• Nenhum resultado encontrado

O culto de mistérios: o mistério de Elêusis

Durante quase dois milênios os mistérios de Elêusis foram celebrados anualmente no mês de setembro (com exceção de um ano), em benefício de iniciados cuidadosamente eleitos. Os únicos que não podiam participar do ritual eram aqueles que tinham cometido assassinatos. Os testemunhos dos que tiveram o privilégio de participar deste ritual, entre eles renomados filósofos e poetas da antiguidade grega, eram unânimes em ressaltar a singularidade do que ocorria neste evento (WASSON, 2013).

No entanto, até o momento não se sabe claramente o que é que levava os participantes dos mistérios de Elêusis a uma sensação e a um sentimento tão sublime, a ponto de ser considerado uma experiência divisora de águas em suas vidas. Robert Gordon Wasson, Albert Hofmann e Carl P. Ruck acreditam que o mistério-chave era o uso de um fungo psicoativo encontrado nas raízes do trigo que cresce nas colinas do templo, hipótese apresentada no livro “Camino a Eleusis: una solución al enigma de los misterios”.

Além de toda uma representação no ritual em relação ao trigo, a narrativa documentada dos participantes dá conta de uma experiência

ritualística transcendental, que é muito comum em descrições de usuários de psicoativos, membros de religiões que os tem como sacramento.

Do que se trata o grande segredo dos mistérios de Elêusis? O que acontecia no interior do grande templo grego que em quase dois mil anos ninguém rompeu a barreira do silêncio? Qual era o segredo que fazia com que os participantes do ritual, ocorrido uma vez ao ano no mês de setembro, tivessem um contato transcendental tão forte e intenso que lhes mostrava a morte não como um estágio final, mas sim o início de uma nova vida? Para além da experiência única que ocorria neste lugar, existe um outro fator fundamental nesse misterioso ritual guardado em segredo por dois milênios: o uso de um psicoativo (FORTE, 2013).

Este fato recupera para a história da religião ocidental o lugar dos psicoativos justamente na civilização que moldou esta cultura, os gregos. Muitos dos pensadores que contribuíram na consolidação da democracia, do direito, da filosofia, do teatro, do pensamento racional, da matemática participaram deste ritual e classificaram como a experiência mais significativa de suas vidas. Mas por que estes acontecimentos em Elêusis foram varridos para fora da história? Que forças omitiram a chave que abria aos participantes do ritual a porta dos encantos divinos? (FORTE, 2013).

Complementando esta questão Huston Smith (2013), eminente historiador de religiões comparadas, coloca duas perguntas que considera pertinentes para examinar a condição humana criada pelos gregos naquele momento e os tempos atuais: pode a humanidade sobreviver sem um Deus? É possível perfurar a barreira criada pelo secularismo, cientificismo e o materialismo? Se a resposta à segunda pergunta é negativa, cabe uma terceira pergunta: - É necessário construir algo semelhante aos mistérios eleusianos para que a experiência ocorrida nos coloque fora da caverna de Platão e possamos ver a luz? E será possível fazer uso criativo e seguro dos psicoativos sem agravar o problema das drogas?

Estas questões são intrigantes e resumem bem a problemática que gira em torno da questão do uso dos psicoativos na atualidade. Praticamente todos os pesquisadores do campo dos psicoativos, independente de ser da área de humanas ou de saúde, têm estas questões como centro de suas reflexões, ou seja, que tipo de sociedade está sendo construída sem o

contato com estas plantas? E, por outro lado, que tipo de ensinamentos podem ser tirados com seu uso, já que um dos seus mais fortes efeitos é a reflexão em torno da conexão homem e natureza. Em relação à terceira questão colocada por Huston Smith, iremos discorrer a respeito do uso seguro, responsável e que alcançou a credibilidade social como uma consequência lógica da forma como os lideres fundadores das religiões ayahuasqueiras conceberam suas doutrinas e a disseminaram sob essa terra nos capítulos 4 e 5, quando faremos uma análise do longo processo de legitimidade destas religiões e, consequentemente, o processo de legalização do chá.

É importante trazer ao debate as pesquisas que giram em torno do mistério de Elêusis, pois abre-se uma porta importante acerca do uso de psicoativos no mundo antigo, antes de sua utilização cair em desuso com a ascensão do cristianismo ao status de religião de Estado. A partir de uma releitura do mito de Perséfone, Ruck (2013) observa que em um momento da narrativa do ritual de Elêusis, existe uma revelação de uma planta sagrada que seria a responsável pela evolução da vida civilizada. Esta planta é uma espécie de derivado do trigo que cresce nas encostas do templo, e depois de uma análise feita em laboratório por Albert Hoffman, ficou claro que existe nas raízes desta planta fungos que têm o princípio ativo semelhante ao encontrado no cogumelo, a psilocibina.

