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3. POLÉMICA PÓS-DARWIANA EM TORNO DAS CAPACIDADES DOS

4.3. Biocentrismo extensivo e igualitário

O biocentrismo extensivo e igualitário contempla, ao contrário das perspectivas de Singer e Regan, todas as formas de vida existentes na Terra. Taylor (1981, 1989), o seu defensor conceptualmente mais consistente, propõe um conjunto de ideias que se aproximam das de Schweitzer, uma vez que rejeita também o estabelecimento de qualquer hierarquia

entre os seres vivos, porque tal renegaria o fundamento de qualquer ética centrada na Vida.157

Em conformidade, Taylor não se preocupa em eleger características mais ou menos relevantes que conduzam ao privilegiar de determinadas espécies em detrimento de outras. E encontra na teoria da evolução a demonstração evidente da ligação entre todas elas, e não

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Callicott (1985) critica vigorosamente esta posição, que considera ingénua do ponto de vista ecológico, não propriamente pela negação de direitos morais às espécies enquanto entidades, mas pela recusa em considerar prioritário o salvamento de indivíduos em perigo de extinção, tanto mais que muitas destas espécies são plantas ou insectos que não são sujeitos de uma vida. Por seu lado, Agar (1995) encontrou um modo curioso de conciliar as posições biocêntricas atomistas com o combate preferencial à extinção de espécies. Para este autor, a morte provocada em 5 pássaros de uma espécie em perigo é causadora de maior dano do que quando tal ocorre em igual número de pássaros de uma espécie abundante. A razão principal é porque põe em risco a satisfação dos interesses (metas representacionais é o termo utilizado pelo autor) dos indivíduos sobreviventes que vêem assim diminuídas as possibilidades de concretização das suas necessidades reprodutivas.

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O ecocentrismo transpessoal defende também o biocentrismo igualitário mas enquadra-o em moldes distintos (Cap. III, § 4.2.).

meramente a possibilidade de verificação de relações de maior proximidade entre algumas. Para Taylor, cada ser vivo procura o seu próprio florescimento, embora a maioria o faça de maneira inconsciente, e considera que o bem-estar das populações é conseguido através do somatório do bem-estar alcançado por cada um dos seus membros.

Associada às questões de valor utiliza uma terminologia mais completa do que a de

outros autores. Propõe o termo valor inerente158 como distinto de valor intrínseco,159 e define

ainda o conceito de mérito. Todos os seres vivos possuem um valor inerente idêntico, o que é algo distinto do seu mérito. Os seres humanos avaliam as espécies em função do seu mérito, tendo em conta um qualquer interesse ou finalidade. Todos os outros seres vivos manifestam um igual comportamento, identificando nos indivíduos das outras espécies as características que se revelam mais vantajosas para si ou para a população onde se encontram inseridos. Taylor manifesta também um interesse meramente instrumental pelos ecossistemas, já que a sua preservação visa contribuir para o bem-estar dos diferentes seres. Por isso considera que "não podemos derivar regras morais para o nosso tratamento do mundo natural da concepção de que a biosfera terrestre é um tipo de superorganismo cujo bem-estar determina o princípio máximo do que é certo e errado" (Taylor, 1989, p. 118). Um tal olhar passaria a avaliar o mérito dos organismos em função do sistema e não teria por base o reconhecimento do seu valor inerente.

Como se torna evidente, a teorização de Taylor não defronta o problema da colocação da linha de separação entre as formas de vida merecedoras de maior consideração moral, e, por isso, não se encontra dependente de novas revelações provenientes do campo científico. Todos os seres vivos são sujeitos morais, e todos os objectos inanimados não o são (pedras, grãos de areia, água). Na justificação desta separação, Taylor (1989) exemplifica com o caso

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Dignidade inerente em Beckert (2003).

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A sua teorização igualitária apresenta uma terminologia própria associada aos diferentes tipos de valor por ele considerados, em que apenas é mantido o significado usual de valor instrumental. Propõe os termos seguintes:

-Valor inerente (inherent worth) - é o valor que os próprios seres vivos encerram em si mesmos e que os torna objecto de consideração moral.

