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Como dissemos, iniciaremos pela análise que Kristeva faz da linguagem em seus componentes semióticos e simbólicos. Mas antes é necessário assinalar que o uso que faz de tais termos não identifica-se com outros usos, como os derivados da semiótica tradicional ou os vários usos do termo simbólico, embora em inúmeros momentos bordeje com o registro lacaniano do simbólico.

Inicialmente, e em termos simplificados, poderíamos dizer que o

semiótico deriva-se dos elementos constituintes do mundo pré-verbal,

indiferenciado e pulsional – prévio à aquisição da linguagem – do ser humano, no qual o signo não existe. Já o simbólico refere-se à linguagem em si, ao verbal, ao signo, ou à fala.

Mas, embora diferencie ela estes dois aspectos, a linguagem não se situaria unicamente dentro do simbólico, mas conteria simultaneamente elementos simbólicos e semióticos, muito embora ela

situe um momento a que denomina tético32 na evolução do ser humano, onde este passa a perceber-se como diferenciado em relação a uma

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Tético para Kristeva é justamente este momento de ruptura de uma vivência de indiferenciação da criança com o corpo materno, vivida de modo semiótico, não linguístico, em direção a uma diferenciação e a uma aquisição da diferenciação. Momento marcado pela assunção da criança à linguagem, ou à esfera simbólica.

indiferenciação inicial com a mãe, momento este que é o ponto de passagem que lhe permite aceder ao simbólico e, portanto à linguagem.

Contudo, o conteúdo pré-verbal e pulsional próprio ao semiótico persistiria em não somente permear, como mesmo permitir, este simbólico. Este processo de subjetivação constante através da linguagem Kristeva chama de “subject in process – on trial”. Ou seja, o processo subjetivo seria um processo em permanente construção e não se esgotaria dentro de uma consciência de si que poderia se tornar autônoma em relação à sua origem, pois esta não ficou perdida em um passado diacrônico, mas persiste sincrônica com o atual.

O semiótico e o simbólico estariam em constante interação na produção do processo de significação; não existiria, pois, uma linguagem que seja apenas simbólica, mas sim uma linguagem que estaria intrinsecamente vinculada também a elementos semióticos. Isto implica também na impossibilidade de um sujeito exclusivamente simbólico, e, por conseguinte, em uma concepção de sujeito onde os processos semióticos e simbólicos estão em constante interação, em um processo de produção constante. Portanto, o processo linguístico seria em si, também, um processo de produção contínua de subjetivação.

É a partir de tal concepção que poderíamos então melhor compreender a crítica que Kristeva faz das teorias tradicionais sobre a linguagem radicando-se esta, sobretudo, na ênfase que tais teorias depositam sobre o aspecto simbólico e como apenas estrutura de signos com regras intrínsecas, autônoma em relação ao sujeito. As teorias tradicionais sobre a linguagem, pois, tomando-a como uma estrutura autônoma em relação ao sujeito, tentam compreendê-la como uma estrutura de significação de certa forma autorreferente, prescindindo do sujeito.

O que Kristeva nos assinala continuamente é que o sujeito é o fulcro da linguagem, e que o processo de produção da linguagem praticamente indiferencia-se do processo de produção do sujeito. Desta forma a linguagem apenas teria sentido na medida em que pode constituir-se como tal dentro de uma interação linguagem-sujeito, na qual um não poderia prescindir do outro. Ou seja, falarmos em linguagem somente teria sentido se a relacionarmos com o sujeito desta linguagem. E que falarmos de sujeito, isto por sua vez também somente teria sentido enquanto entendido como constituído pelo processo de

significação dentro da linguagem que produz33.

33 Aqui se ressalta uma diferença fundamental entre linguagem e fala, como ela nos alerta em El Lenguaje, Ese Desconocido (1998). Este título certamente não é casual, pois sua

Para Kristeva, pois, linguagem somente faz sentido enquanto relacionada com o sujeito que a produz. Linguagem, para ela, é uma produção contínua de significação, mas esta significação, ou processo

de significação teria uma origem que extrapola e diferencia-se em muito

de apenas uma necessidade comunicacional. A linguagem estaria, pois, impregnada pelo pulsar do semiótico do chora34 e não apenas por necessidades objetivas comunicacionais.

A linguagem não seria, portanto, apenas um meio de transmissão de informações entre indivíduos, mas sim, bem mais, um meio através do qual o próprio sujeito se constitui como tal. E o sujeito se constitui como tal através da linguagem na medida em que esta signifique também uma forma de expressão e simbolização do inarticulado pré- verbal que é, ao mesmo tempo, sua pré-condição e sua a priori-negação.

