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A PERSPECTIVA ECOCÊNTRICA: FUNDAMENTOS E RAÍZES

O ecocentrismo caracteriza-se pela atribuição de um valor não meramente instrumental aos ecossistemas, unidades geradoras da diversidade biótica e fundamentais ao funcionamento da Terra como um todo integrado. Este funcionamento dos ecossistemas em termos sistémicos conduz à necessidade de repensar a postura do Homem para além das relações com os seres vivos e estende-a a outros elementos como as rochas, o solo e a água, assim como aos próprios processos de natureza físico-química, geológica e biológica que neles ocorrem.

No entanto, a ideia de olhar o planeta como uma unidade constituída por partes

relacionáveis não é propriamente nova.169 Mas o facto de em qualquer das conceptualizações

que a contemplaram nunca se ter negado a centralidade humana torna abusiva a pretensão de as considerar como percursoras do ecocentrismo. Como consequência, a perspectiva

ecocêntrica só pode ser considerada num quadro civilizacional recente,170 e é a obra de Aldo

Leopold (1886-1948) que surge referenciada como a principal fonte inspiradora de uma nova ética (ou de extensão da tradicional, consoante a perspectiva) que não se restringe à Vida. Ambientalistas com posições diferentes, como Baird Callicott e Dave Foreman, assinalam por razões próprias, mas de forma igualmente efusiva, o trabalho literário de Leopold: o primeiro considera-o verdadeiramente fundador da ética ambiental e o segundo classifica A Sand

County Almanac como o livro mais importante alguma vez escrito.171 Exageros à parte, Des Jardins (2000) situa-o no contexto que assinalamos como pertinente, ao considerá-lo a única e mais importante figura de uma ética ambiental ecocêntrica que pretende fazer uma síntese entre os domínios da Ecologia e da Ética. Especialmente no ensaio "The Land Ethic", Leopold constrói uma conceptualização filosófica atractiva que pode funcionar como um guia

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Alguns filósofos que manifestaram esta ideia de unidade ou a referência a períodos da história da humanidade em que ela teve particular importância são-nos referidos por vários autores. Merchant (1980) assinala que durante a Renascença dominou uma perspectiva de unidade orgânica entre o cosmos e a sociedade. Para Nash (1989), uma visão holística da natureza perdurou a partir do século XVII associada a alguns ciclos filosóficos e religiosos e destaca: o animismo de Henry More (1614-1687), que defendia a existência de uma alma no mundo ou espírito da natureza, que designou por "Anima Mundi", a rejeição efectuada por Leibniz (1646-1716) da separação entre o vivo e o não vivo, e a noção panteísta de Espinosa (1632-1677) de que todo o ser era a manifestação temporária de uma substância comum criada por Deus, o que o levou a atribuir valor ao "todo" em vez de apenas às partes transitórias. Para Steverson (1994) essa visão holística pode ainda ser encontrada no sistema metafísico de Whitehead (1861-1947) ou na cosmologia de Tielhard de Chardin.

170

Cf. Almeida (2000, p. 2).

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normativo para temas diversos como a preservação dos espaços selvagens, o controlo da poluição, o consumo da energia e, especialmente, a utilização de recursos em moldes que se

afastam do modelo economicista tradicional.172

Leopold ([1949] 1989) considera que a terra (land) tem sido encarada em termos exclusivamente económicos, uma fonte de privilégios que não acarreta obrigações. Só a legitimação desta atitude explica que "um agricultor que corta a floresta em terrenos com um declive de 75% de inclinação, transporta as suas vacas para eles e estimula a erosão dos solos e das rochas para um riacho local, continue a ser um membro respeitado pela sociedade" (Leopold [1949] 1989, p. 209). Além disso, as próprias ideias conservacionistas tradicionais "não acentuam a diferença entre o certo e o errado, não estabelecem obrigações, não apelam a nenhum sacrifício, não implicam nenhuma mudança na filosofia de valores correntes" (Leopold [1949] 1989, pp. 207-208). Estas ideias conduzem também à distinção entre boas e más espécies, algo que reflecte um preconceito antropocêntrico utilitário e que desvaloriza igualmente as espécies que proporcionam uma menor rentabilidade a curto prazo.

