• Nenhum resultado encontrado

CAMINHOS PARA A CONSIDERABILIDADE DOS OUTROS SERES

consideradas exclusivas. De entre elas destacam-se a racionalidade e a utilização de linguagem (capacidades motoras do empreendimento cultural), a senciência, a

autoconsciência, a agência moral e a apreciação estética. O reconhecimento da morte, o sentido de humor, o sentido de justiça ou até o fazer amor face a face fazem igualmente parte do elenco, embora sejam, por norma, objecto de menores desenvolvimentos argumentativos. Mas serão estas características verdadeiramente exclusivas do ser humano? E no caso de o serem, encontra-se legitimada automaticamente a nossa exclusividade em termos de

consideração moral?109

As perspectivas biocêntricas, para justificarem a considerabilidade humana de outros seres vivos, têm seguido três caminhos não necessariamente inconciliáveis: mostrar que há características que, embora atribuídas à espécie humana, não estão presentes (temporariamente ou de forma definitiva) em todos os seres humanos; demonstrar que muitos animais possuem as características que advogamos para nós exclusivamente; valorizar cada ser vivo por aquilo que ele é, independentemente das suas características. O foco preferencial por uma das vias encontra-se associado ao tipo de biocentrismo, parcial ou extensivo, das diferentes teorizações.

Para a defesa do primeiro caminho, é recorrente a chamada de atenção para a ausência

de determinadas capacidades em crianças muito pequenas ou pessoas com elevado grau de deficiência cognitiva. Os seres humanos com estas características recorrem sistematicamente ao condicionamento operante, e aprendem por tentativa e erro. A prova de que tais diferenças são reais é que não lhes exigimos as mesmas formas de conduta, nem lhes aplicamos as mesmas normas morais. Este facto aproxima-as de muitos animais adultos não humanos, por vezes, com modos de pensar até mais complexas. Por esta razão, faz todo o sentido estender a considerabilidade moral aos animais que se encontram nessas circunstâncias. Ainda assim, este tipo de argumentação tem o inconveniente de parecer querer sugerir que os animais são como seres humanos atrasados ou, na melhor hipótese, incompletos, quando não é esse o objectivo. Como afirma Rolston III (1994a), as excelências animais não são valiosas como imitações pobres do que mais tarde foi alcançado pelos seres humanos.

109

Independentemente das respostas a estas questões é importante mencionar que as características referidas oferecem pelo menos a vantagem de poderem ser investigadas em outros seres, ao contrário de outros atributos impossíveis de provar. A posse de alma é disso um bom exemplo e torna difícil contestar os que se limitam a argumentar nessa base.

O segundo caminho tem conduzido à tentativa de demonstração científica de que as características que advogamos exclusivas do ser humano de facto o não são. Afirmar que só o ser humano é capaz de melhorar o seu desempenho, utilizar ferramentas, ser proprietário, usar linguagem, possuir consciência ou ser autoconsciente, revelar poder de abstracção, ter o sentido do belo, manifestar gratidão, mistério ou mesmo acreditar em Deus, tem vindo a ser objecto de contestação a partir do momento em que numa determinada espécie se evidenciam comportamentos que traduzem (ou parecem traduzir) algumas das capacidades citadas.

As ideias de Darwin têm aliás constituído um incentivo importante para o aprofundamento desta linha argumentativa. Darwin ([1871] 1981) salientou precisamente a falta de consistência na evocação sistemática do que nos distingue dos outros seres vivos, dado que para ele essas diferenças são mera questão de grau. Por isso, não assinala mesmo qualquer diferença fundamental entre o Homem e os mamíferos mais complexos no que se refere às suas capacidades mentais, e mesmo animais inferiores na escala evolutiva as

evidenciam acima do que seria eventualmente esperado.110 E embora não deixe de afirmar

que, se de um ponto de vista mental o que nos diferencia dos outros animais é imenso, há um intervalo bem maior entre, por exemplo, uma lampreia e um macaco, pelo que se demarca totalmente da hipótese de que o Homem possa ser colocado num reino distinto.

