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As correntes filosóficas que fundamentam o atual sistema penal e processual

3 O DIREITO DE PUNIR NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

3.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS FORMADORES DO SISTEMA

3.1.2 As correntes filosóficas que fundamentam o atual sistema penal e processual

Tratando mais especificamente das correntes filosóficas que embasaram o sistema criminal brasileiro, tem-se a corrente iluminista e a humanitária, que encontram o seu ápice no período ligado a Revolução Francesa, tendo como principais ícones Voltarie, Montesquieu e Rosseau, que fizeram fortes críticas ao sistema penal e processual penal da época, especialmente, quanto à necessidade de individualização da pena, proporcionalidade e as penas de caráter desumano e cruel.

Os postulados do Iluminismo foram postos na obra de Cesare Beccaria que em 1764, denominada “Dos Delitos e das Penas”, considerada um marco mundial de discussão sobre o sistema penal desumano e irracional que se apresentava há época, servindo de fundamento para a busca da humanização das Ciências Penais. A partir da segunda metade do século XVIII, os estudiosos do Direito Penal se voltaram a escrever sobre a crueldade do sistema vigente e sobre a necessidade de revisão das penas, num viés mais humanitário.145

Destaque para as Escolas Penais, surgidas a partir do século XIX, organizadas de maneira sistemática, embasadas nos princípios que regem os direitos fundamentais do homem. Inicialmente, temos a chamada Escola Clássica, cujo termo foi colocado pelos

144 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 216-219. 145

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Revista

positivistas, dividida em dois momentos, sendo o primeiro influenciado pela ideias iluministas de Cesare de Beccaria, voltado para os anseios sociais e contra o sistema penal da época, especialmente, por ser contrário à tortura e a pena de morte, fundamentado nas ideias difundidas por Montesquieu na obra “O Espírito das Leis” e no “O Contrato Social” de Rosseau, defendendo que o direito de punir do Estado deveria ser limitado pela lei, somente podendo haver excesso em caso de concordância social, cuja base da sua doutrina era a legalidade e a igualdade.146 Num segundo momento, voltado para a necessidade da retribuição do mal causado com foco para a sanção penal, sendo o nome de Francesco Carrara, um dos primeiros compositores da dogmática penal, daí a denominação “Escola Clássica de Carrara”, com destaque para a ideia de que o crime era composto de um elemento objetivo representado pela força física e outro elemento subjetivo, representado por uma força moral. Defendeu Carrara a ideia de que o Direito Penal não era um instrumento de limitação humana e sim, de proteção da liberdade humana, explicando que a interferência do Estado entre o assassino e a vítima não exprime uma limitação do direito de liberdade, posto que a liberdade humana nada mais é do que a possibilidade de agir sem causar lesão aos direitos de terceiros e que a liberdade de um ser humano deve coexistir com a igual liberdade dos demais, tudo dentro da perspectiva de um direito natural. Existindo o crime, surgirá a necessidade de impor uma sanção.147

Destaque ainda na Escola Clássica para o alemão e jusfilósofo Feuerbach, autor da obra Tratado de Direito Penal em 1801, entendendo a pena como uma medida preventiva e não somente retributiva, criando a teoria da “coação psicológica”, registrada no Código de Baviera da sua autoria em 1813. A partir do período clássico o crime passa a ser estudado de maneira analítica, cuja pena tinha caráter aflitivo, retributivo e pessoal, onde o autor deveria ter a capacidade de entender e agir com vontade. 148

Surge a chamada Escola Positiva no fim do século XIX, em meio ao desenvolvimento das Ciências Sociais, como a Antropologia, Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, Estatística, dentre outras, o que conduziu a uma nova formação doutrinária na matéria criminal.149 Segundo Fausto Costa150, defendeu os interesses da sociedade frente

146 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Op. cit., p. 59-61. 147

Idem. Ibidem, Op. cit., p. 74-76.

148 BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São

Paulo: Saraiva, 2010.

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aos interesses do indivíduo que praticava o crime, onde a ressocialização do infrator ficava em um segundo plano. A pena passa a ser uma reação natural da sociedade em retribuição à agressão sofrida, cujos fundamentos não se evidenciam na natureza e na gravidade do crime e, sim, na personalidade do acusado, na sua capacidade de adaptação social e especialmente na sua periculosidade. De acordo com Manuel Grosso Galvan151, buscou esta escola, inicialmente, a tratar o crime da mesma forma das outras disciplinas, porém, o erro foi percebido na medida em que o crime é extremante casuístico, ficando a sua análise a depender das circunstâncias em que ocorreu no caso concreto, o que conduziu a substituição da avaliação do crime do ponto de vista científico, surgindo a Criminologia, independente da dogmática jurídico-penal. Portanto, a divisão da Escola Positiva foi basicamente, a fase antropológica de Cesare Lombroso, através da defesa da existência do criminoso nato; a fase da Sociologia do Crime, representada na figura de Enrico Ferri e a fase jurídica ou a Criminologia da pessoa de Rafael Garafolo.152

