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5 APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

5.2 A COMPATIBILIDADE ENTRE A JUSTIÇA RESTAURATIVA E ALGUMAS

5.2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente

obstáculos para sua realização plena, desobstruindo os caminhos da participação popular.

Nos países em desenvolvimento, existe uma enorme distância entre a ideia e a realidade de democracia, incluindo o Brasil, cuja democracia participativa, quase naufragada, ainda permanece como um direito de primeira geração ou forma de governo em estado rudimentar. A verdadeira substância política da democracia participativa deve ser incorporada ao direito constitucional positivo sob a forma de democracia direta, com a prevalência da vontade popular. 414

Dentro desta visão participativa, insere-se a Justiça Restaurativa, enquanto instrumento que viabiliza a atuação da vítima de maneira mais efetiva e com grande grau de importância dentro do processo penal, onde é possibilitado à mesma externar seus sentimentos, expor a sua vontade e participar do processo decisório dentro da atividade punitiva do Estado.

Além disso, enquanto elemento democrático, permite que as partes atuem de maneira mais concreta no processo, posto ser proporcionado o diálogo e o debate em torno do crime e das lesões deixadas pela sua ocorrência, o que demonstra claramente ser a Justiça Restaurativa um importante meio colocado à disposição da sociedade para uma satisfação mais adequada dos seus conflitos sociais e com enorme grau de satisfação dos atores que participam deste processo, numa linha de atuação voltada à melhor forma de satisfação da vítima e a melhor maneira de minimizar os efeitos danosos do ilícito penal. Proporciona também, através da participação do acusado, dos familiares e da comunidade, uma forma de buscar conjuntamente a solução do conflito ao lado do Estado, como forma de resgate à dignidade da pessoa humana no processo penal constitucional e da verdadeira realização de uma democracia participativa, voltada a assegurar o bem-estar de todos.

5.2 A COMPATIBILIDADE ENTRE A JUSTIÇA RESTAURATIVA E ALGUMAS

LEGISLAÇÕES NACIONAIS

5.2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente

O movimento democrático que se instalou no Brasil na década de oitenta e a busca pela defesa dos direitos humanos, além da ratificação brasileira em 26 de janeiro de 1990 à Convenção dos Direitos da Criança aprovada pela ONU em 20 de novembro de 1989, conduziu a criação pelo legislador de medidas protetivas e educativas voltadas ao menor infrator, o que redundou no Estatuto da Criança e do Adolescente, sintetizado através da Lei 8.069/90, cujas ideias, foram importadas de experiências estrangeiras que aplicaram alguns institutos restaurativos juntamente a menores infratores com a presença comprovada de resultados positivos.

A determinação contida no art. 227 da Constituição Federal de 1988 incumbiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar todos os direitos da criança e do adolescente de forma a garantir uma vida digna de maneira prioritária, dentre eles, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além da proteção contra toda e qualquer forma de opressão, violência, negligência, discriminação, exploração e crueldade.415

Deste modo, tanto o Estado, como a família e a sociedade em geral, passam a ter responsabilidades quanto à formação e condução dos jovens, o que implica por parte de todos, alguns deveres específicos. Abordando a questão do menor infrator, encontramos as medidas protetivas e educativas da competência do Estado, previstas na Constituição Federal de 1988, no art. 227, § 3º, nos incisos IV e V, determinando o dever estatal de respeito ao Princípio do Devido Processo Legal e observância quanto às penas privativas de liberdade aplicadas ao menor, em razão da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.416

O Estatuto da Criança e do Adolescente surge a partir desta perspectiva de proteção e educação por parte do Estado, voltado para o menor infrator com idade entre 12 e menor que 18 anos, com a adoção de medidas sócio-educativas, fundamentais na Teoria da Proteção Integral (art. 3º do ECA), substituindo o estigma da retribuição pela prevenção e reparação, cujas características se coadunam com os princípios, valores e objetivos contidos nas práticas restaurativas. Os menores de 12 anos de idade apenas poderão

415 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 416 Ibidem.

receber medidas protetivas previstas no art. 101, conforme disposição do art. 105, ambos do referido Estatuto.417

Inicialmente, tem-se no art. 126 do ECA o instituto da remissão, onde contempla o perdão estatal concedido, quando da avaliação do caso concreto ao menor infrator, que dependendo da pequena gravidade do seu delito, das circunstâncias e consequências do fato, da sua personalidade, da maior ou menor participação da atividade delituosa, terá a exclusão, extinção ou suspensão do seu processo, cuja fonte maior foi o item 11.2 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Resolução nº 40/33 de 29 de novembro de 1.985).

