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A consciência de sermos um ser que decide entre subjetivar-se ou não subjetivar-se implica em um tipo de decisão que é bastante diversa daquela decisão a respeito de características identitárias que podemos assumir ou não enquanto atributos. Este último tipo de escolha seria um aspecto mais sobrenadante, ou superficial, embora não menos profundo, de uma capacidade de escolha mais fundamental: entre a possibilidade de subjetivar-se e de não subjetivar-se enquanto identidade de atributos. Esta possibilidade de escolha talvez possa ser entendida como uma versão atual da questão implícita no imaginário do pecado original. O pecado original nos expulsa do paraíso, ou em termos modernos, da

comunidade, no sentido que a ela dá Bauman (1999), enquanto modo de

ser não reflexivo e sem desencaixes, na acepção de Giddens (1995, 1996, 2002).

Uma visão vitalista me parece ser uma visão que renegaria este imaginário do pecado original – origem da discursividade epistemológica – e tentaria nos reconectar diretamente com uma inocência de matiz bastante inocente. Mas o faz, me parece, através de um pulo talvez onipotente que renegaria a discursividade não percebendo que continua a dela depender enquanto elemento autoconstituinte do sujeito, mas desfigurada, transfigurada, ou convertida, em uma potência vitalista. Frente à facticidade e à contingência, podemos optar entre a potência-de-sim e a potência de não. Esta possibilidade de decisão talvez se constitua na nossa

verdadeira caução enquanto ser frente à facticidade e a contingência. E

esta capacidade de decisão não nos parece ser discursiva, mas sim ontológica. Aqui o ser adquire uma liberdade frente à facticidade e a contingência, mas uma liberdade que não se fundamenta em uma negação da limitação humana que busca na capacidade discursiva, ou em uma potência vitalista, uma forma possível de a elas eludir-se. A liberdade frente à facticidade e à contingência aqui poderia ser vista como adquirida não por eludi-las, mas sim por enfrentá-las dentro de uma outra concepção, trágica, de potência. Uma concepção que vislumbre, talvez, que o verdadeiro poder da potência venha justamente da contingência, da tragicidade.

Que isto seja ainda um certo vitalismo é algo que admito, mas seria um vitalismo de uma ordem na qual a vida não é o imperativo, mas, sim, novamente, contingência. Algo que se aproxima da vontade de poder de Nietzsche, mas algo que pressupõe também este espaço intermediário da capacidade de decidir entre potência de sim e potência de não. Neste ponto é que a reflexão de Agamben sobre potência enquanto algo que não necessariamente deva se transformar em ato ganha relevância. A potência nietzschiana é trágica exatamente na medida em que não necessariamente deva transformar-se em ato. Neste ponto Nietzsche se vale da potência vital como um passivo a ser utilizado pelo ser humano, mas não dentro de um suposto saber, mas sim em uma dimensão trágica, na qual o trágico é justamente o fato de o ser humano estar fadado a ter de decidir sem que nenhuma potência maior decida por ele.

É nesta absoluta solidão do humano, neste seu defrontar-se com o imponderável da absoluta contingência onde o trágico reside, e onde

estabelece um núcleo subjetivo, ao mesmo tempo vazio, destituído de poder, mas ao mesmo tempo em contato com a potência.

Neste sentido, uma visão ingênua ou radical de um construcionismo social seria uma forma de negar a tragicidade da existência humana, tornando essa potência que é transcendente em imanente. Autoimbuir-se da potência, e, além disto, percebê-la como algo que deva necessariamente e sempre atualizar-se, seria negar que o centro de nosso ser, de nossa identidade, de nossa consciência de nós mesmos, seria exatamente este ponto zero e vazio de pura potencialidade de decisão.

A questão fundamental é a potencialidade de decisão e não a decisão em si. Sem dúvida isto é ontológico, e não discursivo. Um ontológico que, sem necessariamente ser vitalista no sentido de uma imperatividade da vida, mas antes de seu apenas reconhecimento, embora reconhecimento enquanto contingência. Este ontológico aproxima-se da pura zoé totalmente destituída de bios. Ou seja, um “vitalismo” próprio ao homo sacer de Agamben. Algo muito mais ontológico do que epistemológico. Mas, o homo sacer, é o homem que foi destituído de sua localização e atributos simbólicos, que foi reduzido à pura vida, que se situa no absoluto contraponto do discursivo. O homo

sacer é ontológico. Que, de certa forma ele seja pura vida, vida não

qualificável, não implica necessariamente em um vitalismo. Pois desta pura vida é que se constitui um patamar no qual a dinâmica seria uma dinâmica da negatividade a um suposto poder imperativo da vida imiscuído nos processos identitários e discursivos que, de alguma forma, continuariam subsumidos a um estado de exceção permanente.

Deste modo podemos pensar que o que se encontra em jogo na verdade não são aspectos identitários cotidianos, mas sim uma escolha mais profunda a respeito de autenticidade e inautenticidade. Autenticidade significando preservar este poder de decisão entre subjetivar-se e não subjetivar-se, e inautenticidade representando uma renúncia a este espaço de decisão, e um adentrar-se no mundo de modo irrevogável, acrítico e, talvez, instrumental, sob um véu de um vitalismo imperativo.

A autenticidade, portanto, seria manter e preservar esse espaço angustiante da decisão, um espaço somente possível no encontrar-se, pelo menos em um determinado momento, absolutamente só consigo mesmo. Ao mesmo tempo em que tal estado pressupõe uma recusa identitária, supõe também um núcleo estável do eu, um senso de continuidade coerente do ser, mas também a consciência de que esta continuidade corre sobre o fio da navalha, sobre um equilibrar-se em

uma corda bamba que se projeta em frente na medida em que avançamos sobre ela.