-Valor intrínseco (intrinsic value) - é o valor das experiências agradáveis aos sujeitos e que podem também proporcionar valor instrumental. Taylor exemplifica com o emprego de uma pessoa, que tanto pode proporcionar satisfação em si mesmo como um bom vencimento;

-Valor atribuído (inherent value) - é o valor que reconhecemos em artefactos e nas próprias maravilhas da Natureza. Taylor situa neste nível o valor afectivo atribuído aos animais de estimação e que é distinto do real. É um valor marcadamente subjectivo que não deve ser confundido com o valor instrumental.

da areia: o que significaria contribuir para o seu bem-estar? Protegê-la para que não se molhe só faz sentido quando se pretende uma determinada utilização, o que implica não se ter em conta a areia propriamente em si mesma. Além do mais os seres inanimados não se importam com as coisas que lhes podem acontecer. O mesmo acontece em relação aos artefactos construídos pelo Homem cuja utilidade depende da funcionalidade que lhes é atribuída, embora Taylor reconheça que no futuro venha a surgir uma dificuldade real nesta separação, uma vez que as máquinas com inteligência artificial poderão vir a possuir um bem próprio distinto do seu criador.

Deste modo, as ideias de Taylor enfrentam essencialmente o problema da separação clara entre seres vivos e seres inanimados, e que se reflecte, por exemplo, na dificuldade de classificação dos vírus. No entanto, Taylor focaliza as suas preocupações noutro sentido. Reconhece que o biocentrismo igualitário contraria a atitude da maior parte das pessoas, que considera grave o causar dano a animais de elevada complexidade, mas não sente o mesmo perante os invertebrados ou até as plantas. Por isso elege como obstáculo principal as concepções tradicionais, profundamente hierarquizantes, que nos são imbuídas desde a infância, fruto da tradição histórica que vem desde os gregos e que passam pela teologia

judaico-cristã e pelo dualismo cartesiano.160 Para este filósofo foram estas concepções

profundamente enraizadas que impediram a popularidade das próprias ideias de Schweitzer, tanto no seio do público como entre os filósofos.

Contudo, Taylor (1989) manifesta a esperança de que a sua perspectiva, que procura acentuar os laços entre todas as formas de vida, conduza ao questionar de velhas crenças e suscite uma análise introspectiva que leve as pessoas a concluir que estão erradas no modo como encaram a Vida na Terra. Essa reflexão obrigará também à diferenciação entre respeito pela natureza e amor pela natureza, uma vez que os afectos quase sempre se encontram direccionados para determinadas espécies ou comunidades. Por isso afirma: "O poder

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Nesta oposição às concepções tradicionais Taylor (1989) afirma que a sua teorização satisfaz os critérios estabelecidos pela tradição filosófica conducentes à sua aceitabilidade: abrangência e complementaridade; ordem sistémica; coerência e consistência interna; ausência de obscuridade, confusão conceptual e criatividade semântica; e consistência com todas as verdades empíricas conhecidas, numa clara articulação com o conhecimento científico. Mas alerta para o facto de a sua teorização biocêntrica não poder ser provada através da lógica ou da confirmação empírica, uma vez que não se trata, nem de um sistema dedutivo formal, nem de uma teoria científica.

atractivo de um ser não é relevante para a adopção de uma atitude de respeito. Para nós, algumas coisas no mundo são mais bonitas, interessantes ou agradáveis do que outras"

(Taylor, 1989, p. 91).161 Nesta medida propõe uma aproximação à teorização dos direitos mas

de forma distinta do modo como é aplicada em contexto humano: "Os animais e plantas são possuidores de direitos morais, porque os agentes morais assumem deveres que reflectem a atitude de respeito para com a Vida" (Taylor, 1989, p. 253). Mas considera a retórica desnecessária, uma vez que a consideração perante as outras formas de vida pode ser alcançada sem a abordar. E por isso afirma que como consequência do respeito pela Vida assumiremos os nossos deveres, obrigações e responsabilidades que evitarão o causar dano aos diferentes seres vivos.

Ainda assim, Taylor (1989) reconhece que "talvez nenhum ser humano possa tornar-se um ser moral total neste sentido ideal, mas isso não invalida o esforço de caminhar nessa direcção" (p. 216). Por isso, no prosseguir deste caminho, Taylor vê a afirmação de todo o potencial ético humano, que acabará por conduzir ao abandono das formas antropocêntricas tradicionais de pensar. Através da nossa racionalidade, conhecimento e desenvolvimento de uma elevada consciência da realidade atingiremos um estádio de maturidade que possibilitará a aceitação dos quatro princípios nucleares seguintes (Taylor 1981, 1989):

1- Todos os seres vivos são membros iguais da comunidade biótica, o que não implica negar as diferenças entre eles. No entanto, o ser humano manifesta uma riqueza de possibilidades singular. A satisfação das necessidades biológicas constitui condição essencial às suas realizações culturais e assegura possibilidades de liberdade e autonomia em termos individuais, sociais e políticos. Todavia, manifesta uma dependência das outras formas de vida que não encerra qualquer reciprocidade. Assim, torna-se evidente que a extinção da espécie humana beneficiaria toda a comunidade terrestre e as perturbações dos ecossistemas

voltariam a ser motivadas por causas naturais;162

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Este aspecto é relevante, visto que temos sempre de entrar em linha de conta com os comportamentos de desprezo das pessoas em relação a alguns seres vivos. Wilson (1984) destaca a rejeição (ou mesmo fobia) dos répteis (principalmente cobras) e dos aracnídeos. Interesses sectários de grupos profissionais podem conduzir ao mesmo efeito. Por exemplo, os criadores de gado tendem a odiar os predadores naturais, assim como os agricultores os gafanhotos e outros insectos herbívoros pelos prejuízos que causam nas suas culturas.

