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3.2. Antropocentrismo motivado por razões não economicistas

3.2.2. O antropocentrismo lançado em novas bases ,

Poderia ter sido uma interrogação como esta que conduziu Wilson (1984) à apresentação da ideia (hipótese) da biofilia, onde o antropocentrismo centrado em razões de natureza não económica ganha novo ímpeto. Nesta conceptualização, voltamos a encontrar algumas das ideias já expressas anteriormente acerca das potencialidades amplas que a natureza oferece para o ser humano, desta vez inseridas num quadro distinto, onde a base

científica pretende contribuir para a sua validação.93 Wilson (1984, 1993) parte da ideia de

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No caso português a paisagem rural e sobretudo o mar adquirem um valor simbólico determinante na nossa história. Quanto ao valor da natureza enquanto museu, destacamos os casos da Arriba Fóssil da Costa de Caparica e da Floresta de Laurissilva na Madeira.

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Rolston III (1988) expressa ideias que vão ao encontro da nossa tese de que algumas das razões instrumentais não económicas podem favorecer uma percepção do planeta do ponto de vista ecocêntrico. Afirma: “Um fóssil, ao contrário de um tigre, não tem valor intrínseco, mas é uma relíquia instrumental na descoberta do que tinha ou tem valor intrínseco, e da verdade acerca da produção de valor dos ecossistemas evolucionários e do ambiente histórico no qual os seres humanos foram gerados” (p. 15).

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Importa salientar que Wilson não rejeita o argumento tradicional utilitário da natureza como recurso. Aliás, considera até espantoso que face ao potencial do mundo natural lhe seja dado tão fraca atenção em termos do seu

que os seres humanos manifestam uma filiação emocional inata para com as outras formas de vida, obtida através de um processo de coevolução genes-cultura. No entanto, os aspectos inatos moldados pelas regras de aprendizagem inserem-se num espectro alargado que vai da

atracção à aversão, do temor à indiferença, da pacificação ao medo ansioso pela natureza.94

Mas como em nenhum momento da história da humanidade (com excepção do presente) surgiu a ilusão de que as pessoas poderiam viver isoladas do resto do mundo vivo, a tendência inata manifestada foi sempre globalmente positiva. Esta tendência genética, decorrente do intenso contacto com a natureza durante o percurso evolutivo humano, revelou-se fundamental para essa mesma evolução. O nosso cérebro desenvolveu-se num quadro de biodiversidade, pelo que a sua destruição se revela um passo arriscado para a nossa integridade, dado que o mundo natural é o mundo mais rico em informação que as pessoas jamais encontrarão. E por isso afirma:

Sem beleza nem mistério, a mente fica por definição privada das suas relações, e derivará para configurações mais simples e grosseiras [uma vez que] os artefactos são incomparavelmente mais pobres do que a vida que pretendem imitar (p. 115). (...) [Por isso], quanto mais a mente for compreendida em si mesma como um órgão de sobrevivência, maior será a reverência pela vida por razões puramente racionais. (Wilson, 1984, p. 140)

Wilson alerta ainda para o facto de as pessoas, num ambiente desprovido de natureza, poderem até vir a crescer num quadro de aparente normalidade e felicidade, à semelhança da

conhecimento e exploração. “A biodiversidade é o nosso recurso mais valioso mas também aquele que menos estimamos” (Wilson, 1997, p. 290). Como prova, Wilson (1997) assinala que muitas espécies com importância económica potencial não chegam aos mercados, apesar de mais de 30000 de origem vegetal terem partes comestíveis e de ao longo da história da humanidade 7000 terem sido cultivadas. E, centramos a nossa alimentação em pouco mais do que 20 espécies e em que o trigo, o milho e o arroz têm um peso superior a 50%. Como demonstração do potencial subestimado, apresenta um leque de “novas” espécies promissoras, principalmente nos domínios alimentar e medicinal. Afirma que uma gestão cuidada poderá permitir conciliar os objectivos de crescimento económico com os da conservação. Para além disso, Wilson salienta que a produção, durabilidade e resistência à doença de várias espécies cultivadas depende do seu cruzamento com estirpes genéticas silvestres das espécies e subespécies com elas relacionadas. Mas, para este autor, uma perspectiva antropocêntrica consistente, baseada nas necessidades hereditárias da nossa espécie, tem de ser construída numa base mais ampla.