De maneira sintética, a Escola Positiva teve como aspectos principais de destaque, a ideia de que o Direito Penal é um produto social; a responsabilidade social é fruto da própria convivência em sociedade; o delito passa a ser visto como um fenômeno natural e social; a pena é uma forma de prevenção ao crime; o método de avaliação é o indutivo, fundado na experiência; os objetos do Direito Penal são o crime, a pena, a pessoa do criminoso e o processo. Como principais contribuições, pode-se citar, a descoberta de novas vertentes no Direito Penal através das experiências concretas; o surgimento da Criminologia, com a atenção voltada não somente para o criminoso como também para a vítima; a busca da individualização das penas; análise do elemento periculosidade; o surgimento dos institutos da medida de segurança, livramento condicional, suspensão condicional e o tratamento diferenciado para o menor infrator.153

A Escola Italiana, conhecida como a escola crítica, que assim como as demais escolas que surgiram com o transcurso do tempo, não possuíam posições bem definidas como a Escola Clássica e a Positiva. Na verdade, elas passam a agregar elementos destas

150

COSTA, Fausto Apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev.,

atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 86.

151

GALVAN, Manuel Grosso Apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte

Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 86-87.

152

PRADO, Luiz Régis; BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de Direito Penal: Parte Geral. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, v.1, p. 87.

153

duas grandes correntes de pensamento, representando uma evolução nos estudos das ciências penais.154 Surgiu com a publicação em 1891 do artigo de Manuel Carnevale, sob o título “Uma Terza Scuola di Diritto Penale in Intalia”. Tratou da responsabilidade moral, discordando de que o crime tivesse seu fundamento no livre arbítrio, distinguindo imputáveis de inimputáveis, onde aquele que tivesse a capacidade de se sobrepor a determinação psicológica de praticar o crime seria considerado imputável, ao contrário, o que não tivesse essa capacidade de se sobrepor aos motivos determinantes do crime seria considerado inimputável, com a consequente aplicação da medida de segurança. O crime passa a ser entendido como um fenômeno social e individual e o fim da pena é a defesa social, embora a mesma continue a ter o seu caráter retributivo, sendo totalmente distinta da medida de segurança.155

A Escola Moderna Alemã surgiu a partir das ideias de Franz Von Liszt, seguidor de Ihering, dentro de uma corrente considerada eclética, de cunho crítico, assim como a Escola Italiana, que contou ainda com a contribuição do belga Adolphe Prins e do Holandês Von Hammel, onde juntos criaram a União Internacional de Direito Penal em 1888 e que durou até a Primeira Guerra Mundial. O trabalho retomou em 1924, através da Associação Internacional de Direito Penal, que até os dias atuais promove relevantes estudos de cunho científico sobre temas importantes do Direito Penal.156 Além de ser jurista, Franz Von Liszt era também um destacado político da Áustria, o que acabou influenciando na sua concepção jurídico-científica, concebendo o Direito Penal como política criminal. Apesar de diversas obras publicadas, a de maior destaque foi o Tratado do Direito Penal Alemão em 1881, com vinte e duas edições. Em 1822 Franz Von Liszt publicou o Programa de Manburgo, trazendo a ideia da finalidade do Direito Penal, cuja repercussão foi absorvida até os dias atuais, tanto na mudança de política criminal, como nos novos conceitos do próprio Direito Penal positivo. Enfatizou em sua obra a necessidade da observância da finalidade e dos objetivos do Sistema Penal, considerando como justa a pena que fosse necessária. 157

154

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São

Paulo: Saraiva, 2010, p. 90.

155

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 49.

156 Idem. Ibidem, p. 48.

157 BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São

De maneira mais objetiva, as principais características da Escola Moderna Alemã foram à adoção do sistema lógico-abstrato, aplicado ao Direito Penal e o método indutivo- experimental, aplicado às demais ciências criminais; distinção entre o Direito Penal e as outras ciências criminais, como a Criminologia, a Sociologia e a Antropologia; distinção entre imputáveis e inimputáveis, com a determinação do sistema duplo-binário; o crime passa a ser observado como um fenômeno humano, social e jurídico; a função finalística da pena, com adaptação à natureza do criminoso; eliminação ou a substituição das penas privativas de liberdade de curta duração.158

Surge na Itália a Escola Técnico-Jurídica, que na verdade foi mais como uma corrente voltada a uma transformação na metodologia penal do que propriamente uma nova escola, com representação na figura de Arturo Rocco, apresentada através da importante aula magna, na Universidade de Sassari, tratando acerca do método de estudo do Direito Penal. O ponto mais forte desta Escola foi o de destacar o verdadeiro objeto do Direito Penal que é o crime, enquanto fenômeno jurídico, ciência normativa e autônoma, com a adoção do método de estudo técnico-jurídico ou lógico abstrato.159

