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Caso possamos supor que a ênfase dada por Winnicott à questão da segurança ontológica como linha condutora do processo de amadurecimento seja algo decorrente de um reflexo das transformações da modernidade em termos de falência de mecanismos reasseguradores e do retorno da contingência, e supondo que a identidade na modernidade tardia tornou-se um fenômeno cindido entre uma identidade enquanto consciência de si e identidade enquanto autoconsciência de si, ou seja, um eu-em-si e um eu de atributos, ou ainda a identidade enquanto mesmidade e identidade, enquanto ipseidade de Ricoeur, não seria demais afirmarmos que na pré- modernidade esses dois componentes da identidade, mais do que andarem juntos, eram uma coisa só. Portanto, o que a modernidade implica em termos de identidade é uma cisão da identidade em dois componentes distintos, o que implica que tais componentes não sejam em si inerentemente pré-modernos, mas sim que a íntima união deles é que o seja. Contudo na modernidade tal cisão, mais do que uma separação parece implicar em uma hegemonia da identidade de atributos sobre a identidade enquanto consciência de si.

Parece-me que a análise de identidade realizada por Giddens centra-se, na verdade sobre esta identidade de atributos, colocando a identidade enquanto consciência de si apenas como uma base possibilitadora daquela. O mesmo podemos dizer das concepções da identidade advindas do construcionismo social, onde ocorre um predomínio da personalidade de atributos. Tal identidade por atributos constrói-se em meio à ideia do risco, misturando liberdade e medo e implicando na possibilidade de formação de identidades defensivas rígidas. Tal identidade por atributos é uma identidade ou que se constrói enquanto colocando fronteiras rígidas com o que lhe é externo ou que signifique alteridade ou ambivalência ou, é uma identidade confrontada com a necessidade de uma constante performaticidade ou de uma constante construção reflexiva de si. Em ambas as formas, trata-se de uma identidade ameaçada, constantemente ameaçada. A contrapartida hoje em dia em desvantagem desta identidade de atributos é a identidade enquanto apenas consciência de identificar-se a si como si. Talvez a proposta de Ricoeur, de uma identidade narrativa, que em muito difere da narrativa particular de si, de Giddens, pois ao propor a narrativa

literária como possibilidade de interação do eu enquanto mesmidade e do eu enquanto ipseidade possibilita a reconexão desta comunhão cindida pela modernidade, mas em uma outra dimensão. Acredito que Paul Ricoeur neste ponto se assemelha de algumas proposições de Julia Kristeva sobre a linguagem poética, linguagem passível de trazer à tona a ambiguidade do mundo pré-linguístico contrapondo-o à linguagem instrumental racional e epistemológica hegemônica. Portanto identidade enquanto mera consciência de si pode guardar alguma relação com a linguagem poética, e a identidade de atributos poderia guardar relações com a linguagem instrumental. Enquanto tais aspectos da identidade permanecerem cindidos, a possibilidade ética em relação ao outro enquanto alteridade estará comprometida. O outro, o estranho, o inclassificável, o ambíguo, será sempre o ser humano em vida nua, será sempre a ação de uma biopolítica no sentido de Agamben, que é o de uma biopolítica negativa. Talvez a linguagem poética permita que nos reconheçamos sempre como homo sacer, em uma vida nua, mas que consegue fazer de sua zoé sua bios, podendo ser a possibilidade de redenção da zoé e não a possibilidade de mantê-la em estado de degradado estigma.

Com tudo isto, de modo algum negligencio os aspectos sociais da identidade, mas desejaria apenas apontar que talvez seja próprio da modernidade, e mais ainda da alta modernidade, ressaltar apenas tais aspectos da identidade. Creio que se nos restringirmos a este âmbito, o dos aspectos sociais (ou de atributos) da identidade – e retrospectivamente percebo que apontar esta restrição talvez tenha sido o objetivo deste capítulo – inevitavelmente nos inserimos dentro de uma acriticidade fundamental – apesar de todos os aspectos críticos que possa ter – que não consegue distanciar-se suficientemente daquilo que tenta compreender.

Aponto, embora de modo muito provisório, por insuficiente conhecimento de causa, que a questão do cuidado de si do último Foucault, em muito pode relacionar-se com os aspectos da identidade que não dizem respeito a uma identidade de atributos, mas que dizem respeito mais a uma identidade que se preserva enquanto a um si que pondera sobre o quando e o como de sua subjetivação.