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A comprovação científica da tendência da biofilia tem ocorrido especialmente nas suas manifestações biofóbicas, nos campos de investigação da psicologia clínica e psiquiatria. Ulrich (1993) relata que há evidência considerável de que as pessoas dão respostas defensivas mais fortes perante medos naturais pré-modernos, como cobras e aranhas (comportamento comum também a outros primatas), do que a estímulos modernos bem mais perigosos, como armas e sistemas electrificados. Simplesmente, tendências aversivas são as menos relevantes quando se pretende demonstrar uma ligação globalmente positiva para com os elementos naturais. Ulrich reconhece que a pesquisa centrada em respostas positivas para com a natureza está menos desenvolvida devido à dificuldade de implementar estudos de condicionamento positivo, comparativamente aos de comportamento aversivo.

criação de macacos em jaulas ou da engorda do gado em espaços limitados. Mas algo de fundamental faltaria, não meramente relacionado com o prazer retirado do contacto com a natureza, mas sobretudo pela impossibilidade de concretização de um amplo leque de experiências que o cérebro humano está equipado para receber e processar.

Wilson, certamente influenciado pelas suas próprias concepções no domínio da sociobiologia, defende que nunca se deve pedir nada às pessoas que seja contrário aos seus interesses, e por isso considera todas estas razões mais do que suficientes para a defesa de uma ética preservacionista centrada num raciocínio egoísta, embora assente em novas e potentes premissas. Admite até que as espécies possam ter direitos universais e independentes. Mas perante a natureza intuitiva do argumento, o hipotético direito das espécies à sua preservação pode ser conseguido de maneira simples, através do direito das pessoas a viver de forma saudável e da relação de parentesco que nos une com todas as outras espécies a partir de um ancestral comum, e que nos acentua o desejo e a vontade de proteger a natureza. Wilson vê em actividades tão diversas como a caça, a pesca, a observação de aves, a jardinagem, a visita a jardins zoológicos, aquários e parques naturais manifestações de

biofilia, ou seja, do desejo de conexão com os outros seres vivos que, com maior ou menor

consciência, procuramos ao longo da vida.

Do pensamento de Wilson é de salientar, uma vez mais, a ideia do ser humano como ser interesseiro e egoísta mas que é capaz de promover com base no auto-interesse, e como diriam os utilitaristas, o tipo de acções capazes de gerar as melhores consequências possíveis para todos. Apenas fica por explicar, e sem negarmos a relevância dos exemplos dados por Wilson que evidenciam a ligação das pessoas à natureza, por que razão a nossa tendência biofílica não tem sido suficiente para contrariar a degradação ambiental a que chegámos. Mas a resposta não é difícil de imaginar. Apesar do determinismo genético indissociável da hipótese de Wilson, uma tendência não passa de uma tendência, pelo que as manifestações culturais podem anulá-la ou, pelo contrário, acentuá-la. Assim, para Kahn (1999, 2002), não se trata de negar a influência genética na afinidade para com a natureza, mas sim de atribuir um papel fundamental ao desenvolvimento psicossomático inseparável do contexto cultural. Só este processo permite integrar hierarquicamente numa estrutura mais ampla e globalizante

as orientações quer positivas quer negativas para com a natureza. Em tal estrutura, as manifestações biofóbicas não têm de desaparecer, mas são simplesmente ajustadas, à medida que as pessoas constroem formas mais adequadas de compreender o mundo e de agir sobre ele. E também permite ultrapassar, em muitas situações, a colisão mais do que provável entre benefícios materiais provenientes da natureza com outros igualmente apelativos e essenciais,

como o estético, científico, recreativo e simbólico.95

Numa linha de pensamento idêntica, Kellert (1993, 1996, 1997, 2002) reconhece a fraca influência das tendências inatas e salienta a necessidade de estas serem desenvolvidas através da aprendizagem. E uma vez que a maioria dos seres vivos não oferece um benefício directo em termos económicos, a conexão com a natureza tem de se associar à própria integridade do ser humano: desenvolvimento intelectual, necessidade de conhecimento, criatividade e imaginação, apelo estético, ligação emocional, desenvolvimento de capacidades físicas e até do reconhecimento de finalidades para a vida humana, que passam por distinguir

o essencial do supérfluo.96 Até o pretender dominar a natureza, desde que não degenere em

atitudes de crueldade e destruição, tem para Kellert potencialidades importantes porque fomenta a autoconfiança e independência, promove a exploração e a aventura, permite a afirmação da coragem e heroísmo, e revigora física e mentalmente. Os programas de outdoor constituem um desafio aos nossos próprios limites, surpreendem-nos pela possibilidade de revelação de capacidades que ignorávamos possuir, e possibilitam-nos ganhar uma nova força

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Esta conflitualidade de valores, que conduz tanto a acções preservacionistas como destrutivas da natureza, é admitida também do ponto de vista filosófico. Rolston III (1979) salienta precisamente que parte da natureza se opõe à vida, aumenta a entropia, mata, apodrece e destrói, pelo que a vida humana tem de lutar, como qualquer outra vida, pela sua sobrevivência. Há assim partes da natureza que têm de ser temidas e dominadas. Mas isso não impede que tais actos não estejam integrados hierarquicamente numa orientação afirmativa perante a Vida, o que abre igualmente caminho à possibilidade de uma orientação para perspectivas acerca da natureza menos centradas no ser humano.