Como principais destaques da Escola Técnico-Jurídica, pode-se destacar o delito enquanto relação jurídica, de conteúdo individual e social; a pena constitui uma conseqüência do crime; a pena com a função de prevenção, geral e especial aplicável aos imputáveis; a responsabilidade pelo crime como um fator moral, fundada na livre vontade do agente; a não utilização da filosofia no campo das Ciências Penais. A dogmática jurídico-penal alemã é considerada nos dias atuais como a mais evoluída em matéria penal.160

Segundo Manuel de Rivacoba161, a Escola Correcionalista Alemã surgiu em 1839, a partir da dissertação de Karl Roder, sob o título “Comentatio na poena malun esse debeat”, fundamentada no idealismo romântico alemão da primeira metade do século XIX, além de possuir a doutrina cristã e o Direito Natural como panos de fundo. O ponto alto desta Escola Alemã foi o de entender a pena conforme o seu caráter exclusivo de correção

158

PRADO, Luiz Régis; BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, v.1, p. 6 e ss.

159

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São

Paulo: Saraiva, 2010, p. 93.

160

PRADO, Luiz Régis; BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, v.1, p. 124 e ss.

161

RIVACOBA, Manuel de Apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15

do delinqüente, voltada para o caso real.162 Trouxe como principais pontos a pena de prisão de maneira indeterminada; o arbítrio judicial ampliado como forma de concretizar a individualização da pena; a função da pena como forma de tutela social e a responsabilidade penal como sendo coletiva e solidária.163

Por último, destaca-se a Escola da Defesa Social, surgida no final do século XIX, juntamente com a revolução positivista. Em 1945, Felipe Gramatica cria em Gênova, na Itália, o Centro Internacional de Estudos de Defesa Social com o fim de buscar novos meios de combate ao crime, cujo fundamento maior era o de trazer o indivíduo de volta para a sociedade.164

O jus filósofo Marc Ancel publica em 1954 “A nova Defesa Social”, reconhecido como um marco na ideologia de proteção social contra o crime. Fundamentou-se basicamente, nas premissas humanísticas, defendendo a proteção do ser humano por meio de garantias, criticando o sistema penal e processual penal vigente. Defendeu a interdisciplinariedade das ciências penais e sociais, como forma de melhor combater a criminalidade em geral.165 Segundo Marc Ancel, o sistema penal precisava ser avaliado dentro da realidade humana e social, pois ao contrário não apresentaria a melhor solução para a criminalidade. Defendeu a expurgação dos dogmas jurídicos, com o direito penal dentro de uma verdade, que deve ser relativizada, admitindo como únicos elementos dogmáticos a prevenção do crime e a busca da reinserção social do criminoso, por meio do respeito à dignidade da pessoa humana.166 Na verdade, a Escola da Nova Defesa Social deixa de lado a clássica ideia do caráter retributivo da pena, onde a sanção passa a ser vista como meio de preservação da ordem social, devendo ser aplicada de maneira proporcional e necessária a ressocialização do infrator, defendendo ainda a ideia de um sistema penal democrático e antirrepressivo.

Ainda dentro desta vertente abolicionista, porém num cunho mais moderno e democrático, posteriormente as ideias de Felippo Gramática, o pensamento de Louk Huslman, Niels Christi e Thomas Mathiesen, como defensores de uma maior redução e

162

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral.15 ed. rev., atual e ampl. São

Paulo: Saraiva, 2010, p. 95.

163

PRADO, Luiz Régis; BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, v.1, p. 37.

164 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 113. 165 BITENCOURT, Cesar Roberto. Op. cit., p. 96.

descentralização do Estado quanto ao direito de punir, através de uma nova orientação da política criminal, embora reconhecessem a necessidade da intervenção estatal. 167

A corrente abolicionista divide-se em duas, sendo a primeira mais radical com relação à intervenção do Estado na perspectiva punitiva, embora minoritária, defende que o sistema carcerário é um sistema falido, como um sistema que realimenta a criminalidade. Deste modo, buscam apontar para outros mecanismos de combate a criminalidade que não seja a prisão, demonstrando através da análise da cifra negra, que a grande maioria dos crimes são lidados fora do sistema criminal, com soluções que ficam à margem da legalidade, onde a vítima resta esquecida dentro do cenário do crime, passando a ser apenas uma testemunha durante o processo penal, colocando em jogo a própria legitimidade do Estado em matéria punitiva. 168

A outra corrente abolicionista prega a necessidade de uma nova discussão acadêmica sobre o crime, buscando uma profunda transformação no discurso punitivo. Fundamentam a sua tese no sentido de ser o crime uma criação social, entendendo o crime como um comportamento semelhante a outros comportamentos proibidos e não criminalizados, o que conduz a substituição da expressão “comportamento criminoso” pela expressão “situação problemática”. Essa substituição de expressões e da forma como o crime passa a ser percebido redunda numa melhora considerável do ambiente científico, afastado de preconceitos e da influência emocional, além da adoção de uma linguagem democrática.169