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O treinamento ético de um sócio da UDV se baseia primordialmente nos exemplos que o guia espiritual José Gabriel da Costa, fundador do CEBUDV, deixou para os primeiros discípulos que conviveram com ele. Estes inúmeros exemplos de conduta foram e são retransmitidos para as gerações seguintes de sócios com o objetivo de estimulá-los a terem uma visão ética da vida42. A etimologia da palavra ética vem de ethos que significa, entre outras coisas, a formação do caráter, do modo de ser de um indíviduo, percebemos na travessia da pesquisa que a coerência apresentada por Mestre Gabriel entre a palavra e o praticado se constituiu no molde ético de um sócio do CEBUDV. Segundo Durkheim (1989), a natureza das religiões é essencialmente social e sua essência estaria na divisão do mundo em fenômenos sagrados e profanos. A religião se estrutura a partir de uma ordenação do sagrado e, portanto, em ritos e práticas derivados das crenças relativas ao sagrado. Ainda, segundo o mesmo autor, a sobrevivência de uma religião depende diretamente da participação de seus adeptos nas práticas e símbolos de suas crenças por meio dos rituais. Tendo essa passagem como referência, cito o mestre Flávio Mesquita43:

[...] existem três coisas na UDV que são fundamentais para considerarmos ela uma religião de fato e de direito. Não basta beber o chá, nós precisamos de uma

42 Ao longo do texto iremos apresentar alguns destes exemplos. Além do mais, o capítulo 7 trata dos muitos exemplos que foram deixados por esse homem durante as diversas fases da sua vida.

43 Fala extraída da reunião ordinária de audiência pública na Câmera Federal dos deputados acerca do uso ritual da Ayahuasca, no dia 24 de maio de 2010. Na época, o mestre Flávio Mesquita ocupava o cargo de presidente da Diretoria Geral (DG).

doutrina, de uma orientação para que esse chá tenha o efeito psíquico que a gente deseja para o crescimento da humanidade. E precisamos, justamente porque é luz, paz e amor, de uma comunidade constantemente no exercício da paciência, da tolerância e do amor para que ela cresça realmente com substância e que isso passe para as famílias.

Neste sentido, o antropólogo americano Clifford Geertz (1989) afirma que a religião não é somente metafísica, visto que cria entre os seus membros o compromisso emocional, orientando a conduta humana, levando o indivíduo à formação de elementos valorativos e morais que compõem o

ethos; soma-se a isto a constituição da visão de mundo que é a busca pelo

conhecimento e por valores existenciais. A religião seria, portanto, uma ciência prática que entrelaça o ethos e a visão de mundo. Para a criação de um ethos e uma visão de mundo dos sócios da UDV, conforme depoimentos colhidos, faz-se necessário um processo de evolução espiritual que seria o aprimoramento moral da consciência e, consequentemente, sua prática na realidade.

Acrescenta-se ainda a esse processo de aprendizado a introjeção do corpo doutrinário da UDV, que é ensinado de forma lenta e gradual aos seus sócios por meio de um dispositivo oral de transmissão de conhecimento, esse processo com o tempo poderá vir a se constituir em uma ética de vida. O sociólogo Émile Durkheim (1989), afirmava que para que uma religião se tornasse realidade era necessário um processo de sistematização e de moralização das práticas e das representações religiosas. No entanto, consideramos que a translação desse aparato ético-moral do CEBUDV para qualquer que seja o escopo da ciência não é tarefa fácil, ainda mais quando se propõe analisar de uma perspectiva de um “pacto etnográfico”.

No caso dessa pesquisa científica, no bojo desta proposta decolonial, pretende-se trabalhar com honestidade na informação, isto significa não ter medo de lidar com a informação por mais polêmica que ela seja. Aqui também não se pretende partir de um pressuposto, de uma ideia esperando que os fatos as confirmem. Mas estar aberto para que se os fatos negarem, o pesquisador tenha a iniciativa de procurar outras possibilidades de explicação. Ou seja, ser cientificamente honesto também significa estar aberto a pensamentos e ideias diferentes daquelas pré-concebidas e não ter

medo delas, não negá-las, mas trazer a diferença e trabalhar com ela, haja vista que um trabalho deste é escrito para um público interno, mas principalmente para o público externo. No nosso entendimento, faz-se necessário a consideração e a leitura da opinião do público externo para que seja dado o devido esclarecimento a respeito da UDV.

O que se busca aqui, portanto, é fazer o que Enrique Dussel (1996, 2005) nomeou de “escuta ética”, ou seja, reconhecer o “outro” a partir de uma narrativa ética. Este tipo de narrativa se coloca naquilo que o autor chama de projeto da transmodernidade, que se inicia com a escuta ética dos povos atingidos pelo eurocêntrismo e pelo colonialismo. O que se coloca em questão é a pulsão de alteridade que não pode ser apreendido pelos mecanismos da totalidade. Portanto, o “outro” aparece aqui questionando a totalidade, constituindo um outro caminho denominado trans-moderno. É um pensamento para além da totalidade, se nega os regimes de verdade que são produzidos a partir de um projeto eurocentrado. Dessa forma, é possível dizer que a escolha metodológica apreendida aqui se trata de uma opção política do pesquisador que está se propondo a falar não sobre um suposto objeto de pesquisa, senão estabelecer um diálogo horizontal com sujeitos históricos, eles mesmos capazes de narrar suas experiências pessoais e a história coletiva desta religião.

Uma outra coisa importante a se questionar trata-se do “realismo ingênuo” que patologiza a utilização de um sacramento que provoca os chamados EAC (Estados Ampliados de Consciência) e, consequentemente, criam visões etnocêntricas das culturas que adotam estas práticas44. O uso de ferramentas ou técnicas que induzem EAC podem deixar a mente mais aberta às mensagens sociais do grupo, mas não tem o poder de fazer uma “lavagem cerebral” como alguns “pesquisadores” insinuam. Assim, é necessário adotar um ponto de vista que diferencia substâncias perigosas das que tem potencial terapêutico. Colocar psicoativos da família da triptamina45, em que existem milhares de pesquisas comprovando que seu

44 Não somente as religiões que se utilizam da Hoasca como sacramento passam por isto, mas também culturas tradicionais e religiões que utilizam o cogumelo (psilocibina) e o cacto peiote (mescalina) são rotuladas desta maneira.

45 Está família é basicamente composta pelas seguintes substâncias psicoativas: DMT (dimetiltriptamina), peiote (mescalina), cogumelo (psicilocibina), LSD (ácido lisérgico), Iboga

uso é seguro e não causa adicção, podendo ser utilizado com eficácia em vários tipos de terapia, no mesmo saco de estimulantes e apaziguadores46 demonstra um desconhecimento farmacológico destas substâncias (ESCOHOTADO, 1998). Portanto, fazer esse esclarecimento e essa diferenciação é fundamental em um trabalho deste tipo dada a possibilidade de situar aqueles que não tem conhecimento teórico e empírico desta realidade abordada47.