A primeira forma de remissão é a concedida como forma de exclusão do processo sendo de iniciativa do Ministério Público, quando o menor infrator comparecer a sua presença, onde após a oitiva do menor e dos seus responsáveis, poderá ser concedida a remissão como forma de perdão, em geral para os casos de menor gravidade ou ainda o arquivamento dos autos pela insuficiência de indícios de autoria e materialidade de crime ou contravenção, devendo em qualquer caso ser encaminhada a concessão do perdão para a homologação do magistrado. Caso o Ministério entenda não ser caso de remissão ou de arquivamento, encaminhará o caso ao juízo competente visando à aplicação de uma medida sócio-educativa. 418 Neste instituto não se discute a culpabilidade do possível infrator e nem a sua concessão implicará no reconhecimento de culpa, mas tão somente, levando em consideração a sua infração, visa-se evitar os males de um processo criminal, além da não prevalência para efeito de maus antecedentes (art. 127 do ECA).

Ao contrário da remissão concedida pelo Ministério Público como forma de evitar o processo quando entenda ser o mesmo desnecessário, a remissão judicial poderá ser cumulada com outras medidas sócio-educativas (art. 127 do ECA), com exceção daqueles que impliquem em privação de liberdade quanto ao direito de ir e vir, aplicável em qualquer fase do procedimento até a sentença (art. 188 do ECA), devendo ser ouvido o Ministério Público, também aplicável a atos infracionais de pequena gravidade, tanto como forma de suspender, como ainda visando extinguir o procedimento que apura o cometimento do possível ato infracional.

417 BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. 418 DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara; OLIVEIRA, Thales Cezar de. Estatuto da Criança e do

Quanto às medidas sócio-educativas previstas no art. 112 do ECA, são elas a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semi-liberdade, a internação em estabelecimento adequado e ainda as previstas no art. 101, I a V. Quanto à advertência, esta representa uma admoestação verbal realizada pelo magistrado e dirigida ao menor infrator, realizada em ato solene e reduzida a termo, buscando a promoção da reflexão sobre a reprovabilidade do seu comportamento e das consequências dele advindas, alertando ainda aos pais ou responsáveis sobre a sua responsabilidade na educação e condução da vida destes menores.419

Conforme determina o art. 112, II e art. 116 do ECA, a obrigação de reparar o dano será imposta quando o menor praticar infração de cunho patrimonial, devendo ressarcir o dano, restituir a coisa ou ainda compense de alguma forma o prejuízo gerado. Trata-se de uma medida sancionadora, mas que possui um caráter educativo, posto que imprime ao menor o dever de devolver de algum modo o que foi indevidamente retirado, além de proporcionar à vítima a restituição do patrimônio perdido.

O art. 112, III e art. 117 do ECA traz a prestação de serviços à comunidade como outra medida sócio-educativa, fazendo com que a infração seja punida por meio de atividades que tragam de alguma forma um benefício social, proporcionando um caminho para a reinserção social do jovem infrator, através da captação de valores comunitários.

A liberdade assistida é mais uma medida sócio-educativa prevista no art. 112, IV e art. 118 do ECA, sempre que for demonstrada ser necessária para acompanhar, orientar e auxiliar o menor. Será designada uma pessoa capacitada pela autoridade judiciária para acompanhar o caso, podendo ser ainda recomendada por algum programa ou entidade afim. Compete ao orientador a promoção social do jovem infrator e da sua família, inserindo-o em programas voltados para este fim; acompanhar o desenvolvimento escolar deste jovem, inclusive podendo realizar a sua matrícula; buscar a inserção do adolescente no mercado de trabalho, além de apresentar relatório à autoridade judiciária. A liberdade assistida terá duração mínima de seis meses, podendo ser prorrogada, revogada ou substituída a qualquer

419 FERRANDIN, Mauro. Ato Penal Juvenil: Aplicabilidade dos Princípios e Garantias do Ato Penal.

tempo por outra medida mais adequada, ouvidos o orientador, o Ministério Público e o defensor (art. 119 do ECA).

