa em caso de lacunas, do Direito Romano e do Direito Canônico, cuja justificativa deste último se dava por aspectos religiosos, pois a autoridade do Rei era proveniente das forças divinas. Esta legislação, que estava em vigor na época da descoberta do Brasil, permaneceu até 1.520. Na sequência, durante o reinado de D. Manuel, foi editada nova legislação com o nome de Ordenações Manuelinas, cujo livro V tratava do Direito Penal e Processual Penal, perdurando até 1.603, com visível avanço humanístico para o Poder Judiciário.129 Posteriormente, o rei de Castela, Felipe II, ao assumir o trono português, promulgou as Ordenações Filipinas, mantendo no Livro V o tratamento do Direito Penal e Processual Penal, cujo sistema era considerado desumano e inquisitivo,

129

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (constitucional) do

com destaque a pena de morte, os suplícios, com enforcamento seguido de esquartejamento, penas infamantes, castigos corporais e mutilações, além das acusações serem públicas.130

Cita Heleno Fragoso131, que em razão da corrente humanística liberal que se espalhava por toda a Europa, em particular, a repercussão da Obra de Cesare Beccaria, D Maria I determinou que fosse feita uma reforma no Livro V das Ordenações Filipinas, através do Decreto de 31 de março de 1778, antes mesmo da Revolução Francesa, que ocorreu no ano seguinte.

Segundo Almeida Júnior132, diante das ideias reformistas iluministas pregadas por toda Europa, especialmente as ideias de Beccaria, o Príncipe D. Pedro I, editou o Decreto de 23 de maio de 1821, com foco para a questão da prisão do réu antes do julgamento e o tratamento que deveria ser dispensado ao preso. Destaca-se a menção a prisão apenas em caso de ordem escrita do juiz ou magistrado criminal, que para a ocorrência da prisão provisória seria necessária a formação da culpa pelo juiz, celeridade no processo quando o réu estivesse preso e ainda a facilitação dos meios de defesa e a publicidade das provas. Quanto à crueldade no cumprimento das penas, como o uso de correntes, algemas e grilhões, deveriam ser usados apenas aos que já estivessem condenados. Em 1822 foi criado por D. Pedro I o Tribunal do Júri, com avanço quanto a não permissão do confisco de bens, dos açoites, da marca de ferro, da tortura e das penas infamantes de um modo geral, além da aplicação do critério da proporcionalidade quando da fixação da pena e da individualização da mesma.133

Após a declaração de independência do Brasil, surge a Constituição Política do Império do Brazil de 25 de março de 1824, que previa a elaboração de uma nova legislação penal, o que ocorreu em 16 de dezembro de 1830, onde foi sancionado o Código Criminal do Império. O referido código era de caráter liberal, sendo o único diploma legal que vigorou no Brasil por iniciativa do Poder legislativo e elaborado pelo Parlamento. Como destaques e inovações, pode-se citar um esboço sobre a individualização da pena, a previsão de agravantes e atenuantes, além de julgamento especial para os menores de 14

130

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997, v. 1,

p. 95.

131

FRAGOSO, Heleno Apud SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal:

Teoria (constitucional) do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 132.

132

ALMEIDA JÚNIOR Apud SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal:

Teoria (constitucional) do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 132-133.

133SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (constitucional) do

anos de idade. Porém, houve previsão da pena de morte por meio da forca, após uma acalorada discussão, como forma de punir a prática de crimes pelos escravos.134 Em decorrência dos preceitos humanísticos e liberais que eram introduzidos gradativamente no Brasil, surge em 1832 o Código de Processo Criminal, em contraponto as Ordenações Filipinas, ao mesmo tempo em que é implantada a Escola Positiva no cenário jurídico nacional na segunda metade do século XIX.135

A partir da Proclamação da República, entrou em vigor o Código Penal em 11 de outubro de 1890, tendo sofrido fortes críticas pela má redação atribuída à pressa na sua elaboração. No tocante aos avanços promovidos, o novo código aboliu a pena de morte e instalou-se o regime penitenciário com o fim correcional, mas em razão da sistematização deficiente, acabou sendo emendado diversas vezes, tendo sido substituído pela Consolidação das Leis Penais em 1932. Em 1942 entra em vigor através do Decreto-Lei 2848/40, o novo Código Penal, sendo a nossa Legislação Penal até o presente momento.136 Com relação ao atual Código de Processo Penal, com entrada em vigor num período próximo ao Código Penal, segundo Walter Nunes da Silva Júnior137, o mesmo “foi pensado mais como arma poderosa colocada à disposição de um Estado antidemocrático do que como instrumento garantista de limitação do direito de punir estatal”.

Do ponto de vista da evolução dos Direitos Fundamentais ao longo da história das Constituições brasileiras, tem-se pela primeira vez no Brasil a Declaração de Direitos Fundamentais na Constituição de 1824, esculpida nos 35 incisos do art. 179, os quais 15 itens foram dedicados às garantias penais e processuais penais, cujo caput enunciava a

liberdade, segurança individual e propriedade. Dentre as garantias elencadas no art. 179

do ponto de vista criminal, podemos destacar o principio da reserva legal, a inviolabilidade de domicílio, a proteção contra a prisão arbitrária, necessidade para a prisão e para a aplicação de sentença de ordem escrita pela autoridade competente, vedação de foros privilegiados e de juízos de exceção, a abolição das penas cruéis e a tortura, conforme pensamento de Beccaria, além do preso ficar em cadeias seguras, limpas e bem arejada e que os mesmos fossem separados na prisão de acordo com as circunstâncias e a natureza

134

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. v. I. Atlas: São Paulo, 29ª ed, p. 23.

