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3 O DIREITO DE PUNIR NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO

3.2 O DIREITO DE PUNIR E AS FUNÇÕES DA PENA

O desenvolvimento do Estado ocorreu juntamente com o modelo penal por ele adotado, onde é preciso vislumbrar a conjuntura estatal e a sua evolução em consonância

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FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 218.

178Idem. Ibidem, p. 219. 179 Idem, Ibidem, p. 241.

com o modelo punitivo aplicado em cada época. A compreensão do conceito de pena está intimamente ligada à percepção das suas funções. Deve-se levar em conta que o embasamento maior da aplicação da pena é sem dúvida, a finalidade de manutenção e garantia da ordem social, como forma de equilibrar as relações sociais de um modo geral, somente sendo possível através da boa convivência entre os indivíduos de uma determinada comunidade e da segurança social, sendo esta última, dever estatal.

A própria razão da existência do Estado, demonstra que a sua formação reclamou a necessidade de formalizar o poder político, cujo instrumento maior, enquanto elemento de manutenção da ordem social utilizado, foi o poder-dever de punir, sendo este uma das suas funções essenciais. Porém, na atualidade, o poder-dever de punir do Estado precisa está em total sintonia com as normas e garantias constitucionais, dentro de um sistema criminal democrático, como única forma de uma verdadeira legitimação, cuja política criminal deve ser orientada dentro das premissas que formam a ordem constitucional.180

Dentre as teorias relativas às funções da pena, destacam-se algumas mais importantes, como a Teoria Absoluta ou Retributiva, fundamentada na concepção do Estado absolutista, cujas características mais marcantes eram a identidade entre o Estado e o Soberano, entre a Moral e o Direito e ainda entre o Poder do Soberano e a Religião.181 Aparece dentro de uma conjuntura oriunda da transição entre a sociedade da baixa Idade Média e a sociedade liberal com o aumento da burguesia e o acúmulo de capital, vindo o Estado Absoluto a perder força com o surgimento de mercantilismo, aparecendo o Estado burguês fundamentado pela Teoria do Contrato Social, onde o Estado passa a ser visto como uma expressão soberana do povo, surgindo à divisão dos poderes.182 Neste contexto, a pena perde o seu caráter religioso, passando a ser colocada como uma retribuição àquele que perturbou a ordem jurídica criada pelos homens através das leis, enquanto elemento necessário à restituição da ordem jurídica rompida.183

Os principais representantes das teorias absolutas ou retributivas da pena foram Kant, com uma concepção de ordem ética e Hegel, fundamentado na ordem jurídica. Para

180 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit, p.156. 181

Kerm apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 99.

182 Jescheck apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual

e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 99-100.

Kant184, a pena deveria ser aplicada impiedosamente contra àquele que transgredisse a lei, sendo a pena um fim em si mesma, cujo objetivo maior era realizar a justiça, negando assim, toda e qualquer função preventiva da mesma. Quanto à visão de Hegel, a pena tinha um cunho mais jurídico, onde o fundamento maior era a busca do restabelecimento da ordem geral negada pela vontade do delinqüente, cuja pena deveria ser aplicada na mesma intensidade do crime praticado. Segundo Hegel, a aplicação da pena se dava em decorrência da necessidade do restabelecimento do equilíbrio social, em razão da ocorrência de uma lesão e não como forma de aplicar um mal porque antes ocorreu outro mal, conforme o entendimento de Kant. 185

Pode-se citar ainda, outras teses retribucionistas da pena, como por exemplo, a obra de Carrara186, denominada Programa de Direito Criminal, onde defendeu que o fim da pena é o restabelecimento da ordem externa da sociedade, aproximando-se a sua tese da opinião de Hegel, quando defendeu que o delito viola as leis e agride a sociedade e a todos os cidadãos, em razão da redução do sentimento de segurança pois somente através da reparação do dano ocorrerá o retorno da ordem perdida. Quanto a Binding, defendeu que a pena é a retribuição de um mal por outro mal, com a redução do culpado pelo uso da força. Segundo Mezger a pena é um mal aplicado em razão da prática criminosa, implicando em uma retribuição e na privação de bens jurídicos. 187

As teorias relativas ou preventivas da pena surgiram durante a transição do Estado Absoluto para o Estado Liberal, no período do iluminismo, onde a pena não tinha o caráter de retribuição de um mal e, sim, de prevenir que outros crimes acontecessem. Destaque para as figuras de Benthan, Beccaria, Filangieri e Schopenhauer. A partir das ideias de Feuerbach, surgem duas posições sobre a função preventiva da pena. A primeira, denominada de prevenção geral, com o desenvolvimento da Teoria da Coação Psicológica, como sendo umas das primeiras representações de cunho jurídico e científico desta corrente defendida por Feuerbach, onde a pena é vista como uma ameaça através das leis àqueles que cometem delitos, servindo como uma coação psicológica que visa evitar novos

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Kant apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 101.

185 Etcheverry apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev.,

atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p, 105.

186

Carrara apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 105.

