• Nenhum resultado encontrado

A pedagogia do boca-ouvido e a lógica do segredo

Uma coisa que consideramos igualmente importante é a forma em que se dá a transmissão de ensinos dentro desta religião, o que estamos nomeando aqui de “pedagogia do boca-ouvido”, e como se constrói esse processo de transmissão e a lógica do segredo. O CEBUDV é uma religião em que existe uma certa quantidade de conhecimentos reservados aos graus hierárquicos, portanto, estamos falando de uma religião iniciática. Atualmente, há um crescente número de publicações a respeito da UDV em que o olhar exótico e a incompreensão dos seus rituais, bem como do seu corpo doutrinário é evidente (ANDRADE, 2002; GOULART, 2004; LABATE, 2002; MELO, 2012; 2013)48 . As conclusões apresentadas por estas pesquisas são, na maior parte das vezes apressadas, devido a serem, em grande parte, motivadas por pesquisas de campo fugidias e superficiais que

(Ibogaína). A principal característica destas substâncias são as experiências sensoriais e visionárias, tem baixo teor de toxidade e não causam adicção.

46 Segundo Escohotado (1998), as chamadas drogas apaziguadoras tem como característica serem analgésicas e anestésicas, provocam sono e torpor, podendo criar hábito de adicção, são drogas apaziguadoras o ópio e derivados (morfina, heroína, codeína, metadona, opiáceos sintéticos). Já as estimulantes são excitantes e tem como característica o aumento de disposição e ânimo, não causam adicção, mas criam relações psicológicas de dependência, estão nesta categoria o mate, o café, o chocolate, a folha de coca, o tabaco, a cocaína, a anfetamina e a cafeína.

47 O capítulo 2 trata especificamente da questão do uso dos psicoativos, suas respectivas famílias químicas, as pesquisas desenvolvidas com estas substâncias, seu uso em contexto religioso, sua aplicação em contexto terapêutico e a farmacologia humana de alguns destes psicoativos. Aqui estamos somente introduzindo o assunto para mais a frente desenvolvermos com mais densidade estas questões.

48 Estamos nos referindo a produção acadêmica destes pesquisadores no que toca ao mundo de Hoasca, ou seja, no que toca ao CEBUDV. Reconhecemos a contribuição dos mesmos na constituição e consolidação deste campo de pesquisa.

não dão conta de reter um campo extremamente desafiador e que exige paciência por parte do pesquisador.

Uma das dificuldades de se escrever a respeito desta religião tem a ver com o procedimento de transmissão de conhecimento do seu corpo doutrinário ser quase inteiramente oral. O processo denominado pelo nativo como boca-ouvido é, por assim dizer, a ferramenta pedagógica nativa legítima. Este processo exige uma ampla capacidade de memorização e anos de convivência com seus sócios por parte do pesquisador para ter acesso a cosmologia da UDV. Soma-se a isso o pouquíssimo material oficial e não oficial escrito a respeito desta religião o que se constitui como um obstáculo natural ao pesquisador estranho ao cotidiano das formas religiosas produzidas nesta realidade.

Além disso, a UDV é uma religião de segredos e mistérios, portanto, o processo de transmissão de conhecimentos obedece a mecanismos hierárquicos49. Existe um conjunto de ensinos que são abertos a todos os sócios e outros que são reservados aos graus que compõem a hierarquia desta religião, ou seja, o acesso ao conhecimento é repassado de forma lenta e gradual. Na maior parte das vezes, o sócio passa anos para escutar todas as histórias, acontecimentos e ensinos que compõem a cosmologia religiosa da UDV, o que é mais um elemento dificultador para os pesquisadores estranhos a essa religião ou não pertencentes a ela50.

