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Tendo-se em vista o caráter de ambiguidade e outritude, de absoluta indefinibilidade, que o louco e suas circunstâncias representam, creio que não podemos enxergar este novo espaço institucional e social da loucura possibilitado pela reforma psiquiátrica unicamente como um espaço candidamente ingênuo de fraternidade e acolhimento, embora nele possam propiciar-se condições para uma criatividade e acolhimento dotados de maior autenticidade.

Creio que podemos pensá-lo também como espaço de possibilidades de tensões e temores, não apenas por tais características imaginárias da loucura, mas também pelo fato de que a simples abertura de um espaço para ela implica em dotá-la (ou redotá-la) de uma potência que antes não tinha nas instituições manicomiais, potência que, segundo Foucault (2006), desencadeou toda a complexidade e sutileza dos mecanismos de poder propostos pelos alienistas. Foucault entende que

se essa potência da loucura não fosse tão temida, o poder não necessitaria agir de forma tão dissimulada e ardilosa em relação a ela. Portanto, a reforma psiquiátrica em seus novos loci da loucura abre a caixa de Pandora na qual os dispositivos disciplinares a haviam encerrado.

A mera possibilidade de um novo local institucional para a

loucura, por mais contraditório que este local seja em termos de

discursividades e práticas, por mais imprevisível que seja o futuro deste processo, abre, ao menos, margem para a loucura reatar-se, não, talvez, a um poder, mas a uma potência13.

Portanto atribuo a este novo espaço institucional da loucura a possibilidade de re-liberação de uma força semiótica no sentido que Kristeva atribui a este termo, da qual a loucura seria apenas uma de suas manifestações. Uma força que, no momento, apenas posso compreender como não da ordem discursiva-epistemológica14.

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Por potência aqui a entendo sob a concepção de Agamben (2006) como a possibilidade de represamento do poder. O poder da potência está justamente na sua possibilidade de não necessariamente desencadear-se em ato, que seria entrar naquilo que tradicionalmente se conceitua como relações de poder. Potência seria um poder em suspenso, uma virtualidade de desencadear-se que adquire força justamente nesta virtualidade e na imprevisibilidade de se e quando se desencadeará ou não.

A potência é um poder intangível, cuja fonte de poder é esta própria intangibilidade. Nisto difere de poder enquanto algo que claramente se exerce enquanto relação. O poder enquanto relação se institui no mundo conhecido do amigo/inimigo (BAUMAN, 2003). A potência enquanto poder em suspenso seria da ordem do imprevisível, do ambíguo, do estranho. Ou, em outras palavras, a potência é da ordem do contingente (ou mesmo da ordem do vir-a-ser); o poder não o é, o poder enquanto relação é algo da ordem do calculável e do predizível, ou pelo menos do inteligível. A potência não, a potência não seria da ordem do inteligível, a potência não seria da ordem da discursividade epistemológica que constitui as relações de poder, a potência teria um certo poder ontológico (LASH, 2007).

14 Não a consigo ainda situar como de ordem pré-linguística ou de ordem vitalista, já que me falta ainda uma maior clareza quanto ao definir o pré-linguístico como vitalista ou não. Posso compreender o pré-linguístico como da ordem do real, mas francamente não sei se o real refere-se mais ao que Freud denominaria de instinto de vida ou de instinto de morte. As palavras vida e morte têm intensa conotação emocional e talvez não sejam as melhores designações para estas duas, a princípio, tendências instintuais. Sou mais propenso a entender instinto de vida como uma concepção de um inevitável e constante desencadear-se da potência em ato, e do instinto de morte como um preservar-se da potência, pois instinto de morte significa uma propensão ao inanimado, o que é bem diferente do significado que vulgarmente atribuímos à palavra morte. Morte, vulgarmente, significa o fim do ser, assemelha-se em conteúdo ao suicídio, ao pôr fim à vida. Mas, se contudo consideramos o inanimado, não necessariamente como o fim, mas como a condição necessária e precedente do início do fenômeno da vida, o instinto de morte poderia ser relacionado à potência do inanimado. Uma potência que tão contingentemente tornou-se ato como poderia não se ter tornado. Tal

A loucura, me parece, representa – ou situa-se – exatamente neste limiar entre compreensibilidade e não compreensibilidade. De alguma forma ela nos evoca esta precariedade do ser em relação à contingência, e torna falível o mundo construído pelo instinto de vida, instinto que não é apenas de vida enquanto tal, mas de vida quase que compreendida num processo teleológico de hominização, próximo em muitos pontos a Teilhard de Chardin (1970). Cito este autor por acreditar que nele fica clara uma ideia de hominização que torna discursivo-epistemológico e teológico algo que tem por base um vitalismo. É, portanto, bem mais acessível ao instinto de vida sua transformação em uma discursividade epistemológica, em uma linguagem simbólica do que ao instinto de morte.

Aparentemente existe uma menor contradição entre instinto de vida e civilização do que entre instinto de morte e civilização. Ao contrário, até: a palavra civilização tende na modernidade a revestir-se de uma conotação de continuidade lógica do instinto de vida.

Foucault bem demonstra como este instinto de vida se infiltra na cultura em sua análise a respeito da história da sexualidade (FOUCAULT, 2007), onde situa a sexualidade não como algo banido, excluído e reprimido, mas sim como algo quase que perversamente presente na maioria dos discursos da modernidade, mas embora presente, presente está sob a forma de uma presença que elude e obscurece o que possa existir de vida em nome de um regramento da vida.