Em consequência desta postura economicista de olhar a terra, as intervenções humanas no mundo natural têm conduzido a um empobrecimento dos biótopos, e tornado as cadeias alimentares progressivamente mais simples, tendência precisamente contrária à do caminho percorrido pelo processo evolutivo da vida na Terra. Seguindo esta via estamos a alterar uma estrutura de elevada complexidade que dificilmente poderá alguma vez vir a ser totalmente compreendida pela ciência, com consequências imprevisíveis. Têm sido intervenções violentas, rápidas e frequentes com impactos significativos em termos espaciais e temporais, o que as afasta igualmente do modo de funcionamento da natureza; sabemos que os sistemas

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Segundo Nash (1989), Leopold movimentou-se ao longo da sua vida na fronteira entre a ciência e a filosofia. Da Ecologia retirou, para além dos conceitos de cadeia, fluxo, nicho e pirâmide ecológica, a ideia central da importância das interdependências que, mesmo que remotas, se revelam cruciais, e o reconhecimento da realidade metafísica dos "todos" ecológicos (tão reais quanto as suas partes). Leopold utilizou os conceitos de Ecologia que estavam em voga nos anos 30 e 40, numa altura em que esta ciência passava uma fase de afirmação e desenvolvimento. Foi nesta época que se confrontaram com particular intensidade as posições organicistas e mecanicistas e em que os conhecimentos desta ciência se encontravam ao serviço de uma lógica de eficiência produtiva. Do ponto de vista filosófico foi influenciado pelas ideias do russo Peter Ouspensky, que defendia que a vida e o sentimento se encontravam inerentes a tudo e que no Universo todas as coisas apresentam um lado fenomenal e um lado não perceptível aos seres humanos. Ouspensky considerava que todos os organismos constituíam um superorganismo com o seu lado não visível, que designou noumenon. Removendo um ser alterava-se o noumenon da comunidade biótica. O resultado da conceptualização de Leopold não deixa de ser um produto híbrido, onde alguns conceitos ecológicos surgem com um significado distinto do que lhes é actualmente conferido (por exemplo, o conceito de comunidade biótica surge nitidamente no sentido de ecossistema).

ecológicos são fruto de uma evolução lenta de milhões de anos, e quanto menos violentas são as alterações, maior a facilidade de reajustamento da comunidade biótica.

Para ultrapassarmos todos estes nossos erros, Leopold apela a uma mudança de atitude e utiliza a metáfora de que é necessário pensarmos como uma montanha, em que o tempo geológico e os ritmos ecológicos ganham importância. "Só a montanha tem vivido o tempo suficiente para ouvir objectivamente o uivo de um lobo" (Leopold [1949] 1989, p. 129). É esta transformação nos nossos afectos, convicções e valores que irá possibilitar uma relação ética entre o ser humano e a terra (land), a qual será facilitada pelo entendimento que a

Ecologia nos proporciona acerca do funcionamento do planeta.173 A ética da terra que

Leopold nos propõe alarga as fronteiras (limites) da comunidade e inclui os solos, as águas, as plantas e os animais ou, colectivamente, a própria terra. A terra não é encarada meramente como solo, mas sim como uma fonte de energia que atravessa solos, animais e plantas, o que traduz um sistema vivo, um organismo colectivo merecedor de consideração moral. Decorrente deste alargamento ético, o Homem abandona a postura de conquistador e passa a membro ou cidadão da comunidade biótica alargada, numa atitude de manifesto respeito para

com os seus constituintes e para com a própria comunidade como um todo.174 E decorrente

desta postura surge a ideia central da sua conceptualização: "algo é certo quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errado quando procede em sentido contrário" (Leopold [1949] 1989, pp. 224-225). Mas, como a estabilidade da comunidade depende obrigatoriamente da presença dos seus membros, a sua sobrevivência deve igualmente ser assegurada, embora o foco preferencial de Leopold se direccione para a