Ao mesmo tempo em que a linguagem é uma afirmação, também seria permeada por uma negatividade35. Uma linguagem sem negatividade seria uma linguagem que imaginariamente poderia

prescindir do semiótico em sua constituição. A negatividade implícita na linguagem provém de seu componente semiótico, alheio, a princípio, a qualquer codificação simbólica. Creio que é exatamente esta questão da

negatividade o que permite a Kristeva as críticas já antes mencionadas

das teorias tradicionais sobre a linguagem: ou seja, a de que tais teorias compreendem a linguagem como uma metaestrutura com uma lógica interna autorreferente e que bastaria a si mesma, independente do sujeito que a enuncia, e não um complexo sistema dialético entre elementos

semióticos e simbólicos, e que seria dentro deste sistema que se constrói

o sujeito de modo constante, o sujeito em processo.

intenção nos parece ser a de quebrar uma certa visão ingênua sobre a linguagem. A fala seria a linguagem produzida pelo sujeito, enquanto linguagem seria a língua enquanto estrutura. Uma visão que entende a linguagem como independente do sujeito, portanto, não está atenta para a questão da fala.

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Mais adiante analisaremos tal conceito, o qual, em essência, seria o espaço do

semiótico.

35 O conceito de negatividade também será aqui apenas introduzido e a ser desenvolvido no momento oportuno. Mas poderíamos simplificadamente dizer que para Kristeva, seria ele o quarto momento da dialética, diferente, portanto da afirmação, da negação e da síntese. Seria a negatividade o elemento disruptivo, a força disruptiva, que subverte a afirmação, a tese, permitindo o movimento dialético, o qual, sem ela, não teria como se dar. Vejo nesta concepção de Kristeva uma intenção de desidealizar a dialética hegeliana, colocando o conteúdo pulsional como elemento essencial da mesma, sem o qual o movimento se estagnaria em totalidades estanques.

Isto implica em que o simbólico somente pode impregnar-se de sentido através do semiótico; e que um simbólico desvinculado do

semiótico talvez nada mais seria do que uma suprema abstração.

Somente, portanto, o semiótico teria a força de nos constituir enquanto sujeitos de uma discursividade, força esta que, em um segundo nível, nos constitui enquanto sujeitos. A força motriz que possibilita que a atividade simbólica possa instituir-se no mundo enquanto incorporação simbólica de pulsões e tensões instáveis e averbais, semióticas. Portanto, esta atividade de duas vias entre o semiótico ao simbólico é que, segundo Kristeva, se constitui naquilo de que deveria ser um perene

processo de significação.

Contudo, tal processo se dá dentro de um meio social e histórico, e é profundamente influenciado por estes: Júlia Kristeva assinala que no processo de produção capitalista acaba por existir um predomínio quase absoluto do simbólico em relação ao semiótico36, da abstração e da formalização em relação ao conteúdo pulsional. Se traduzirmos isto em termos de sua teoria sobre a linguagem, poderíamos dizer que os aspectos semióticos da linguagem acabam por ser rechaçados frente a seus aspectos simbólicos, de modo que o potencial de negatividade do

semiótico se perde.

Deste modo, cremos, o ser humano na modernidade acabaria por tender a perder sua condição de sujeito em processo e a tornar-se assujeitado, na medida em que a negatividade tende também a perder seu aspecto de possibilitadora da interação entre o semiótico e o

simbólico; ou seja, a negatividade tendendo a ser rejeitada, obstrui os

canais de fluxo do sujeito em processo, já que esta negatividade,

As the logical expression of the objective process, [negativity] can produce a subject in procession/on trial. In other words, the subject, constituted by the law of negativity and thus by the law of an objective reality, is necessarily suffused by negativity – opened onto and by

36“[...] that the kind of activity encouraged and previleged by (capitalist) society represses the process pervading the body and the subject, and that we must therefore break out of our interpersonal and intersocial experience if we are to gain access to what is repressed in the social mechanism: the generating of significance”. (KRISTEVA, 1984, p. 13). (tradução nossa: “[...] aquele tipo de atividade encorajada e privilegiada pela sociedade (capitalista) reprime o processo permeando o corpo e o sujeito, e que nós devemos portanto afastar-nos de nossa experiência interpessoal e intersocial, se desejamos ter acesso ao que é reprimido no mecanismo social: a geração de significado” (KRISTEVA, 1984, p. 13).

objectivity, he is mobile, nonsubjected, free.37

(KRISTEVA, 1984, p. 110-111).

O que, em outras palavras, quer dizer que a sincronia semiótico-

simbólico acaba por clivar-se em uma diacronia que permite que o semiótico seja rechaçado a um plano secundário, com o simbólico

adquirindo primazia, processo este que se traduziria, inclusive, na fragmentação e formalização das ciências humanas:

[...] the capitalist mode of production has statified language into idiolects and divided it into self- contained, isolated islands – heteroclit spaces existing in different temporal modes (as relics or projections), and oblivious of one another38

(KRISTEVA, 1984, p. 14-15).

