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O objetivo deste capítulo é o de tentar articular alguns fundamentos teóricos para uma problematização da questão da identidade na modernidade, pois creio que tal questão encontra-se entre as fundamentais, caso queiramos, nesta tese, desenvolver tanto os pressupostos para uma análise, bem como a análise mesma das condições subjetivas dos profissionais que desenvolvem suas atividades nos centros de atenção psicossocial.

Não se trata aqui, pois, de uma análise crítica das concepções de identidade na modernidade, algo para capítulo posterior, mas sim tentar estabelecer um solo que possa servir de base para tal análise crítica.

Vejo em alguns aspectos do pensamento de Giorgio Agamben (2009) a possibilidade deste polo dialógico procurado, pois creio que seu pensamento abre margem para pensarmos sobre uma subjetividade não identitária:

Le sujet ne serait ni le sujet consciente, ni la puissance impersonelle, mais ce qui se tient entre les deux. La désubjevation n’a pas seulement um aspect sombre, obscur. Ele n’est pas simplement la destruction de toute subjevité. Il y aussi cet autre pole, plus fécond et poétique, où le sujet n’est que le sujet de sa prope désubjectivation17

(AGAMBEN, 2009, última página).

Nesta tarefa, decidi partir do primeiro livro por ele publicado, não exatamente por ser o primeiro, mas sim por me parecer conter matrizes fundamentais que posteriormente Agamben desenvolverá em suas outras obras.

17 O sujeito não será nem o sujeito consciente, nem uma potencia impessoal, mas aquele que se encontra entre os dois. A dessubjetivação não é apenas um aspecto sombrio, obscuro. Não é simplesmente a destruição de toda subjetividade. Ela encontra-se em um outro polo, mais fecundo e poético, no qual o sujeito não é nada mais do que o sujeito de sua própria dessubjetivação (AGAMBEN, 2009,ultima página, tradução nossa).

Tal livro, L’uomo Senza Contenuto18, foi publicado pela primeira vez em 1970, em italiano. Pelo que sei não existe dele tradução para o português, tendo conseguido a edição italiana de 1994.

Este livro de Agamben é, a princípio, um livro sobre a arte, embora seu âmbito ultrapasse a questão da arte em si. Nesta análise, Agamben (1994) parte do que denomina crise da tradição, com sua – tanto inerente como característica – ruptura da transmissibilidade da cultura, e de como a questão da arte na atualidade pode ser interpretada a partir desta ruptura. Ou seja, das transformações que a arte sofreu durante e após este processo de ruptura.

Situa ele a tradição e a transmissibilidade da cultura como vigentes de modo predominante até a alta Idade Média, pelo que se deduz que esta ruptura começa a se esboçar com os primeiros alvores da modernidade. Portanto, caso isto seja correto, trata ele, ao fundo, da modernidade; e, além da arte em si, trata também da condição humana na modernidade.

Esta crise, esta perda da transmissibilidade da cultura possui uma inspiração benjaminiana clara, na medida em que Benjamin centra grande parte de sua obra na morte progressiva da narratividade, a qual é situada como um elemento central e vital na transmissibilidade da experiência.

A estrutura que vai se revelando à leitura deste livro, como nota Sueli Cavendish (2008) é uma estrutura constituída de caminhos que se bifurcam e entrecruzam-se entre si. Nele vemos inúmeros conceitos que se dicotomizam, que em aparência são cisões divergentes, mas que em seguida são buscadas certas sínteses, ou melhor, novos pontos de interconexão. Deste modo me parece ir tornando-se evidente que um de seus fulcros é exatamente uma crítica da cisão em si e a busca de novos pontos de conexão, no que também ressalta um delineamento benjaminiano, já que no arcabouço estrutural deste livro de Agamben existe latente a procura da historicidade do tempo, contraposta a um tempo linear e vazio, contraposição que fica particularmente clara nas teses de Sobre o Conceito de História de Benjamin, como ilustrada por este pequeno fragmento da tese 14:

A história é objeto de uma construção cujo lugar é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de

18

‘agoras’, que ele fez explodir do continuum da história (BENJAMIN, 1994, p. 229-230).

