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Soberania e poder fálico, pai e “lei”, universo pré-linguístico e universo linguístico, real e simbólico. Natureza e civilização. Zoé e bios. Porque a zoé pré-linguística somente pode ser uma bios através da linguagem. Porque a vida proto-linguística, em seu pulsar emocional, não encontra neste mundo a possibilidade de ser bios, sem que se submeta ao poder do simbólico? Qual a possibilidade de uma bios assimbólica, que no próprio simples fluxo da zoé consiga encontrar no mero ser sua qualificação? Por que esta qualificação encontra-se à mercê de poderes externos a este mero ser? Qualificar ou não qualificar, eis aqui a decisão básica permitida ao poder soberano. Como raptar este poder de qualificação e torná-lo algo intrínseco ao mero ser? Em outras palavras, como adquirir este senso de amparo, o qual é impossível frente ao poder imponderável do soberano, e que, em tais condições, é necessária sempre uma irrevogável submissão, mas mesmo esta não apaziguadora da ameaça?

Mas, que submissão é esta se não passa pela central questão da identidade? Identidade em duplo sentido: sentido de identificar-se com o soberano e sentido de identidade enquanto senso de eu. Qual o senso de eu possível que prometa apaziguar o desamparo, senão o de identificar- se com o soberano?

Mas o soberano, hoje em dia, não pode de modo algum ser confundido com o poder do estado. O soberano, hoje em dia, pode instalar-se de modo sub-reptício nas discursividades. Talvez seja importante nos acautelarmos para não incidir no risco de que possamos nos enganar com conteúdo libertário de algumas discursividades, pois ao se tornarem hegemônicas estariam automaticamente livres para estariam automaticamente para assumir o papel fálico da lei, arrogando-se o poder soberano de qualificação e não qualificação: entre definir o que é

zoé e bios. Caso de lembrarmos de Bauman (1999a), quando defende

que quanto mais a linguagem articula qualificações, mais produz o inqualificado, o ambíguo. Quanto mais possibilidades de identidade, mais excessos se verificarão, e tais excessos, em busca de uma legitimação, mais discursividades identitárias proporcionarão.

Uma certa maneira de questionar-se identidades tradicionais, questionar este em si fundamental e necessário, pode estar produzindo múltiplas possibilidades identitárias que certamente podem atingir uma vitória sobre as rígidas possibilidades identitárias tradicionais, mas que podem no fundo estar seguindo a mesma lógica identitária básica à qual questionam. A questão fundamental centra-se em se é necessária uma

identidade. Ou, em outras palavras, se é necessária uma identidade, por que uma identidade é necessária, são necessárias políticas identitárias? Do que ela nos protege, do que ela nos tolhe. Do que abdicamos ao nos deixarmos acolher sob uma identidade discursivamente construída? Creio que estamos frente a uma sempre presente necessidade de comunidade, de proteção, de força. Mas, ora, isto somente é necessário caso estivermos sob forças ameaçadoras. De modo algum critico os movimentos que tentam libertar-se de uma discursividade tradicional, mas creio que talvez seja importante que se tenha uma visão crítica mais ampla sobre o que está acontecendo no mundo atual. Será que o poder soberano, sob uma aparente crítica, não estaria se esfacelando em pedaços vivos, qual ameba, mantendo cada fragmento vivo o poder de decidir entre bios e zoé? Não será isto o que, de alguma forma, imaginamos perceber ou pressentir um certo “neo-autoritarismo” em algumas posições pós-estruturalistas mais exacerbadas?

Desta forma, o que busco neste capítulo é abrir a possibilidade, não de uma posição rígida e intransigente, mas sim de tentar construir um polo dialógico que me permita perguntar se a identidade não corre hoje o risco de tornar-se, ou mesmo de já ser, um dispositivo biopolítico, que proporciona, que cria, que constrói, no sentido em que Hacking (1999) dá ao construcionismo em seu livro The Social Construction of

What? (Harvard University Press, 1999). O sentido atribuído por

Hacking à construção social implica que as discursividades possam de fato criar uma realidade social, que os discursos podem se consubstanciar enquanto fatos sociais, como analisa ele vários diagnósticos psiquiátricos. Fatos sociais com os quais as pessoas podem se identificar, ratificando assim a origem daquilo com que elas se identificam, na medida em que a reproduzem e também na medida em que essa reprodução é reapropriada discursivamente como uma afirmação de uma suposta verdade do discurso.

O que penso, ou melhor, o que me aflige, é que identidade hoje em dia pode assumir exatamente esta conotação, podendo constituir-se nas várias formas em que Identidade hoje se diversifica, tanto teoricamente, como em conteúdos identitários, os quais podem reificar- se seja enquanto uma ideia hegemônica da inevitabilidade de Identidade, como de uma ampla gama de opções identitárias, sejam elas rígidas ou flexíveis, estáveis ou mutantes, sejam pessoais ou socioculturais, que passam para uma dinâmica mercadológica de colocar à disposição do público uma série de opções de “consumo”. Caso tais identidades possam ser uma expressão de um desenraizamento do ser em relação ao

ser, pergunto-me se não seriam elas uma expressão sub-reptícia de uma

pura zoé subjugada, em simulacros de bios, frágeis e inconsistentes, e que tenham que tornar-se o ponto de qualificação do indivíduo, para que não recaia na simples zoé, na vida nua que, na claridade ou na obscuridade, nunca deixa de rondar.

Ou seja, o que me pergunto, é se identidade hoje em dia em muito não se aproximaria da ideia de “casulo protetor” como proposta por Giddens (2002) em Modernidade e Identidade, ou em identidades defensivas, que buscariam manter uma imaginária bios, como proteção de uma zoé que talvez nunca deixe se anunciar plenamente, mas que talvez seja a presença pressentida que poderia estar no fundo de muitas angústias?

Mas me avanço demais aqui, antecipando aquilo que deveria ser parte já do capítulo seguinte.