Tal concepção permite a Kristeva ver implícitos à sua teoria da significação os dispositivos sociais que envolvem o ser da linguagem. Uma teoria da significação baseada “[...] on the subject, his formation, and his corporeal, linguistic and social dialectic” (KRISTEVA, 1984, p. 15).

Assinalamos aqui isto devido ao fato de que embora a rejeição ao

semiótico seja algo diretamente implícito na dinâmica linguística

envolvida na constituição do sujeito, não podemos esquecer a possibilidade de uma sobrerrejeição ocorrendo sob determinadas circunstâncias sociais, as quais Kristeva vê como inerentes à modernidade. Portanto, o processo de subjetivação, a maneira como se processa e suas consequências, implicam sempre numa historicidade do sujeito que vai, em parte, determinar as características gerais da subjetividade em um dado período histórico.

Contudo, a negatividade implícita ao semiótico pode levar a uma ressignificação simbólica pela sobre-escritura semiótica na constituição deste simbólico, o que pode se revelar na literatura como uma

37 “Como a expressão lógica de um processo objetivo, [negatividade] pode produzir o sujeito em processo/em experimentação. Em outras palavras, o sujeito constituído pela lei da negatividade e portanto pela lei de uma realidade objetiva, é necessariamente impregnado pela negatividade – aberto para e pela objetividade, ele é móvel, não sujeitado, livre” (KRISTEVA, 1984, p. 110-111, tradução nossa).

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“[…] o modo de produção capitalista estatizou a linguagem em idioletos e a dividiu em ilhas autônomas, isoladas – espaços heteróclitos existentes em diferentes modos temporais (como relíquias ou projeções), e esquecidas umas das outras” (KRISTEVA, 1984, p. 14-15, tradução nossa).

“explosão” do semiótico dentro da linguagem a qual seria visível em um certo tipo de produção literária, da qual ela dá como exemplos Lautréamond, Mallarmé, Joyce e Artaud. E aí se revelaria a base

semiótica de formações significantes, “a foundation that primitive

societies call 'sacred', and modernity has rejected as 'schizophrenia’39 (KRISTEVA, 1984, p. 16), a qual tende a ser rejeitada na modernidade.

Segundo Kristeva: “Magic, shamamanism, esoterism, the carnival, and 'incomprehensible' Poetry all underscore the limits of socially useful discourse and atest to what it repress: the process that exceeds the subject and his comunicative structures40” (KRISTEVA, 1984, p. 16).

Ressaltamos estes aspectos aqui, pois nos parecem bastante importantes para uma compreensão adequada futura da questão da

abjeção, já que nos levam a supor que quanto mais abjeção haverá,

quanto mais o semiótico tender a ser banido. Obviamente, pois, e talvez nem fosse necessário ressaltar isto, a abjeção também é um processo com parciais raízes históricas.

Isto torna relevante, acreditamos, dentro do entendimento que fazemos de Kristeva, que possamos estabelecer uma certa diferenciação entre o que é histórico e o que não é neste processo, já que nos parece que a dinâmica constituinte da subjetivação vai implicar sempre em excesso semiótico inassimilável pelo simbólico, excesso este que vai ser rejeitado, e cuja rejeição é essencial para a que a própria negatividade dialética inseminadora do semiótico no simbólico possa manter este processo como um perene processo de subjetivação, como um sujeito

em processo. Mas para chegar à diferenciação acima sugerida, é

necessário um percurso não tão direto assim.

Ou seja, para que realmente possamos compreender as vicissitudes históricas deste processo, devemos retornar ao que anteriormente mencionamos de que existe algo mais do que meras estruturas comunicativas na linguagem e no próprio sujeito. Existiria um

movimento subjacente ao próprio sujeito linguístico, um processo de significação em constante e ilimitado fluxo constituído pelas pulsões,

que buscariam permear-se e expressar-se na constituição da própria linguagem, alcançando o sujeito e as instituições. Deste modo Kristeva

39“Uma fundação que as sociedade primitivas chamam ‘sagrado’ e que a modernidade rejeitou como ‘esquizofrenia’” (KRISTEVA, 1984, p. 16, tradução nossa).

40“Mágica, xamanismo, esoterismo, o carnaval, e a Poesia ‘incompreensível’, tudo ressalta os limites do discurso socialmente útil e atesta o que reprime: o processo que excede o sujeito e as suas estruturas comunicativas” (KRISTEVA, 1984, p. 16, tradução nossa).

aponta para a base pulsional inserida na origem e no processo contínuo de produção da linguagem – entendida esta como um processo de constante fluxo significante –, mas ambas, base pulsional e linguagem simbólica, em constante interação. Ou seja, o retorno a este ponto indica a necessidade de aprofundar o entendimento do que sejam o semiótico e o simbólico. Para tanto devemos agora nos referir ao apenas esboçado conceito de chora.