Este agora é este presente que se lançando na experiência do passado, a atualiza em um agora, em um ponto de conexão de um presente que se carrega de sentido e não fica perdido na linearidade homogênea de um tempo vazio de significado, suspensa entre passado e futuro.

Portanto, à sua leitura, é importante nos acautelarmos quanto a qualquer parcialidade, pois, o que agora está indo para a direita em seguida gira à esquerda, encontrando cada ramo um novo ponto de interconexão com o ramo do qual bifurcou-se, ponto este que, ao mesmo tempo, é o ponto onde outra cisão se origina.

Antecipando aqui, algo que, embora nesta etapa fique talvez ainda incompreensível, a própria ideia de cisão sobre a qual trabalha parece ser algo ilusório, somente possível de ser entendida caso considerarmos que caminhar por caminhos que se bifurcam e entrecruzam pode unicamente acontecer em uma dimensão não apenas espacial, mas sim como também dotada de uma particular temporalidade. E, creio que podemos considerar que é justamente a concepção de uma temporalidade linear que ao fundo é questionada, pois somente nela é que podem se estabelecer cisões de algo que na origem e ao fim encontraria uma unidade intrínseca.

Enfim, é esta concepção de uma unidade originária o fundamento crítico da ideia de cisão. Portanto, o livro tem uma pergunta implícita: o que rompe a unidade e a reúne novamente não terá sua verdade em uma outra concepção de tempo que a possibilite? Um tempo paradoxalmente atemporal, no sentido em que o presente é um agora sintetizador do passado com este presente.

Mas, apenas trilhando estes caminhos possíveis em nossa temporalidade moderna é que teremos, talvez, a chance de encontrar os sinais obscuros que nos levariam para além de um caminhar perdido na mera linearidade temporal da modernidade.

Talvez seja trilhando pelo temporal prosaico que consigamos atingir a uma outra temporalidade, uma temporalidade verdadeiramente

histórica; olhando pelas frestas dos tapumes que encerram tais trilhas,

em busca “da verdadeira imagem do passado que perpassa, veloz” (BENJAMIN, 1994, p. 224).

Este esforço pela lucidez possível em meio a todos os obstáculos encontrados no caminho, esta concretização na própria escrita da perspectiva histórica benjaminiana, me parece ser o que faz deste livro

produto bem mais do que de um mero interesse intelectual, mas de algo mais essencial, de um verdadeiro sentido do escrever e do produzir; de um interesse, aqui não do artista, mas sim do autor. Interesse este que pode ser interpretado como a vitalidade criadora imperativa que busca uma transmissibilidade autêntica, uma historicidade essencial, pois é ela que resgata o autor do perigo de cair no abismo de um vazio.

Portanto, acredito que possamos ver neste livro uma meta-

narrativa de seu próprio objeto, no caso a arte, resgatando-a em seu

sentido mais clássico e ameaçador. Talvez ele próprio exemplifique aquilo a que vem; unindo forma e conteúdo, ainda que de modo provisório, naquela que talvez seja a união perdida e prefigurada que pode redimir o ser humano reconectando-o com a história.

Creio que sei que o que até agora disse pode parecer obscuro, tanto em seu sentido em si como em relação ao propósito desta tese. Para tentar colocar uma luz provisória, parece-me que a relação de tudo isto com a questão da identidade na modernidade é a de que a questão da identidade radica-se de um modo dicotômico exclusivo entre forma e conteúdo. Que existe uma exacerbação da forma em detrimento do conteúdo. Como a luz aqui é provisória, deixo para mais tarde explicitar o que entendo por forma e conteúdo da identidade.

Contudo, de alguma forma o título do livro: O Homem Sem

Conteúdo, aponta desde já para a ideia de um vazio subjacente, que, em

si, assinala a predominância da forma e a presença subjacente ou manifesta do niilismo na modernidade. Mas, não é demais deixarmos de salientar que a relação nele antevista e desejada entre forma e conteúdo, significados a princípio opostos, não é de mútua e eterna exclusão, mas sim uma relação dinâmica; e a questão crítica fundamental no livro proposta se cria justamente frente à constatação da ruptura desta dinâmica.

3.2 POIESIS E OS CONCEITOS ARENDTIANOS DE AÇÃO E