É necessário adensar em uma questão importante para esta religião que é a lógica do segredo. Neste sentido, em um ensaio publicado no anuário antropológico de 1984, intitulado “A racionalidade antropológica em face do segredo”, o antropólogo José Jorge de Carvalho busca compreender como o segredo é uma barreira para aqueles que buscam estudar religiões iniciáticas e de rituais de mistérios. O pesquisador se atém aos cultos afro-brasileiros,

49 Importante deixar claro que a UDV não é uma sociedade secreta. Não funciona como uma ordem religiosa secreta. Porém, tem um corpo de ensinos reservados aos graus hierárquicos em que a sua transmissão está circunscrita a estes graus e os assuntos revelados aí só devem ser tratados dentro dos graus apropriados.

50 Sou sócio da UDV desde o ano de 2008 e ainda não tive acesso a todo o seu corpo de ensino e doutrina. Além disso, faço parte do Departamento de Memória e Comunicação (DMC) desta religião há cinco anos, portanto, sou um pesquisador insider da memória da UDV. Ainda que tenha um certo nível de preparação, muitas vezes é necessário dialogar com várias pessoas de dentro da UDV para tirar esclarecimentos sobre eventos da história desta sociedade religiosa e também dos seus aspectos doutrinários, imagine um pesquisador que não tem esta imersão dentro deste campo?

mas suas reflexões podem se estender ao universo de outras religiões iniciáticas e das sociedades secretas a exemplo da maçonaria e da Rosa Cruz. Nestas religiões ou sociedades de mistérios, o segredo é revelado após um longo período de intimidade e de confiança mútua com o grupo que se estuda. Neste universo, o segredo não se constitui somente como uma informação a respeito de um determinado ritual, ensino ou doutrina, mas também aquele que guarda o segredo tem uma força, um diferencial em relação aos outros membros. Assim, o pesquisador coloca:

… a cada vez que uma informação factual é revelada, ou um detalhe do ritual é explicado, ou a participação em um certo evento é permitida ao estudioso, uma parte do sistema inteiro do culto, como repositório de um conhecimento iniciático e privilegiado, é posta à prova, pois fica aberto à discrição do estudioso o que revelar em seus escritos do que lhe foi dito ou do que pôde observar com seus próprios olhos. (Carvalho, 1984, p. 214).

O que revelar e o que não revelar do segredo? Esta é uma questão fundamental que o pesquisador se coloca e é também um dilema ético porque por um lado a pesquisa acadêmica “exige” a revelação dos segredos como uma forma de explicar o sentido e o significado do ritual por inteiro. Por outro lado, a revelação de segredos rituais pode prejudicar a coesão interna do grupo, além de fornecer substrato com o fim de produzir controle por parte do aparelho de Estado em torno de algumas dessas expressões religiosas. Para problematizar essa questão, entre o que o pesquisador deve ou não revelar de uma dada sociedade, o autor traz para o debate o livro de Richard Price51 que versa sobre os Saramaca do Suriname.

Os Saramaca são um dos cinco grupos de negros que vivem hoje às margens do Rio Suriname, cujos ancestrais fugiram das plantações deste país por volta de 1690 e que depois de 70 anos de perseguições conseguiram sua liberdade por meio de um tratado de paz com o poder colonial. Constituem, portanto, praticamente um país dentro do país. Esta experiência fez com que o povo Saramaca criasse em torno de si um orgulho e uma autoestima extraordinária, posto que conquistaram sua liberdade um século antes que a escravidão fosse abolida na colônia. Por

51PRICE, Richard. First time. The historical vision of an Afro-American people. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1983.

outro lado, a dura experiência de batalhas e perseguições fez com que se tornassem desconfiados de brancos e negros que não fossem quilombolas.