110

Esta aproximação tem sido mais recentemente efectuada pela sociobiologia, linha investigativa apresentada por Wilson (1975) onde se explora a possibilidade de os princípios da biologia evolutiva poderem contribuir para a compreensão das sociedades humanas, numa transferência de princípios que estão na base de investigações com insectos sociais e mamíferos, especialmente primatas. Há contudo na sociobiologia uma tendência que diríamos inversa à apresentada, com a desvalorização das características distintivas atribuídas aos seres humanos, fruto do excessivo enfoque genético em detrimento da aprendizagem estritamente cultural. Por exemplo, os actos altruístas são enquadrados através da vontade (necessidade?) de um indivíduo legar à geração seguinte um input dos seus genes. É também este princípio que justifica os cuidados perante descendentes não directos, uma vez que no sistema diplóide humano, a nossa descendência partilha em média metade dos nossos genes mas o filho do nosso irmão também partilha um quarto desses mesmos genes. O verdadeiro altruísmo torna-se assim inexistente e a motivação é centrada no auto-interesse, numa interpretação idêntica à efectuada para as outras espécies com relações sociais e dinâmicas de grupo. Este modo de aproximação é extraordinariamente polémico, pois se as diferenças de tipo entre as espécies humanas e não humanas têm vindo a ser esbatidas pela investigação científica, a nossa espécie parece vocacionada para atribuir sentido ao que é incerto, desconhecido ou sem sentido, e a rebelião contra o determinismo genético é algo que nos parece estritamente humano. Mas Gould e Gould (1999), que não manifestam qualquer defesa da sociobiologia, admitem que existem características comportamentais humanas em tudo semelhantes às de outras espécies. Mencionam um quadro motivacional semelhante entre nós e as aves monogâmicas do ponto de vista sexual, em que factores de segurança, relacionados com a descendência, e aspectos de natureza estética, condicionam as escolhas de parceiros. Outros autores enveredam por um caminho contrário ao da sociobiologia. Masson e McCarthy (2001) referem que alguns investigadores têm identificado actos altruístas nos outros animais, por vezes com o envolvimento de seres de espécies diferentes, distintos dos exemplos clássicos das relações bióticas interespecíficas de tipo mutualismo, e longe dos conhecidos actos de altruísmo recíproco.

Darwin é exaustivo na procura de características partilhadas entre o Homem e os outros animais. No quadro cognitivo, destaca a memória excelente de alguns animais em relação a pessoas e lugares, e a capacidade de aprendizagem através da experiência e imitação da precaução dos outros. E essa é a razão da impossibilidade de captura de muitos animais num mesmo local com o mesmo tipo de armadilha. A agitação e a emissão de sons enquanto dormem revelam que os animais sonham, pelo que devem possuir algum poder imaginativo. De entre todas as faculdades da mente, a razão é certamente a mais importante. E acerca dela Darwin ([1871] 1981) afirma algo relevante: "É significativo que quanto mais um animal particular é estudado por um naturalista, mais ele atribui peso à razão e menos aos instintos não aprendidos" (p. 46). Daí ser possível constatar que em primatas há um aperfeiçoamento no uso de instrumentos e uma procura de soluções diversificadas em função das situações- problema com que se deparam. Por isso, Darwin prefere considerar que a especificidade humana se situa apenas na precisão na utilização de ferramentas, possibilitada pela estrutura, essa sim única, da mão humana. E quanto à linguagem, se é evidente ter existido uma correlação entre a continuação da sua utilização e o desenvolvimento do cérebro, na sua origem esteve certamente a imitação e a modificação, ajudada por sinais e por gestos, de vozes de outros animais e dos gritos instintivos do próprio Homem. E quanto à dimensão religiosa, Darwin revela-nos uma ideia curiosa. Afirma que a devoção religiosa é algo complexo: um misto de amor, submissão, respeito, dependência, medo, reverência, gratidão, esperança para com o futuro, tudo aspectos que, salvaguardadas as devidas proporções, se assemelham ao amor profundo de um cão para com o seu dono.

O quadro das semelhanças de carácter morfofisiológico e comportamental traçado por Darwin ([1871] 1981) é igualmente impressionante. Destaca o processo reprodutivo similar

de (praticamente) todos os mamíferos,111 desde o acto de acasalamento, passando pelo

nascimento e alimentação dos jovens, e as manifestações de afecto presentes nos cuidados parentais. No quadro das emoções, os animais não só são capazes de amar, como manifestam o desejo de ser amados, visível nos ciúmes que os macacos sentem no seu relacionamento entre pares, e presentes igualmente nas manifestações de um cão quando o seu dono dá

111

atenção a um outro animal. As relações empáticas são assim uma realidade e surgem igualmente nas manifestações de cumplicidade associadas à defesa dos seus inimigos ou, em caso de ataque coordenado, envolvem a fidelidade a um líder e o respeito pela hierarquia. Outra prova da continuidade entre o Homem e os outros animais decorre da possibilidade de transmissão de certas doenças, e algumas, como a apoplexia e as cataratas, tanto ocorrem em primatas como em seres humanos, para além da partilha do mesmo tipo de parasitas internos e externos que nos afectam a nós e a outros mamíferos. Curiosa também a constatação de Darwin de que várias espécies de macacos revelam um gosto por chá, café, licores e até fumam com prazer, e são ainda capazes de embebedar-se. O medo provoca neles o mesmo tipo de sintomas que no ser humano: os músculos tremem, os batimentos cardíacos aceleram, os esfíncteres relaxam e o pêlo fica eriçado, o que prova a similaridade dos sistemas nervosos.