135

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (constitucional) do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 137.

136

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Op. cit., p. 23-24.

do seu crime. Segundo Walter Nunes da Silva Júnior138, é clara a identidade entre a redação da Constituição do Império e a Constituição Americana, no tocante as garantias fundamentais, além da enorme semelhança entre o art. 179 da mencionada Constituição Brasileira e a Obra de Cesare Beccaria, Dos delitos e das Penas, que revelam uma plena identidade de princípios defendidos por ambas. Porém, a concretização dos direitos fundamentais restou comprometida em razão da instituição do Poder Moderador que concebia ao imperador poderes ilimitados assegurados pela Constituição.139

Com a edição da Constituição da República de 1891, ocorreu em seu art. 72, formado por 31 parágrafos, a retomada dos direitos fundamentais contidos na Constituição de 1824, contando com importantes previsões, tais como, o reconhecimento dos direitos de reunião e de associação, das amplas garantias penais e do instituto do habeas corpus, anteriormente previsto apenas na legislação ordinária. Estes direitos são estendidos aos estrangeiros residentes no país (art. 72, caput), enquanto que a Constituição de 1824 apenas os reconhecia aos cidadãos brasileiros (art. 179).140

A Constituição de 1934 inicia o processo do constitucionalismo social, sob forte influência das Constituições do México de 1917 e de Weimar de 1919. Apesar da ruptura com o Estado Liberal, praticamente todas as garantias individuais princípios asseguradores destas garantias foram mantidos na íntegra, com a presença maior de garantias na esfera processual penal em relação ao direito penal de cunho material. Trouxe em seu texto um retrocesso ao permitir a prisão administrativa civil, reduzindo também o alcance do habeas corpus na situação de prisão administrativa. Ocorreu a ampliação do princípio da igualdade, com destaque a não discriminação em razão de raça, sexo, nascimento, profissões, classe social, riqueza, crenças religiosas e ideias políticas, além da inclusão da coisa julgada. Destacou a irretroatividade da lei penal, salvo em benefício do réu, a proibição da extradição do brasileiro por crime político ou de opinião, além do direito a assistência judiciária gratuita, restando omissa quanto ao Tribunal do Júri, o que gerou dúvidas quanto a sua permanência ou não no meio jurídico.141

138 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit, p. 198-200. 139

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 ed. ver., atual

e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 32.

140

Idem. Ibidem, p. 32.

A Constituição de 1937, oriunda do golpe militar de ordem do Presidente há época Getúlio Vargas, trazia em algumas passagens do seu texto o retrocesso quanto às garantias fundamentais antes reconhecidas, por meio do excesso de poder deixado nas mãos do Executivo, a quem caberia interpretar o que deveria ser, por exemplo, o bem público, necessidade de defesa, bem-estar, paz, ordem coletiva, fato este que embasava o Estado autoritário daquele momento. Várias passagens do texto da Constituição de 1934 foram suprimidas, como forma de assegurar a discricionariedade administrativa do regime militar, com destaque maior em razão da ausência de uma previsão expressa contra a prática de tortura, que constava já na Carta de 1824.142

Após a Segunda Guerra Mundial, o ideal humanitário se espalhou por todo o mundo, incluindo o Brasil, o que redundou na Constituição de 1946, trazendo em seu bojo o art. 141 com 38 parágrafos, além dos art. 142, 143 e 144, perfazendo um total de quarenta e um elementos de positivação dos direitos e garantias fundamentais, amplamente violados por ocasião da Constituição ditatorial de 1937, resgatando com isso, várias omissões contidas anteriormente. No tocante ao direito de liberdade, este foi contemplado em três artigos específicos, além do habeas corpus, da garantia da ampla defesa, vedação dos foros privilegiados, a vedação de tribunais de exceção, a garantia do juiz natural, a reafirmação do tribunal do júri, a não possibilidade de extradição de estrangeiros nos casos de crimes políticos e de opinião e em qualquer caso o brasileiro, a pessoalidade da pena, proibição das penas de banimento e de confisco, a não possibilidade de aplicação da pena de morte.143

Repetindo os ditames antidemocráticos e desumanos da Constituição da era Vargas, surge a Constituição de 1967, que de maneira autoritária e arbitrária foi imposta, sem mencionar acerca dos direitos fundamentais, que foram declarados desde a Constituição de 1824 no Brasil Império. Os direitos fundamentais foram colocados sob a rubrica dos direitos e garantias individuais, o que na prática não tinha aplicabilidade diante da ditadura que sofria o povo brasileiro. Em 1969 a Constituição de 1967 foi alterada através da emenda 1/69, contemplando os direitos fundamentais nos trinta e seis parágrafos

142 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 210-214. 143 Idem. Ibidem, p. 215-216.

do art. 153, retomando praticamente todos os dispositivos de proteção penal e processual penal, mencionados nas Cartas anteriores.144

Por último, surge a Constituição de 1988, após a ditadura militar, constituindo um importante passo no processo de redemocratização do Brasil. Considerada a Constituição Cidadã, posto que pela primeira vez o Brasil trata numa Constituição os Direitos e Garantias Fundamentais no início do seu texto, elevando-os a cláusulas pétreas, rol que aliás é amplíssimo, contemplando, praticamente, todos os direitos basilares, com respeito aos direitos humanos de um modo geral.

3.1.2 As correntes filosóficas que fundamentam o atual sistema penal e processual