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Kellert (1997) é exaustivo na afirmação destas potencialidades. Assim, por exemplo, o contacto directo e íntimo com a natureza encerra várias vantagens adaptativas: realça o bem-estar físico e vitalidade, expande a curiosidade e imaginação, aumenta a autoconfiança e auto-estima, proporciona uma maior calma e paz interior, e desenvolve uma perspectiva de conexão e unidade com a natureza, também ela vantajosa na valorização da cooperação, desenvolvimento da confiança pessoal e segurança, e inclinação para preservar a vida em geral. O apelo estético, o olhar científico e a ligação emocional à natureza nada mais fazem do que potenciar, embora em diferentes graus, estas mesmas vantagens. Esta panóplia argumentativa centrada no bem-estar físico e psicológico do ser humano leva Kellert (1997) a partilhar as interrogações de Wilson acerca da viabilidade das outras perspectivas ambientalistas. “Como podemos escolher um ser em detrimento de outro, se todos possuem direitos iguais e equivalentes ao nosso? Se a natureza possui um valor moral independente dos seres humanos, como podemos alguma vez optar pelo nosso bem-estar se dele resultar um prejuízo ambiental significativo?” (p. 206).

para vencer as adversidades da vida.97 E Kahn (1999, 2002) salienta que a investigação tem mostrado que a ligação à natureza torna as pessoas mais felizes, mais descontraídas, mais

saudáveis, mais produtivas e mais satisfeitas, em termos gerais, com as suas vidas.98

Todavia, Kellert (1997) lembra que o valor das experiências ligadas à natureza pode ser muito diferente. E, por isso, distingue entre contacto directo com a natureza - envolvimento físico com locais naturais; contacto indirecto - locais onde a natureza é gerida, como jardins e aquários; e contacto simbólico - representações veiculadas pelos media. Kellert considera que o mundo moderno tem seguido duas tendências que se complementam: por um lado, a experiência diária, não planificada em biótopos próximos, vai desaparecendo, motivada pela degradação ambiental contemporânea; por outro, as pessoas cada vez mais se confrontam com a natureza de uma forma não usual, esporádica e artificial. Esta realidade tem conduzido a um conhecimento centrado nos aspectos mais espectaculares dos diferentes ecossistemas e em aspectos factuais aprendidos nos locais onde a natureza é gerida. Mas para Kellert, as experiências indirecta e simbólica de contacto com a natureza não constituem alternativa à experiência directa. Na experiência indirecta falta a intimidade, desafio, criatividade e participação activa dos encontros directos com a natureza. A simbólica é uma experiência anestesiada, que ocorre no conforto do lar, e permanece incerto se permite moldar os valores das pessoas positivamente em relação à natureza. Ambas as experiências são ainda esporádicas, atípicas, altamente estruturadas, limitadoras enfim da espontaneidade e do comportamento adaptativo.

Uma vez que o desenvolvimento psicossomático e a própria consciência ambiental parecem associar-se preferencialmente à experiência directa da natureza, a ausência de contacto com o mundo natural torna-se preocupante pelas modificações comportamentais degenerativas a que pode conduzir. Para Kahn (1999, 2000) a diminuição deste contacto tem

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Para Kellert (2002), o leque de emoções sentidas na natureza (maravilhamento, satisfação, alegria, desafio, medo, ansiedade, perigo e até terror) constitui um poderoso estímulo de aprendizagem e desenvolvimento sem paralelo em ambientes artificiais, mesmo perante experiências bem simuladas e tecnologicamente sofisticadas.