Tendo este estudo de Hofmann como referência, Ruck buscou encontrar pistas, indícios, sinais do uso de um psicoativo no mistério de Elêusis. Se diz mistério, o segredo guardado do ritual em Elêusis, porque nada poderia ser dito a respeito dos acontecimentos sob pena da pessoa ser condenada à morte (RUCK, 2013); além disso, os seus participantes tinham uma experiência que não conseguiam significar com palavras. Algo muito forte acontecia dentro do templo, que provocava visões intensas e marcantes entre os iniciados, mas também náuseas, vertigem e suor frio. Além da própria interdição de se revelar o acontecimento, existia a própria questão da experiência acontecida aí, estar para além de uma linguagem compreensível para traduzir isto.

Os eventos ocorridos sugerem o uso de um psicoativo, dois acontecimentos registrados em documentos por alguns participantes,

corroboram para o desenvolvimento deste pensamento: o primeiro está ligado à ingestão de uma bebida antes do ritual, cujos componentes permanecem um mistério, pois nada se tem registrado a este respeito; e o segundo é o relato de aristocratas estarem reproduzindo a cerimônia em suas residências sob estado de embriaguez, fato que escandalizou a sociedade naquele tempo.

O segredo deste preparado foi bem guardado até os dias atuais, restando indícios para uma reconstituição do que possivelmente seria o Kykeon, a bebida ingerida no ritual. Indícios apontam para o uso da cevada do trigo como componente central do preparado. Por este tempo, uma das características das sociedades iletradas era a transmissão por mecanismo oral dentro de grupos pequenos e com restrições de aceitação para novos membros. Os herbolários eram um tipo de organização com estas características, um grupo pequeno que conhecia o segredo medicinal e farmacológico de um grupo de plantas, além de conhecer profundamente as técnicas de extração de seus compostos e a combinação entre eles, cujo conhecimento era repassado de forma lenta e gradual para as novas gerações.

O etnomicologista Robert Gordon Wasson (2013) em concordância com Carl Ruck, destaca o componente do segredo a respeito do mistério de Elêusis, já que era obrigatório guardar silêncio no que ocorria ali dentro. Este segredo era mantido também com bases nas leis da Grécia antiga que eram severas em relação a sua revelação, somente no quarto século depois de Cristo é que os mistérios de Elêusis deixaram de existir. Ainda assim, o segredo do que ocorria ali ficou guardado até os tempos atuais quando Wasson, Hofmann e Ruck trouxeram ao mundo uma hipótese do que pode ser um dos segredos mais bem guardados da antiguidade.

Robert Gordon Wasson e sua esposa, Valentina P. Wasson, viajaram o mundo procurando culturas que fizessem uso de cogumelos mágicos, procuravam também a forma como essas culturas se referiam aos cogumelos. Estavam atrás de compreender o que poderia ser lido nas metáforas e na simbologia que os povos usuários faziam de seu uso. O culto aos cogumelos mágicos remonta a um período ancestral na história humana e, não por acaso, tem sobrevivido entre populações cujo mecanismo de

conhecimento e transmissão de conhecimento tem se baseado na oralidade. À medida que as culturas foram se tornando letradas e daí surgindo novas religiões e novas práticas religiosas, os cultos aos cogumelos mágicos foram ficando mais reservados às sociedades de cunho oral.

Wasson foi o primeiro ocidental a romper o segredo em torno dos cogumelos que era mantido assim por questões de segurança desde o tempo da colonização para ocidentais. No entanto, precisou de dois anos para ganhar a confiança dos nativos e obter o direito de participar de um ritual que tem na ingestão do cogumelo o centro do seu sacramento. Observou que para os mazatecos Deus se comunica por meio do cogumelo e que o culto moderno apresentava ideias cristãs. Além disso, percebeu uma serie de interdições relacionadas ao seu uso como, por exemplo, a abstinência de álcool e sexo por pelo menos quatro dias antes e após a ingestão.

Albert Hofmann foi convidado por Wasson a fazer investigações químicas e farmacológicas a respeito dos cogumelos. Após a extração e tentativa de isolamento dos princípios ativos, foram realizados testes em ratos e cachorros, porém os efeitos não foram observados. Hoffman se perguntou se os cogumelos estavam ativos e resolveu fazer uma experiência em seres humanos. A medida utilizada foi a mesma usada por curandeiros no México, ou seja, 16 pares de cogumelos ou cerca de 2,4g. A dose apresentou um forte efeito psíquico, o que levou o pesquisador a concluir que os seres humanos são mais sensíveis a substâncias psicoativas.

Para Wasson (1992), da mesma forma que para se compreender algumas práticas religiosas dos antigos astecas e maias tinha que ser examinado o uso de cogumelos sagrados, o mesmo poderia ser visto em relação aos mistérios de Elêusis, já que para ele a chave de se compreender este antigo ritual estava em um fungo encontrado no centeio do trigo chamado Claviceps purpurea. Citando um antigo escritor grego do século II D.C, chamado Elio Arístides, percebe que as descrições feitas a respeito das visões e do que se escuta durante o ritual grego era muito semelhante aos rituais que acompanhou com a xamã Maria Sabina100.

100 Maria Sabina era uma curandeira Mazatec, ficou conhecida como a “sabia dos cogumelos” e foi a primeira xamã a revelar segredos dos cogumelos a um ocidental, no caso o etnomicologista Robert Gordon Wasson.