O livro de Richard Price tem por objeto um assunto que é sigilo máximo entre os Saramaca: as histórias dos “primeiros tempos”. Por meio de uma grandiosa tradição oral, os anciões guardam a genealogia dos heróis fundadores, dos primeiros a fugir, como se deu os eventos e batalhas, as fugas e migrações, portanto, trata-se da arquegenealogia dos eventos que fundaram os Saramaca enquanto povo. Pode-se perceber aí que o segredo é uma determinação sociológica do tipo fato social total que caracteriza as relações entre os Samaraca, fixando relações de reciprocidade entre seus membros. Lembro Simmel quando pensa a complexidade do segredo dentro de um grupo ou de “sociedades secretas”: “... tão logo um grupo faz do segredo a sua forma de existência, o sentido passa a ser interno, o segredo vai determinar as relações recíprocas entre os que compartilham” (2011, p. 148). Trata-se também de um sistema de conhecimento histórico que tem várias implicações do ponto de vista político e jurídico, já que é por meio deste conhecimento que pode ser, por exemplo, reivindicado o direito a posse da terra. O homem Saramaca para ter acesso a esses segredos precisa provar que é um homem íntegro e de merecida confiança, precisa provar pela sua prática moral de vida que pode ter acesso a esses segredos e que pode também guardá-los consigo. Existe aqui uma noção clara que liga a conduta moral e a noção de confiança à revelação do segredo. Diz o autor:

sendo o núcleo mais importante da identidade coletiva Saramaca, o conhecimento sobre os “primeiros tempos” é secretíssimo, restrito a cada clã, ficando na memória de uns poucos anciãos que só o revelam pouco a pouco, obscuramente e nunca em demasia, para os homens de meia idade do seu clã que merecem sua confiança... alguns dos dados sobre os “primeiros tempos” atingem uma área de poder enorme, pois acredita-se que o simples pronunciamento ou o mau uso do nome de um ancestral pode matar ou perturbar gravemente uma pessoa. (CARVALHO, 1984, p. 216).

Percebe-se aí algumas questões em relação a transmissão do segredo. Primeiro, a transmissão deve ser sempre incompleta e obscura;

segundo, existe uma clara noção de poder na transmissão do segredo tanto por parte de quem transmite tanto por parte de quem recebe. Pode inferir-se também aí que é um segredo restrito aqueles que fazem parte daquela cultura e são dignos de confiança. Dada essa situação, como um estranho, branco, antropólogo, teve acesso a rede de conhecimento secreto dos Saramaca? Richard Price esteve primeiramente entre os Saramaca pelo período de dois anos (1966 a 1968) fazendo trabalho de campo e não teve acesso aos segredos ou qualquer instrução acerca dos “primeiros tempos”. Retornou nos anos setenta para fazer pesquisa histórica e documental nos arquivos coloniais da Holanda, no qual teve acesso aos diários das expedições militares além de informações a respeito das plantações nos séculos XVII e XVIII. Dessa forma, montou o quebra-cabeça de conhecimento secreto dos Saramaca e retornou para um novo período de trabalho de campo entre os anos de 1976 e 1978. Dessa vez, Richard Price enfrentou os seus velhos informantes com um arcabouço de conhecimento acerca dos “primeiros tempos” com o que aprendeu nos arquivos dos brancos.

Diante dessa nova e inédita situação, Price propôs aos anciões que contassem a sua versão da história dos “primeiro tempos” para que comparasse com o que aprendeu dos arquivos coloniais. Como era de se esperar a proposta ofendeu a maior parte dos clãs que consideraram a proposta indecente e perigosa. No entanto, um dos clãs aceitou a proposta de Price e resolveu contar-lhe suas histórias mais secretas. Pode-se dizer que a publicação destes segredos na obra de Richard Price provocou uma inteira mudança na interação estratégica entre os Saramaca e os brancos, já que colocou fim na ocultação dos seus segredos e, portanto, por meio da revelação de suas histórias criaram toda uma nova definição da situação. A respeito disso escreve Carvalho:

… ao ler esses fragmentos, fui me estarrecendo cada vez mais: como é possível que segredos de tal magnitude, nomes pronunciados poucas vezes durante uma vida inteira, detalhes de encontros e de estratagemas contra os brancos, guardados por duzentos e cinquenta anos, cuidadosamente, para não chegarem nunca aos ouvidos de seus arqui-inimigos, estejam aí, impressos em grandes tipos Garamond, acessíveis agora a quantos brancos queiram conhecê-los? (Id. Ibidem, p. 218).