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Também Ulrich (1993) refere que resultados de mais de cem estudos têm mostrado que uma redução do stresse é um dos elementos-chave dos benefícios decorrentes de actividades recreativas em áreas selvagens. Além disso, a exposição a certos locais naturais (dependendo do grau de segurança que geram e dos gostos pessoais) propiciam estados emocionais positivos que facilitam a resolução criativa de problemas ou um elevado desempenho cognitivo por facilitarem associações remotas, integração, percepção e relação entre diferentes materiais.

sido mesmo responsável por uma menor exigência das pessoas no reconhecimento da

degradação ambiental, conduzindo a uma espécie de amnésia que a admite como aceitável.99

Assim, parece-nos cada vez mais claro que não basta pensar na delimitação de áreas protegidas, tanto mais que estas se encontram frequentemente afastadas das áreas urbanas onde as pessoas cada vez mais se concentram. Importa sim pensar nas bolsas de natureza que foram sendo destruídas ou mutiladas na sua integridade ecológica com o avanço do tecido urbano. Por norma, a importância destas áreas naturais não tem sido valorizada nos meios preservacionistas dado que são áreas sem particular relevância em termos ecológicos (com espécies raras ou associações únicas). Mas o seu enorme interesse deriva do facto de possibilitarem aos jovens um leque muito variado de experiências, sem as restrições dos

parques e reservas naturais, e sem as características demasiado estruturadas de um jardim.100

Só nestas áreas a possibilidade de alguns comportamentos destrutivos da parte dos jovens, e que não deixam de fazer parte do leque de experiências marcantes associadas ao contacto com a natureza, podem ter lugar sem consequências importantes para os ecossistemas em causa.

Assim, o que parece mais uma vez posto em causa é o modelo economicista dominante que se revela contrário à nossa própria integridade e sobrevivência, em que os processos naturais se tornam demasiado lentos para satisfazer as exigências de crescimento económico. Como resultado, este modelo está a conduzir ao empobrecimento da vida humana e a transformar a degradação ambiental em algo normal, apagando da memória colectiva lugares que se caracterizavam, até há poucos anos, pela qualidade ambiental.

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Um estudo de Kahn (1999) com crianças americanas de Houston, uma das cidades mais poluídas dos Estados Unidos, veio evidenciar que embora a maioria das crianças reconhecesse três tipos distintos de poluição - das águas, ar e por detritos sólidos -, só um terço admitia que estes problemas ambientais as afectavam directamente, resultado surpreendente atendendo à sua realidade ambiental. Kahn avança com a explicação de que possivelmente quando a experiência de alguém se encontra estritamente limitada, o ambiente poluído passa a constituir uma situação de normalidade, isto é, essa pessoa perde a percepção da existência de poluição ou relativiza-a, e o meio envolvente surge como a norma perante a qual estados mais ou menos poluídos passam a ser medidos. Este resultado evidencia a necessidade de alargar a experiência das crianças de modo a que elas se apercebam que o seu "território" se encontra efectivamente degradado. Assim a amnésia ambiental intensifica-se naqueles que não se podem deslocar para além dos locais urbanos onde vivem (por norma, pessoas com maiores dificuldades económicas). Simultaneamente, outros factores decorrentes de mudanças na realidade social e cultural têm provocado o aumento da mobilidade, diminuindo as comunidades estáveis onde o sentido de lugar poderia ser cultivado de forma mais intensa e consolidada. Este desenraizamento tem também reflexos na atitude das pessoas perante a degradação ambiental tornando-as mais permissivas.

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Para Orr (2002), a sociedade capitalista atinge melhor os seus objectivos quando afasta os jovens do contacto com a natureza e os coloca em centros comerciais ou em frente de écrans de televisão e computadores, dependentes da Internet. ”Sabemos que os jovens em média reconhecem mais de mil logotipos, mas apenas algumas plantas e animais nativos dos locais onde vivem” (p. 282). O tempo outrora dispendido em actividades de outdoor é substituído pelo desejo de possuir ou experienciar algo comprado. Por isso, Orr também não estranha que os jovens manifestem cada vez mais o desejo de enriquecer, em vez de procurarem uma vida com significado mais profundo. Ainda para este autor, as constantes modificações (e mutilações) nos espaços familiares onde a psique das crianças é formada têm consequências. Problemas como as famílias disfuncionais, a depressão, a violência juvenil, o aumento do consumo de sedativos em jovens, são sintomas de algo mais amplo. Assim, para Orr (2002), “as crianças nas sociedades modernas são amplamente moldadas pela economia política contemporânea que defende o materialismo, o crescimento económico e o domínio humano da natureza e tolera riscos ecológicos de larga escala com consequências imprevisíveis” (p. 291).

Este é um retrato preocupante que conduz a um ciclo em que a um menor contacto com a natureza se associa um menor desejo na sua preservação. E lembra que muitas das maleitas da sociedade moderna, como a criminalidade e o consumo de drogas, não podem ser dissociadas da degradação ambiental. Mas talvez a consequência maior das palavras de Orr seja alertar-nos para a impossibilidade de transformar as várias dimensões que caracterizam um ser humano em apenas uma, a económica. E questionar ainda se o caminho reformista encetado pelo modelo económico dominante associado à economia de mercado será de facto suficiente para contrariar a nossa autodestruição.

CAPÍTULO II