Contudo, é necessário deixarmos claro o que se quer dizer com civilização. Para Freud, em vários textos seus, a civilização constitui-se em um processo de sublimação do instinto. Um processo de progressiva primazia da cultura sobre os instintos. Civilização, em outras palavras, teria o significado de um processo do caos em direção à ordem, da ambivalência e indefinição, em direção ao univalente e regrado. Civilização seria, pois, um processo de imposição de ordem e definição a um mundo caótico. Com isto apenas desejo apontar que civilização é um conceito derivado de um discurso próprio à modernidade e, enquanto tal, deve ser encarado com a devida distância crítica. A

loucura,ao contrário, parece significar o exato oposto de tudo isto. É o

retorno irreverente do pânico (de Pan), de uma ordem que é em si desordem, do absoluto não regrado, do caos primordial, de uma pura potência que opta por não atualizar-se e que prefere manter-se como

contingenciabilidade é o absoluto limiar de nossa possibilidade de compreensão do mundo. Aquém dela o mundo é compreensível, nela e além dela, não.

uma metáfora ridicularizadora daquilo que se atualiza, como na música “A Balada do Louco”, cantada por Ney Matogrosso.

Sei que aqui falo de uma consciência trágica da loucura, como a define Foucault (1978), de uma dimensão de loucura enquanto revelação ou verdade, que acabou por perder-se sob uma experiência crítica da loucura como mero erro ou não verdade.

Os novos locais institucionais da loucura possibilitados pela reforma psiquiátrica proporcionam à loucura a possibilidade de reatar-se à consciência trágica. Ou seja, a mera possibilidade de um novo espaço, somente isto, independentemente de qualquer outra consideração, abre ao menos margem para a loucura surgir em sua dimensão reveladora ou ameaçadora. Quais as implicações disto nos profissionais? Que tipo de temores isto desperta?

Giddens (2002) talvez diria que a resposta a tal situação caberia aos sistemas especialistas, os quais, no caso, em parte, são a própria equipe. Aqui a resposta aparentemente tem de ser dada por quem pergunta. Contudo vejo a possibilidade de que os profissionais, na medida em que tem de responder à questão que eles mesmos colocam, talvez não o consigam; ou o consigam esquecendo-se de que a pergunta deles partiu, já que suscitada por uma situação de vivência de estarem sendo continuamente confrontados com o absolutamente outro, ambíguo e ameaçador; ameaçador de um senso de identidade constituído de atributos. E é exatemnte neste ponto que a noção de abjeção de Julia Kristeva (1982) revela-se, ao meu ver, em um importante conceito na compreensão destes temores. O sentimento de abjeção, conforme Kristeva (1982) o descreve, pode ser considerado como:

[...] one of those violent, dark revolts of being, directed against a threat that seems to emanate from a exorbitant outside or inside, ejected beyond the scope of the possible, the tolerable, the thinkable. It lies there, quite close, but it cannot be assimilated15. (KRISTEVA, 1982, p.1).

Este exorbitante seria algo que se situa além da discursividade epistemológica ou da linguagem simbólica, algo da ordem do semiótico, na acepção que ela tem de semiótico. Para Kristeva (1982) a

15

“[...] uma daquelas obscuras e violentas revolta do ser, dirigida contra uma ameaça que parece emanar de um externo ou interno exorbitante, ejetado para além do ambito do possível, do tolerável, do pensável. Isto que jaz aqui, muito próximo, mas que é impossível de ser assimilado”. (KRISTEVA, 1982, p. 1, tradução nossa).

modernidade modela o próprio processo identitário dentro de uma linguagem predominantemente simbólica, levando a que aquilo que se situa em uma ordem pré-linguística, assimbólica, próxima ao semiótico, afigure-se como uma ameaça intrínseca a esta identidade. O sentimento de abjeção surgiria quando o ser se aproxima destas bordas, destas fronteiras entre o ontológico e o epistemológico, ou na linguagem própria de Kristeva, entre o semiótico e o simbólico.

O sentimento de abjeção surge como um alarme de perigosa proximidade com estas fronteiras, suscitado por situações que colocam o ser frente a este exorbitante impensável, que a loucura enquanto potência acaba por representar.

A questão do abjeto é bem mais complexa do que a exponho neste momento, mas será objeto de um capítulo específico. Mas é possível adiantar que a reação do ser frente ao abjeto, já que ele se constitui em alarme, seria o afastar-se destas fronteiras perigosas, o que, em relação ao louco e suas circunstâncias, significaria um afastamento dele pelo que ele representa, impossibilitando, ou dificultando, uma aproximação dele enquanto pessoa, a menos que sua loucura seja pasteurizada em um comportamento normalizado. Ou seja, apenas quando o louco não está em “crise”.

Como poderemos ver em capítulos posteriores, quando o louco entra em “crise”, é colocado sob as aspas de um diagnóstico e solicitada a intervenção maciça do poder psiquiátrico. Contudo, temos de nos perguntar se esta suposta crise não está sendo percebida como algo da ordem naturalística, derivada das peculiaridades do diagnóstico, psicofarmacológica, ou de relações sociais extrínsecas aos CAPS, e não algo que poderia se originar também dentro das relações mais amplas que se estabelecem entre equipe e usuário dentro de um CAPS.

Em linhas gerais, esta é a hipótese que subjaz a esta tese, a qual implica em que os mecanismos identitários colocados em prática pelos profissionais, estariam na microscopicidade das relações entre usuários e profissionais nos CAPS, incentivando a reprodução dos modelos neomanicomiais deveras travestidos pelo discurso psicossocial da reforma psiquiátrica. Adianto aqui que vejo seriamente a possibilidade de estar ocorrendo uma fetichização da outritude do louco, banalizando- a em manifestações públicas e sociais, mas contudo, uma corda as cinge, como que formando um laço, que os isola do mundo, como Alverga e Dimenstein (2006, p. 304) bem reparam na análise que fazem de uma foto de uma passeata antimanicomial em Natal.