187 Welzel apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e

delitos. Para a teoria da prevenção geral, a ameaça da pena gera no indivíduo uma espécie de motivação para que não volte a cometer novos delitos188. Mesmo assim, tanto as teorias preventivas como as retributivas não conseguiram demonstrar quais são as condutas que legitimam a atuação do Estado na sua repressão, restando prejudicado a delimitação do âmbito de punição estatal. 189

A teoria da prevenção especial é voltada para a figura do criminoso, buscando que o mesmo não volte a delinqüir. O destaque maior vai para Von Liszt em seu Programa de Marburgo, onde defendeu que a necessidade da pena é medida através de critérios preventivos especiais, fundamentados nos ideais de ressocialização e reeducação do criminoso, a intimidação dos que não apresentam a necessidade de uma ressocialização e ainda a neutralização dos incorrigíveis190. Trata-se da pena fundamentada na defesa da nova ordem social, sendo o delito visto como um dano social e o delinqüente como um perigo social. A expressão “pena” é substituída pela expressão “medida”, já que a pena implicaria na aplicação de um conceito genérico de igualdade, enquanto a expressão “medida” parte da premissa de que o criminoso é um ser perigoso, devendo ser tratado segundo a sua periculosidade, entendendo que o castigo e a intimidação não têm sentido, cuja pretensão maior é a ressocialização ou a correção.191

Em razão das críticas surgidas quanto às teorias absolutas e relativas das penas, surgiram as chamadas teorias mistas, visando subtrair o melhor de cada uma das teorias anteriormente propostas. Deste modo cita Magalhães Noronha que “Já não se admite exclusivamente a sanção como retributiva - o mal da pena ao mal do crime – mas tem-se em vista a finalidade utilitária, que é a reeducação do indivíduo e sua recuperação”.192

Mesmo assim, críticas surgiram às teorias mistas por entenderem alguns doutrinadores e juristas que a junção de várias teses redundaria na ausência de uma ideologia mais robusta, onde a soma de várias teorias conduziria a formação de uma nova teoria, mas ao contrário do que pensavam em nada anularia as teses antes defendidas. Como resultado desta síntese das duas teorias anteriores surge a Teoria da Prevenção Geral

188 Lopez apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 107.

189

BITENCOURT, Cesar Roberto. Op. Cit., p.108-109.

190

Anton apud BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 15 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 110.

191 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p.111.

Positiva Fundamentadora, tendo como representantes Welzel, que defendeu o caráter preventivo da pena, enquanto elemento embasador da consciência ético-social do cidadão, e Jakobs entenderam que as normas jurídicas trariam estabilidade e institucionalizariam expectativas sociais, além de orientarem na condução dos cidadãos no seu meio social. A crítica maior feita à teoria fundamentadora foi pelo fato da imposição de valores morais e éticos, o que redundaria em afronta ao Estado Democrático de Direito, especificamente em razão da tese defendida por Welzel, onde defendia a interiorização do direito através do castigo, sendo uma afronta ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.193

Dentre as teorias mistas, destaca-se a Teoria da Prevenção Geral Positiva Limitadora, fundamentada na limitação do poder de punir do Estado em observação ao modelo garantista de cunho constitucional, dentro de uma perspectiva democrática, social e humanística, tanto de proteção social como também de proteção aos direitos dos delinqüentes, respaldado na legalidade, proporcionalidade e humanidade. Assim a punição é imposta pelo Estado em razão do crime praticado, mas observados os limites e garantias impostos pela Constituição. A teoria limitadora reúne a prevenção e a ressocialização como ideais a serem buscados, porém, esta última dentro de uma nova visão por meio da interação entre indivíduo e sociedade, buscando uma intervenção mínima do Estado em matéria punitiva e com a obtenção de novas formas de resposta ao crime.194

No caso do Brasil, de acordo com a leitura feita do art. 59 do Código Penal, pode- se concluir, que foi adotado pelo atual sistema uma teoria mista ou unificadora da pena, posto que a parte final do mencionado artigo de lei conjuga a necessidade de reprovação e prevenção do crime, unindo assim as teorias absoluta e relativa.

Em contraposição as teorias expostas, surgem às teses abolicionistas, onde não se reconhece a justificação da intervenção estatal do ponto de vista do direito penal, entendendo pela sua eliminação por considerarem as suas vantagens inferiores a intervenção feita pelo Estado na liberdade do cidadão. Por sua vez, segundo Luigi Ferrajoli não são abolicionistas e, sim, reformadoras ou substitutivas, as teorias que primam pela intervenção mínima do Estado, ou ainda a abolição da pena de prisão por outras medidas alternativas, como uma forma de humanização do sistema criminal. Critica a tese abolicionista extremada, por entender que nos tempos modernos torna-se impossível a

193 SALIBA, Marcelo Gonçalves. Op. cit., p. 56-57. 194 Idem. Ibidem, p. 57-58.

garantia da ordem social sem a presença de normas reguladoras e punitivas, o que redundaria numa sociedade selvagem, cujos conflitos seriam solucionados de maneira privada.195

Contrário às ideias de Luigi Ferrajoli, Raúl Zaffaroni, um fiel defensor dos ideais abolicionistas, afirma que o fim maior não é a extinção de todos os modos de solução dos conflitos, mas ao contrário, os conflitos devem ser resolvidos através da reconstrução de vínculos solidários de cunho comunitário, sem a intervenção do modelo punitivo atual, defendendo que a tese do Direito Penal Mínimo é o primeiro e grande passo para a aplicação e concretude do Abolicionimo. 196

De fato, o atual sistema penal, especialmente, o sistema nacional, apresenta sérias e profundas deficiências, mas a abolição de todas as formas punitivas, inclusive a prisão, dentro dos índices de criminalidade assustadores que é presenciado diariamente, conduziria a um verdadeiro e irremediável caos social, político e econômico. Deste modo, é preciso e urgente a busca por novas alternativas de penalização como forma de redução e prevenção da criminalidade, além de sérias melhorias no sistema carcerário nacional, mas a abolição de todas as formas de punir provenientes do poder estatal levaria a um verdadeiro desastre social, diante da ausência de regras claras e precisas quanto ao exercício da liberdade humana diante do necessário respeito aos bens jurídicos de terceiros.

3.3 O SISTEMA PENAL NA ATUALIDADE E A PERSPECTIVA DA