O autor considera perturbadoras as informações que Price revela em seu livro, já que o segredo e o jogo social que leva a sua revelação é ainda um dispositivo fundamental na definição da situação entre os anciões e os jovens Saramaca. Além do mais, os conflitos entre os Saramaca e os brancos não cessaram, ganharam novas molduras e os segredos dos “primeiros tempos” são relevantes para a composição de estratégias de resistência política frente ao novo Estado surinamês.

Diante dessa situação, José Jorge de Carvalho pergunta: “A quem pertence o segredo, afinal?” (Id. Ibidem, p. 219). Pertence aos atores do campo ou ao mundo acadêmico? A quem o pesquisador deve ser fiel? Quem é o traidor? Quem deu as informações ao pesquisador ou o antropólogo que revelou todo o código cultural em sua tese? Lembramos que o código cultural Saramaca seguindo uma forte tradição oral nunca é transmitido de forma integral, existe uma sugestão, um quase dito, ou seja, a sua transmissão não é feita de forma completa e universal. Enquanto o saber acadêmico busca informar em sua totalidade os códigos culturais que se está observando, sejam eles um segredo ou não, o acadêmico procura saber sempre mais e mais a respeito do seu campo de estudo (BOURDIEU, 1996). É como se fosse um esforço perene pelos segredos do campo, e por que não dizer que essa busca pelo conhecimento integral é uma tentativa de compor um poder especial? Afinal, o que é uma autoridade de um determinado campo de estudo? O que a obra de Price nos ensina acerca do segredo, é que a revelação e o uso deste sem o consenso do grupo estudado, pode trazer prejuízo das mais diversas ordens para a comunidade, além de colocar um dilema ético entre o pesquisador e os atores do campo estudado.

Da ligação entre estes dois interesses, do esconder e do revelar, resultam gradações e destinos da interação humana que permeiam todo o círculo social. O segredo exige daqueles membros que o compartilham confiança recíproca, porque a finalidade do segredo é a proteção. A medida que o segredo dos Samaraca é revelado por parte de uma tese acadêmica, a ocultação de suas estratégias políticas, os rituais de transferência de conhecimento, as táticas de luta ficam enfraquecidas e sujeitas a um melhor

controle por parte do Estado e de outros adversários deste povo. Como afirma Simmel: “A fragilidade das sociedades secretas está em que os segredos não se sustentam para sempre” (2011, p. 150). Exatamente por esse aspecto de fragilidade que tem o segredo, existe a necessidade de se ter um zelo na transmissão das informações. Segundo Simmel, uma forma efetiva de zelo neste aspecto é a prática do silêncio, ou melhor, de guardar silêncio acerca daquilo que só pertence efetivamente aos membros de uma sociedade específica. Nos períodos em que novas ideias, novas religiões, novos pactos, novos conteúdos da vida emergem contra os poderes instituídos, faz-se necessário o surgimento de ordens secretas para preservar o germe destas novas ideias e proteger os seus membros. Assim, na preservação de segredos por parte de uma sociedade secreta, constitui- se necessário executar aquilo que Goffman (2009) chamou de “lealdade dramatúrgica”, ou seja, os membros da equipe não devem trair as obrigações morais acertadas entre si.

Como sócio da sociedade religiosa pesquisada, a UDV, percebo que muitos trabalhos acadêmicos vão na vereda percorrida por Richard Price. Ou seja, buscam revelar histórias obtidas por meio de gravações (CD’s, arquivos digitais etc), que não foram sequer memorizados dentro do ritual pelo pesquisador (a). Como se fosse a única coisa possível ou digna de se fazer em uma pesquisa acadêmica em relação às religiões. Vê-se que é um retorno ao exotismo praticado por cronistas e por etnógrafos de séculos passados e que resultou, entre outras coisas, no desenvolvimento do etnocentrismo.

1.4 Análise restrita as sessões: necessidade de decolonização