saúde do sistema.175

173

O próprio Leopold é um bom exemplo de como a literacia ecológica pode contribuir para a mudança de atitudes, principalmente quando os seus princípios são vivenciados em contacto com os próprios problemas. No início do seu percurso profissional inseriu-se numa lógica conservacionista e envolveu-se em campanhas de eliminação de predadores. Mais tarde, passou a questionar as políticas de extermínio por se revelarem insensatas do ponto de vista ecológico. Considerou-as fruto da pressão dos produtores de gado que, na sua ambição desmedida de lucro, adquiriam um número excessivo de animais para os quais não possuíam depois capacidade de vigilância. Como resultado, pressionavam o Estado para que este resolvesse o problema e adoptasse programas de eliminação dos carnívoros que atacavam os seus animais.

174

Como concretiza Leopold: "O ser humano é apenas companheiro de viagem, juntamente com outros seres, na odisseia da evolução" (Leopold [1949] 1989, p. 109).

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É importante definirmos termos como integridade e saúde de um ecossistema. A integridade de um ecossistema relaciona-se com a capacidade de manter uma composição de espécies diversificada, adaptada e integrada do ponto de vista funcional. Um ecossistema saudável mantém a sua organização e autonomia através do tempo e é resistente a diferentes factores causadores de stresse.

Todavia, Leopold está consciente de que a aceitação por parte da sociedade de uma ética da terra não será nem fácil nem rápida, perante os obstáculos colocados pelos sistemas educativo e económico nela dominantes. Estes sistemas têm conduzido a que a maior parte das pessoas considere a terra apenas como o espaço entre as cidades onde crescem os cereais, sem que sintam a necessidade de estabelecer qualquer relação vital com ela. Ainda assim, Leopold não deixa de assinalar que todas as mudanças de atitudes são lentas, e que o próprio estabelecimento de uma conduta ética entre os homens ainda se encontra longe de ter sido

conseguido.176

Apesar da aceitação entusiasta do trabalho de Leopold no seio do movimento ambientalista, críticas diversas lhe têm sido dirigidas e decorrem principalmente da interpretação do significado das suas palavras. O próprio estilo de escrita de Leopold, em que se misturam influências de estudos ecológicos e filosóficos com a omissão quase total das

fontes bibliográficas que lhes estão na origem, convida a uma polissemia interpretativa.177

A principal polémica surge associada à sua máxima de avaliar as acções como certas ou erradas em função da estabilidade dos ecossistemas por poder abrir caminho à legitimação da desconsideração do ser humano e da individualidade dos seres vivos em geral. De facto, Leopold, não só nunca escreveu acerca dos direitos legais ou naturais dos seres vivos, como a sua conceptualização aponta para uma desvalorização clara dos indivíduos quando as

populações em que se inserem ultrapassam a capacidade de sustentação dos seus habitats.178

Para Regan (1983) as suas ideias conduzem a uma lógica perigosa na hierarquização dos indivíduos das diferentes espécies. E exemplifica: se uma planta silvestre rara contribuir mais para a integridade, estabilidade e beleza de uma determinada comunidade biótica do que um ser humano, então provavelmente nada haverá de errado em matar o ser humano e salvar a

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Tal como assinalámos na Introdução, o fraco entusiasmo com que as suas ideias foram recebidas nos primeiros anos após a publicação de A Sand County Almanac ilustra bem esta dificuldade.

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Worster (1994) vê no leque de possibilidades interpretativas da obra de Leopold uma das suas principais riquezas e considera natural que pessoas com ideias distintas acerca da conservação e preservação da natureza possam encontrar no seu texto um enquadramento aceitável para as suas ideias e acções concretas. Contudo, não deixamos de considerar o excesso de leituras contraproducente, até porque tem conduzido mesmo ao questionar do seu teor ecocêntrico.