O terceiro e último caminho para justificar a considerabilidade moral dos outros seres vivos prefere privilegiar a valorização das características neles presentes, independentemente da sua manifestação no ser humano. Como destaca Taylor (1989), há até capacidades que os seres humanos não possuem como, por exemplo, o voo, a capacidade fotossintética ou a possibilidade de produção de teias, como as aranhas. Decorrente deste facto seria uma injustiça não mencionar que cada animal, no contexto do seu nicho ecológico, está equipado com um conjunto de particularidades que muitas vezes nos ultrapassam e que são o resultado

de uma adequação satisfatória ao seu lugar na natureza.112 E mesmo algumas características

que partilhamos manifestam-se em nós com uma potencialidade inferior: as águias têm melhor visão telescópica, as focas são melhores nadadoras, as gazelas e as chitas correm melhor e os macacos são mais ágeis a trepar às árvores. Por que não considerar estas características igualmente como sinais da sua superioridade?

Este tipo de argumentação, para além de salientar a necessidade de valorizar cada ser por aquilo que ele é, questiona ainda a tendência de considerarmos mais relevantes as

112

Na mesma linha de pensamento, Gould e Gould (1999) salientam que "outros animais vêm cores que os nossos olhos não captam, sentem forças que não nos deixam nenhum traço, detectam sons com frequências muito elevadas ou muito baixas que não podemos captar sem instrumentos, assinalam químicos para os quais não possuímos receptores" (p. 10). O biólogo e fisiologista alemão Jakob Von Uexkull foi pioneiro na demonstração de que a experiência sensorial, fruto da selecção natural, é distinta nos diferentes seres vivos (incluindo naturalmente a nossa). No seu livro Dos animais e dos homens (s. d.) utilizou o termo “Umwelt” - mundo envolvente - para descrever o único e limitado mundo sensorial de cada espécie (mundo-próprio), onde cada ser só tem capacidade para detectar parte da informação que o mundo tem para oferecer.

características que mais se assemelham às nossas. Assim, porquê atribuirmos maior relevância ao facto de um determinado animal possuir pensamento elaborado e complexo do que quando as suas capacidades cognitivas se reduzem a formas simples de condicionamento clássico ou operante?

Destas ideias é fácil depreender que este modo de pensar se encontra melhor posicionado para estender a considerabilidade moral a todos os seres vivos, no respeito pelos

seus interesses próprios e independentemente das suas características e necessidades.113

Curiosamente, esta via acaba por conviver melhor com as próprias especificidades da espécie humana. Pode não existir uma qualquer qualidade humana verdadeiramente única e distintiva. Mas todos temos a percepção de que somos significativamente diferentes dos outros animais, algo visível em empreendimentos como a arte, a literatura, a filosofia, a ciência, e que conduz desde a especularmos acerca do significado da nossa própria existência até à capacidade de nos autodestruirmos de forma incomparável. Somos, assim, diferentes para o bem e para o mal, tanto mais que "os patos não provocam crises ecológicas como resultado de perspectivas erradas para o mundo" (Rolston III, 1988, p. 71). Assim, o reconhecimento de uma combinação de características que reflecte um padrão integrado e complexo é a melhor

maneira de traduzir a especificidade humana.114 Mas, nas teses biocêntricas, esta

especificidade não tem de configurar uma consideração moral exclusiva, nem é suficiente, em

algumas delas, para o reconhecimento de um maior valor intrínseco dos seres humanos.115

113

Falar em interesses dos seres vivos parece implicar que os mesmos deles tenham consciência, mas tal característica está apenas presente numa minoria de seres do reino animal. Todavia, os estudos auto-ecológicos têm-se revelado essenciais na verificação desses interesses por permitirem constatar o conjunto de necessidades que caracterizam os diferentes seres vivos, indispensáveis à continuidade das suas funções biológicas. Como afirma Taylor (1989), podemos, no caso de uma borboleta, evitar utilizar termos como interesses ou preferências, mas com a compreensão do seu ciclo de vida sabemos as condições ambientais de que necessita para um estado saudável de florescimento. Não temos assim dificuldade em avaliar o que lhe é benéfico e prejudicial. Destas investigações resulta a evidência de que o que favorece o bem-estar de uma determinada espécie pode não aplicar-se a outra, o que exige estudos rigorosos para cada uma de forma a identificar que interesses biológicos possuem os indivíduos que dela fazem parte.

114

Como afirma Marietta (1995), os animais têm uma visão parcial das coisas e só nós podemos ter uma visão do todo simbolizada pela perspectiva da Terra vista do espaço. E Gould e Gould (1999) consideram que a nossa diferença é de facto tanto em grau como em tipo: se por um lado constatamos que nenhum aspecto isolado da nossa capacidade cognitiva é de facto exclusivo, aquilo que nos diferencia em grau transforma-se numa diferença em tipo - uma diferença bem visível no nosso potencial de transmissão cultural.

115

Tanto Marietta (1995) como Varner (1998) interpretam a defesa de alguns filósofos da igualdade valorativa entre todos os seres vivos como meramente retórica. Estes autores consideram que se trata de uma estratégia de chamada de atenção para o sacrifício generalizado dos outros seres em função da satisfação de desejos, tantas vezes gratuitos, do Homem, numa crítica às posições antropocêntricas de teor economicista.

3. POLÉMICA PÓS-DARWIANA EM TORNO DAS CAPACIDADES DOS ANIMAIS