O regime de semi-liberdade é mais uma das medidas sócio-educativas contidas no art. 112 do ECA, consistindo na privação parcial da liberdade do adolescente infrator. É uma medida mais gravosa do que as acima elencadas, devendo ser aplicada às situações ocorridas diante de uma ação mais gravosa e que tenha atingido bens jurídicos de maior valia, podendo ser aplicada no início do cumprimento da medida ou ainda na fase de transição para o meio aberto quando imposta à internação, possibilitando atividades externas, independentemente neste caso de ordem judicial, com a obrigação de frequência à escola ou a cursos profissionalizantes, sem prazo fixo, aplicando-se no que couber às disposições relativas à internação (art. 120 do ECA). Na verdade é uma forma de conceder ao jovem infrator o retorno antecipado à convivência familiar e social, além da obrigatoriedade do estudo e da profissionalização, enquanto elementos de formação positiva, conduzindo ao desenvolvimento da disciplina, posto à obrigatoriedade diária do seu retorno ao estabelecimento voltado ao cumprimento da medida atribuída pelo magistrado.

A medida considerada mais gravosa é a internação dada à privação total da liberdade de ir e vir do menor infrator (art. 121 do ECA), devendo ser aplicada apenas aos crimes mais graves e cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, para aqueles que demonstrem a ineficácia das demais medidas, dada a reiteração no cometimento de outras infrações ou ainda pelo descumprimento injustificado de outras medidas anteriormente impostas (art. 122 do ECA). A internação somente poderá ocorrer em estabelecimento adequado para menores infratores, atendendo ao Princípio da Individualização da Pena (art. 123 do ECA), sujeita aos Princípios da Brevidade, Excepcionalidade e o respeito à condição peculiar do menor enquanto pessoa em desenvolvimento (art. 121, Caput). O prazo máximo de duração da medida é de até três anos, apesar da não determinar o prazo mínimo de duração, que dependerá de avaliação fundamentada no caso concreto. Aos vinte e um anos a liberação da internação será compulsória (art. 121, § 5º do ECA). Será permitida a saída para a realização de atividades externas, a critério da equipe de acompanhamento do adolescente, salvo decisão judicial contrária (art. 122, § 1º do ECA).

O Estatuto da Criança e do Adolescente contempla ainda outras medidas voltadas tanto para o adolescente, constantes no seu art. 101, I a VI, quais sejam, o encaminhamento aos pais ou responsáveis mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento pelo tempo necessário; comprovação de matrícula em unidade de ensino ou profissionalizante; inclusão em programas comunitários voltados para a família e para o menor; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico quando necessário e a inclusão em tratamentos voltados a pessoas usuárias ou dependentes de álcool ou de drogas proibidas. Para dar ênfase e cumprimento a estas últimas medidas, o ECA prevê medidas voltadas para os pais ou responsáveis, conforme redação do art. 129, I a VI.

Conforme demonstrado quanto à aplicação das práticas ou medidas restaurativas espalhadas pelo mundo, percebe-se que a maior inclinação é no sentido de implantá-las com relação ao menor infrator, exatamente pela característica especial de ser um indivíduo em fase de formação, apesar da questão da menoridade penal variar entre os países mencionados. Na verdade o parâmetro de aplicação das medidas restaurativas nestes casos não é o crime praticado, mas sim quem praticou o crime, inclusive em alguns países que adotam políticas restaurativas, a presença da vítima nas mediações ou nos círculos restaurativos podem até ser dispensadas ou ainda nomeado um procurador para representá- la, exatamente em razão do foco maior está voltado à reintegração e à restauração do menor infrator, além da previsão expressa de medidas que visam o envolvimento do jovem infrator à comunidade, permitindo atividades que conduzem a formação de valores sociais.

Quanto à família, todo o procedimento é realizado em conjunto com a mesma, inclusive com a previsão de obrigações conjuntas com o adolescente infrator, dada à importância e à indispensabilidade conferida à presença dos entes familiares neste processo restaurativo, onde se prima pelo respeito, solidariedade, responsabilidade, reinserção social e o resgate da dignidade dos envolvidos no processo, apesar da falta ainda de um maior envolvimento entre o menor infrator e a vítima, como forma de proporcionar uma maior discussão em torno da infração a fim de desenvolver no adolescente o senso de responsabilidade diante das suas ações e perceber de maneira mais profunda a extensão dos danos causados pela infração cometida.

O Congresso Nacional aprovou a Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. O art. 35, inciso III do referido texto

legal, menciona expressamente como um dos princípios que devem reger a execução das medidas sócio-educativas, “a prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas”.420