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O facto de Leopold ter sido caçador ao longo da sua vida deve certamente ter contribuído para afastá-lo das posições biocêntricas. Para Nash (1989), Leopold teria encarado o vegetarianismo como algo bizarro, e o conjunto de ideias de Schweitzer, de ajuda aos indivíduos de espécies em dificuldade, como naif, embora nos seus escritos nada leve a concluir que aprovaria formas de violência gratuita para com os animais.

planta. Uma tal opção é claramente uma forma de fascismo ambiental, o que entra em colisão com a perspectiva dos direitos dos animais. Embora possamos compreender a preocupação de Regan atendendo ao teor atomista das suas ideias, ela parece-nos claramente exagerada uma vez que Leopold apenas propõe uma nova postura do ser humano perante as entidades naturais, e não deixa de afirmar que "uma ética da terra não pode impedir a alteração, gestão e utilização dos recursos, mas antes afirma a necessidade da sua continuada existência e, pelo menos em determinados pontos, a sua continuada existência no estado natural" (Leopold [1949] 1989, p. 204). Aliás, consideramos até curioso que Regan se refugie num exemplo extremo para criticar a perspectiva de Leopold, quando ele próprio parece pouco à vontade perante os desafios que as situações-limite colocam à sua própria teorização. Daí que se a máxima de Leopold for encarada como um quadro de referência, modelador das atitudes e das disposições do ser humano, a acusação acerca do seu eventual teor fascizante perde força. Neste quadro, podemos não saber especificar inteiramente à partida quais são as acções correctas ou as decisões acertadas, mas podemos determinar se a pessoa está a agir de maneira responsável. Trata-se de uma interpretação em tudo semelhante ao modo como pode ser

valorizado o biocentrismo de Schweitzer.179

No entanto, uma via contrária à por nós sugerida é apresentada por Norton (1991), que analisa de modo pragmático a teorização de Leopold e sugere até que ela traduz uma abordagem antropocêntrica de teor mais fraco. Norton coloca as seguintes questões: não estará Leopold a apelar para uma visão mais cuidada de gestão da terra a longo prazo que permita a sobrevivência da nossa espécie sem sobressaltos? Não será uma forma reflectida de

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Vários autores rejeitam a crítica de Regan às ideias de Leopold. Para Johnson (1991) os problemas da não conciliação entre holismo e atomismo decorrem de uma interpretação errada das teses de Leopold. O que está a ser problematizado é a nossa relação moral com a comunidade terra e não que esta relação é a única que importa. Todavia, Johnson não deixa de afirmar que, uma vez que a comunidade passa a ser objecto de consideração moral, é perfeitamente plausível que, em determinadas situações, os interesses individuais sejam preteridos, tanto mais que eles são frequentemente meros desejos pessoais, e não propriamente grandes desígnios da espécie humana. Passmore (1974), defensor como já vimos de uma ética centrada no Homem, defende que as ideias de Leopold são perfeitamente integráveis no quadro ético vigente e diverge essencialmente dele acerca da necessidade de uma nova ética que enquadre as relações do Homem com o mundo natural. Discorda ainda da ideia de o Homem e os outros seres constituírem uma verdadeira comunidade, pois não partilham interesses comuns nem reconhecem obrigações mútuas. Mas Callicott (1979) lembra que os criminosos também são membros da comunidade humana e não reconhecem obrigações mútuas e que todos os seres se encontram unidos do ponto de vista ecológico, partilhando o interesse comum pela Vida em si mesma. Também Soromenho- Marques (1998) faz uma leitura da obra de Leopold totalmente afastada da existência de qualquer processo de desumanização. Para este autor, o sujeito da "Ética da terra" é o Homem, que através da sua racionalidade abdica do seu poder destrutivo para com os outros seres vivos e ecossistemas dos quais, aliás, depende.

orientar a utilização prudente dos recursos, em vez de acentuar o desejo de retorno do lucro fácil?

Mas se Norton tem razão e se trata meramente de um antropocentrismo prudente, porque evoca Leopold a necessidade de uma nova ética?

De qualquer forma, Norton também se afasta da interpretação das ideias de Leopold, que as considera como um convite ao sacrifício do bem-estar da humanidade em função do equilíbrio e integridade dos ecossistemas. Todavia, se esta crítica pode aparentemente ser refutada associada às ideias de Leopold, iremos voltar a ela no ponto seguinte, onde se discute um leque mais diversificado de leituras relacionadas com o conhecimento ecológico.

2. UMA OUTRA LEITURA DO CONHECIMENTO ECOLÓGICO: