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Giddens (1991) assinala a proximidade entre identidade e um senso de segurança ontológica, e coloca que a ameaça à segurança ontológica situa-se no “[...] pavor à não- existência, não considerada apenas como morte individual, mas como um vácuo existencial [...]” (GIDDENS, 1991, p. 146-147). Creio que até certo ponto este vácuo existencial possa ser relacionado a uma perda dos atributos simbólicos que nos inserem dentro de uma ordem do mundo, situação que aproxima-se daquela do ser humano que está excluído radicalmente do mundo enquanto ente de vida qualificada, ou seja, o homo sacer, o ser em vida nua de Agamben (2007), que dito de outro modo seria o

estranho de Bauman (1999a), ou o homem exposto, na linguagem de

Lacan, à falta fundamental que o constitui. Não desejo fazer uma assimilação pura e simples de tais concepções, pois existem diferenças importantes entre elas, mas não vejo como negar-se a similaridade entre elas.

Não é minha intenção contestar a constatação de Giddens acerca da condição da questão de identidade na alta modernidade, pois me parece um diagnóstico preciso. Tampouco no momento coloco em discussão certas reservas que me parecem ser prudentes, ao considerar- se a defesa de Giddens da modernidade tardia. O que desejo analisar aqui são mais seus pressupostos em relação à segurança ontológica.

Ao recorrer a Winnicott, o ponto que parece ser o de maior importância é o da possibilidade de a criança começar a tolerar a ausência do outro-provedor. Ou seja, o sentimento de confiança frente à

ausência, uma confiança de que o outro retornará. Isto significa a criança ser já uma possibilidade de experiência independente devido a uma gradual internalização deste outro constituindo um progressivo senso de continuidade da autoidentidade. Esta confiança, apesar da ausência, adquire em Giddens uma importância considerável, pois será com base neste conceito que ele poderá falar na confiança nos sistemas abstratos, sem rosto, com os quais não temos contato nem vemos, mas, mesmo assim, depositamos confiança (GIDDENS, 1991). Segundo Giddens, o sentimento de confiança básica, expressão que toma Erikson, é o que, de uma forma mais ampla, possibilita a formação daquilo que denomina de “casulo protetor”:

A confiança que a criança, em circunstâncias normais, investe nos que cuidam dela – argumento – pode ser vista como uma espécie de inoculação emocional contra ansiedades existenciais – uma proteção contra ameaças e perigos e que permite que o indivíduo mantenha a esperança e a coragem diante de quaisquer circunstâncias debilitantes que venha a encontrar mais tarde. A confiança básica é um dispositivo de triagem em relação a riscos e perigos que cercam a ação e a interação. É o principal suporte emocional de uma carapaça defensiva ou casulo protetor que todos os indivíduos normais carregam como meio de prosseguir com os assuntos cotidianos (GIDDENS, 2001, p. 43).

O que possibilitaria este casulo protetor seria a consciência ontológica, a qual Giddens difere da consciência da autoidentidade, na medida em que a primeira é bem mais um senso de continuidade do ser do que características identitárias. Para Giddens em situações pré- modernas, ambas as formas de consciência andariam juntas, o que não aconteceria na modernidade, bem mais notadamente na modernidade tardia, principalmente devido ao desencaixe derivado da ampliação do tempo e espaço, e da mediação das fichas simbólicas e dos sistemas especialistas. Contudo, a consciência ontológica seria ainda o pré- requisito, a fundação sobre a qual é possível que se construa a consciência da autoidentidade. Entretanto, esta autoidentidade, hoje em dia já não seria inconscientemente de si mesma, como em tempos pré- modernos, mas algo a ser reflexivamente construído dentro de uma interação com os sistemas especialistas. É algo que “[...] deve ser criado

e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo” (GIDDENS, 2002, p. 54). A autoidentidade, também, segundo Giddens (2002, p. 54), “[...] é o eu compreendido reflexivamente pela pessoa em termos de sua biografia”. Um dos aspectos fundamentais que Giddens confere à autoidentidade é a capacidade de “[...] manter em andamento uma narrativa particular” (GIDDENS, 2002, p. 56)79. Portanto, para Giddens, a identidade enquanto consciência ontológica seria muito mais um substrato, um solo, para a construção reflexiva da identidade, do que algo que talvez pudesse ir além de um pré-requisito da possibilidade de um casulo protetor.

É importante nos determos nesta ideia de um casulo protetor e a compararmos com a concepção de identidade em Bauman, como uma construção defensiva frente à ambivalência, ao inesperado e à contingência. E, em verdade, uma identidade reflexivamente construída dentro de um casulo protetor é uma identidade que afasta de si, até mesmo enquanto própria possibilidade de si, a ambivalência e a contingência. Embora ambas as concepções de identidade guardem uma semelhança enquanto defesa frente à contingência, a concepção de Bauman parece ser crítica em relação a isto, enquanto que a de Giddens não. Neste ponto Giddens parece bem mais buscar uma nova possibilidade, seja de resguardar-se de uma ordem ameaçada, seja a de reconstrui-la discursiva e epistemologicamente em outros termos que não os da modernidade tradicional.

Em Bauman, a questão de uma ordem ameaçada, apesar do referido autor ver a busca da ordem quase como uma característica inata do ser humano, denominando-a de estruturatividade, a difere de estrutura enquanto uma metaordem opressiva. Em Bauman parece-me existir uma certa ruptura com uma discursividade epistemológica e um apelo ao estético (LASH, 1995); enquanto em Giddens parece haver um reforço do cognitivo e da discursividade epistemológica.

Creio que em Bauman podemos antever uma possibilidade de identidade que de alguma forma não é a identidade da alta modernidade, mas sim uma identidade que pode se perfazer dentro da própria ambiguidade entre ambivalência e ordem, na medida em que existe uma

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Aqui encontramos uma particularidade, inicialmente semântica, centrada na questão da narratividade, que pode aproximar tais considerações de Giddens daquelas de Paul Ricoeur acerca de identidade narrativa (RICOEUR, 1991). Contudo, o que nos parece diferenciar uma da outra é que a narratividade de Ricoeur somente adquire sentido na medida em que situa um espaço de interconexão entre uma identidade como ipseidade e uma identidade como mesmidade. Para Giddens, a narratividade parece ser apenas a possibilidade de uma reconstrução ficcional de uma continuidade do eu da mesmidade.

dimensão pré-moderna na qual não faz sentido esta distinção entre ambivalência e ordem, já que “[...] [ordem e caos] foram concebidos em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de modo divino, que não conhecia nem a necessidade nem o acaso, um mundo que apenas era, sem pensar jamais em como ser” (BAUMAN, 1999, p. 12). Portanto, caso pensemos que a modernidade seria esta transição, esta fratura de um mundo que apenas era para um mundo consciente de si, necessariamente estamos também falando de uma consciência de si que apenas é e de uma autoconsciência de si. A identidade reflexiva de Giddens necessariamente implica nesta autoconsciência de si, moderna, mas que contudo encontra seu solo em uma consciência de si que apenas é, pré-moderna, ou a-histórica. O próprio Giddens assinala que esta consciência de si é a-histórica na medida em que, ao recorrer a Erikson e Winnicott, coloca que: “Há certos aspectos da confiança e processos de desenvolvimento da personalidade que parecem se aplicar a todas as culturas, pré-modernas e modernas.” (GIDDENS, 1991, p. 95).

Mas, apesar desta atemporalidade de origem da consciência de si, a autoconsciência de si é histórica e depende para sua manutenção de um eterno cuidado em relação ao casulo protetor. Ou seja, a segurança ontológica, que teria bases a-históricas, dependeria para que se mantivesse na modernidade e, principalmente na alta modernidade, de um constante afastar de elementos que pudessem vir a perturbá-la. Em relação a esta questão, que Giddens (2002) designa como segregação da experiência, ele nos diz que:

Em termos amplos, o argumento que desenvolvo que é que a segurança ontológica que a modernidade adquiriu, no nível das rotinas diárias, depende de uma exclusão institucional em relação a vida social de questões existenciais fundamentais que apresentam dilemas morais centrais para os homens (GIDDENS, 2002, p. 145).

Situações estas que seriam a loucura, a criminalidade, a doença e a morte, a sexualidade e a natureza.

Penso que tais asserções nos poderiam levar a crer que a segurança ontológica na modernidade de alguma forma se tornou mais frágil em relação a tempos anteriores, onde não havia esta necessidade de segregação da experiência, pelo menos em um grau tão elevado. Portanto, apesar de termos na base da segurança ontológica adulta um

processo de aquisição infantil de uma segurança ontológica que seria atemporal e a-histórica ele poderia estar se tornando um fator cada vez mais vergado pelo peso de fatores presentes que ameaçam a segurança ontológica. E, a perda de segurança ontológica, deste modo, poderia estar cada vez mais na dependência de fatores reais e atuais do que na dependência das experiências infantis. Não que estas tenham perdido sua importância, mas tal importância poderia estar, comparativamente às circunstâncias externas, tornando-se menor. Desta forma, a identidade autoconsciente e reflexivamente construída parece ser uma identidade de certa forma frágil e sob ameaça.

Mas Winnicott (1975) parece prefigurar as considerações acima quando nos diz que:

O axioma é: a sociedade existe como estrutura ocasionada, mantida e constantemente reconstruída por indivíduos, não havendo, portanto, realização pessoal sem a sociedade, assim é impossível existir sociedade independentemente dos processos coletivos de crescimento dos indivíduos que a compõem. Temos de aprender a deixar de procurar pelo cidadão mundial: contentemo-nos em encontrar apenas raramente essas pessoas cuja unidade social se estende além da versão local da sociedade, além do nacionalismo ou além das fronteiras de uma seita religiosa. Com efeito, precisamos aceitar o fato de que as pessoas psiquiatricamente sadias dependem, para sua saúde e para sua realização pessoal, da lealdade a uma área delimitada da sociedade. (WINNICOTT, 1975, p. 190-191).

Este trecho tardio de Winnicott, publicado em livro editado no ano de sua morte e cuja preocupação principal era o universo cultural, talvez demonstre, pela própria ênfase explícita de Winnicott na cultura, uma percepção sua das mudanças que já se articulavam na modernidade. De certa forma, sua ênfase no sentimento de segurança básica e na identificação do indivíduo com um universo cultural e social mais imediato encontra-se, me parece, em contradição com as vias teóricas que se utilizam de Winnicott para analisar a questão da identidade na modernidade tardia, como, por exemplo, a que Giddens (2002) toma. Winnicott parece estar muito mais vinculado a tendências da

modernidade tradicional, detectando as ameaças que estão por vir à segurança e às identidades tradicionais. A questão da globalização e do desencaixe, conforme analisadas por Giddens (2002, 1991), que de certa forma dissolvem, ou detectam a dissolução, na alta modernidade da questão do espaço abrem um novo campo de mobilidade e fluidez da identidade que Winnicott talvez pudesse apenas antever, mas não vivenciar, como uma realidade fenomenológico-existencial dos seres humanos. Desta forma, Winnicott parece teorizar a realidade psíquica de uma etapa da modernidade que transitava para outra etapa, procurando traduzir em seus conceitos teóricos uma necessidade de produção de segurança em um mundo no qual cada vez mais torna-se presente a questão da insegurança, da incerteza e do risco.

6.6 PAUL RICOEUR: EM BUSCA DE UM DELINEAR