7 OS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAIS: DISCURSOS, ESPAÇOS E PRÁTICAS

7.1 INTRODUÇÃO

Nosso propósito neste capítulo é o de analisar aspectos da implantação do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, e, portanto, dos CAPS91, em termos de possibilidades emancipatórias da subjetividade dos loucos e dos profissionais e de possibilidades de manifestações sutis ou não de um poder disciplinar. Ou seja, aqui pretendemos trazer as discussões tratadas nos capítulos anteriores à realidade dos CAPS. Embora não seja um dos autores-eixo desta tese nos valeremos para um início de discussão sobre o tema dos conceitos de regulação e emancipação conforme propostos por Boaventura de Souza Santos (1995).

Não desejo aqui traçar um entendimento da persistência de antigas práticas dentro de um novo contexto, mas sim contextualizar historicamente os CAPS e apresentá-los naquilo que neles surgem como dificuldades, muito embora perpasse matizes de um entendimento. Contudo, minha intenção, como assinalei na introdução, é fazer uma interrogação a esta discrepância entre antigas práticas dentro de um novo contexto institucional, buscando colocar pressupostos para uma interrogação entre subjetividade emancipada e identidade, seja em relação aos loucos, seja em relação aos profissionais.

É importante, apesar de já dito, salientar que quando aqui falaremos em formas de subjetividade e identidade, de modo algum nos referimos apenas ao louco. Até certo ponto, seria o contrário, embora não o seja, pois pressupomos uma bidirecionalidade: desejamos ir esboçando elementos para que possamos adiante analisar a subjetividade e a identidade dos profissionais que atuam nestes serviços, não de forma diacrônica, mas sincrônica, pois tais processos de subjetivação, dentro dos CAPS, seguem uma dialética entre questões identitárias dos profissionais e dos loucos, sendo, ao fundo, impossível separar, pois as interações são mútuas.

Pretendemos ter como foco maior os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), instrumentos principais da implantação institucional da reforma psiquiátrica, sendo nossa opção metodológica a identificação dos aspectos de regulação ou emancipatórios, bem como de dispositivos biopolíticos disciplinares e de controle apontados por

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Michel Foucault (2006) contrapostos ao poder de intervenção dos movimentos sociais proponentes de uma reforma psiquiátrica, bem como das formas locais de organização popular.

Tal análise adquire importância, pois atualmente nos encontramos face a resultados produzidos já pela institucionalização na forma de políticas públicas, de propostas que surgiram de um movimento social. E, muitos são os estudos, conforme mais tarde veremos, que apontam para várias distorções em CAPS, com o fortalecimento de tendências bem mais de regulação do que de emancipação.

Tal posicionamento crítico é simetricamente oposto às críticas ao processo de reforma psiquiátrica desenvolvidas pelos setores conservadores da psiquiatria brasileira. A crítica de tais setores é em relação à presença de aspectos emancipatórios na proposta de reforma psiquiátrica. Nossa crítica é em relação a uma perda crescente da hegemonia destes mesmos aspectos. A perda desses aspectos implica em serviços que podem fornecer muitas coisas aos seus usuários, mas que não transcendem os dispositivos de assujeitamento. Sobre isso é que Sergio Alarcon (2002) nos alerta:

Dissemos, de um modo talvez ainda pouco claro, que a saúde mental – ou sabe-se lá que nome pode ser dado a essa complexidade – só tem sentido em termos 'libertários' se for, antes e além de um dispositivo contra a dominação e a exploração, também um modo de resistência contra, principalmente, a sujeição (Foucault, 1994: 227). Fora isso, estaremos provavelmente construindo mini-manicômios, com os mesmos objetivos de recuperação piedosa dos primeiros alienistas. (ALARCON, 2002. p. 15, grifos no original)

Não encontra-se dentro do alcance do presente trabalho o desenvolvimento de uma análise ampla e profunda da realidade da implantação institucional da reforma psiquiátrica, pois tal exigiria um extenso trabalho de campo. Portanto, o nosso objeto de análise, os CAPS, serão vistos através da literatura já produzida no Brasil que versa sobre uma análise crítica do processo de reforma psiquiátrica, produzida por defensores desta reforma e não por seus detratores. Os artigos aqui citados na apresentação de dificuldades encontradas nos CAPS foram selecionados da revisão bibliográfica citada na metodologia, mas tal seleção teve um intuito diverso daquela que serviu à constituição do

evidenciam dificuldades nos CAPS, produzidos por pessoas que defendem o processo de reforma psiquiátrica.