Estudando a etimologia e o uso de algumas palavras, Wasson levanta a hipótese de que a palavra grega ekstasis, que significa a experiência da alma sair do corpo, foi cunhada sob efeito do que acontecia nos mistérios de Elêusis. Para o autor a experiência do êxtase não é produto de uma brincadeira ou mesmo de um momento recreativo, mas sim fruto do encontro com a divindade superior e, desta forma, observa a necessidade de ser recuperado o sentido primeiro do uso desta palavra.

Ressalta que os cogumelos mágicos são chamados pelos xamãs de “os pequenos que brotam”, “meninos santos” e “as coisinhas”, sempre em um contexto ritualizado (ESTRADA, 1984). A linguagem utilizada por seus usuários denotam respeito e carinho por estes agentes que são veículos que transportam até onde Deus está. Os usuários do cogumelo, entrevistados por Wasson durante e após uma velada em uma pequena aldeia no México, ressaltam que é um momento mais ligado ao sentir e às sensações, do que propriamente apreender qualquer tipo de conteúdo intelectual.

Por estas sensações que se apresentam no uso de cogumelos mágicos entre os mazateca no México e Guatemala, é que Wasson acredita existir uma semelhança no uso que os gregos faziam nos mistérios de Elêusis, mas também crer que por esta mesma razão o uso de uma espécie de porção foi guardado em segredo. Segredo que vem sendo estudado por estudiosos classicistas que ignoram a sua existência em tempos atuais, em uma rústica cabana nas florestas mexicanas, embora não o ignorem nos templos gregos.

Albert Hofmann narra que ao encontrar Wasson em sua residência, este lhe fez uma pergunta intrigante: “Creio que o homem da Grécia antiga encontrou uma forma de isolar algum agente do cornuzuelo que tem propriedades semelhantes ao do LSD e da psilocibina, o que pensas a respeito?”. Hofmann ficou de examinar a questão e apresentou a sua resposta em um artigo publicado no livro “Camino a Eleusis: una solución al enigma de los misterios”.

O cornuzuelo é um fungo que parasita os cereais como a cevada e o trigo. Entre as diversas denominações dadas pelos seus usuários e conhecedores de suas propriedades dois se destacam para o exame aqui proposto: centeio embriagado e grão enlouquecido. Estas denominações

sinalizam para um conhecimento intimo de suas propriedades psicoativas entre os herbolários.

A partir do desenvolvimento da ergonovina, que é uma das substâncias isoladas do cornuzuelo, Hofmann chegou ao ácido lisérgico e derivados. Em principio, Hofmann queria desenvolver a ergonovina como uma medicação usada para conter hemorragia uterina pós-parto. Além disso, passou a desenvolver uma outra medicação com propriedades estimulantes da circulação e respiração a partir de um derivado do ácido lisérgico, no caso em questão a dietilamida do ácido lisérgico (LSD).

No entanto, foi a partir de uma autoexperimentação que Hofmann descobriu as propriedades enteogênicas101 do LSD. Uma experiência intensa que narrou no livro “LSD, minha criança problema”102. O autor destaca que a parceria entre ele e o etnomicólogo Wasson se iniciou pelo isolamento do principio ativo do cogumelo, no caso a psilocibina. Após isto, fez uma outra pesquisa com Wasson, buscando isolar o principio ativo das sementes do

ololiuhqui. Para surpresa do pesquisador o princípio ativo era o ácido

lisérgico, muito próximo da dietilamida ácido lisérgico.

A questão a ser resolvida agora é se a ergonovina era também psicoativa, já que sua disposição química é muito semelhante ao ololiuhqui e ao LSD. Mas se tem propriedades psicoativas por que não se observa isso no uso como medicamento por parte das pacientes que o utilizaram no parto? Segundo Hofmann, a não observância dos efeitos psicoativos está relacionada à baixa dose utilizada, aproximadamente 0,1 a 0,25 mg, insuficiente para provocar psicoatividade, posto que a dose psicoativa do LSD é de 1 a 2 mg por via oral. Para resolver esta questão, o pesquisador resolveu aplicar em si mesmo uma dose de 2 mg de ergonovina.

Os resultados, ainda que inferiores a uma dose de LSD e de

ololiuhqui, apresentaram uma leve psicoatividade da ergonovina. Uma outra

propriedade interessante da ergonovina é que seus princípios psicoativos podem ser diluídos em água, o que segundo Hofmann demonstra que com as

101 O grupo de pesquisadores composta por Hoffman, Wasson, Ruck, Forte, Smith e outros nomeiam as substâncias que tem o poder de provocar efeitos transcendentais de

Enteógenos.

técnicas conhecidas naquele momento pelos antigos gregos era facilmente possível se fazer um psicoativo a partir da ergonovina. Portanto, em conclusão à pergunta feita por Wasson, é possível os gregos antigos terem desenvolvido um psicoativo a partir do cornuzuelo do trigo e da cevada.

2.5 A redescoberta dos psicoativos e a perseguição a sua utilização