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Taylor (1989) coloca os animais domésticos ao nível dos artefactos. Esta maneira de os encarar é importante, dado que poderíamos argumentar que, face à sua dependência do ser humano, pelo menos estes seres vivos

2- Os ecossistemas relacionam-se uns com os outros e, por isso, modificações em um deles conduzem a reajustamentos nos outros, o que altera consequentemente a ordem biológica de todo o planeta. A sobrevivência de cada organismo é determinada não só pelas condições físicas do seu ambiente como ainda pela presença das outras formas de vida;

3- Todos os organismos são centros teleológicos de vida, no sentido de que cada um é um indivíduo único, que prossegue a realização do seu próprio bem. O conhecimento das condições indispensáveis ao florescimento das diferentes formas de vida é-nos dado pela ciência, o que permite a determinação de um bem objectivo referente a cada espécie;

4- Os seres humanos não são inerentemente superiores aos outros seres vivos. As avaliações só podem ser feitas numa análise comparativa de méritos ou deficiências das entidades julgadas. As capacidades não se relacionam com o valor inerente: "tudo o que necessitamos é de olhar as capacidades de animais e plantas a partir da perspectiva do seu próprio bem para encontrar uma avaliação contrária à da superioridade" (Taylor, 1989, p. 130).

Não é difícil imaginar que a maioria das reacções a estes princípios se centra nas ideias presentes nos pontos 1 e 4. Nestes pontos, Taylor parece indiciar a vontade de conciliar o seu igualitarismo biocêntrico com a singularidade humana. Mas para Rolston III (1988), a sofisticação humana não pode ser dissociada da atribuição à espécie humana de um maior valor inerente. Também a afirmação de Taylor de que os indivíduos das outras espécies ganhariam com a nossa extinção é recebida com irritação no meio académico. Gerber (2002) considera-a uma manifestação dispensável de misantropia, dado que para estendermos a considerabilidade moral aos outros seres vivos não precisamos de nos odiar.

A teorização igualitária de Taylor, porque estende a considerabilidade moral a todos os seres vivos, tem ainda como consequência inevitável o aumento de situações de conflito que resultam da interferência humana nos ecossistemas. Na tentativa de os resolver, Taylor desenvolve um conjunto de critérios para assegurar a viabilidade prática da sua teorização. Começa por definir quatro regras de dever que pretendem cobrir os aspectos mais prementes da nossa relação com os outros seres vivos. O seu reconhecimento impõe que limitemos o crescimento da nossa população, os hábitos de consumo e a utilização da tecnologia sem que

ficariam numa situação pior com a nossa eventual extinção. Contudo, se atendermos ao quadro descrito por Singer, é possível que, em termos globais, isso também não acontecesse.

tal obrigue a qualquer desconsideração perante a ética estritamente humana. São elas: a regra de não causar dano, a da não interferência, a da fidelidade e a da justiça restitutiva.

A regra de não causar dano implica não prejudicar quem não nos prejudica, na mera abstinência de causar um mal; a regra da não interferência conduz à limitação das actividades humanas que possam interferir com a liberdade e o desenvolvimento normal dos seres vivos. Através dela, evitam-se assim também as acções de discriminação positiva, fruto dos nossos afectos, por determinadas espécies. No entanto, o princípio não se aplica a ecossistemas que foram significativamente danificados pela acção humana; a regra da fidelidade aplica-se só aos animais selvagens e traduz-se em não enganar os animais para determinados fins, como acontece na caça, na pesca, ou noutras situações em que haja recurso a armadilhas. O sucesso destas actividades relaciona-se com técnicas de dissimulação que visam, de algum modo,

conquistar a confiança dos outros seres vivos para os capturar com maior eficácia.163 A regra

da justiça restitutiva obriga os agentes morais causadores de um mal ao dever de corrigir o dano causado através de alguma forma de compensação ou reparação. Quando há mortalidade de seres vivos, a aplicação da justiça restitutiva defende que a compensação seja aplicada à população ou à comunidade da qual os organismos eram membros, numa extensão do respeito dos indivíduos para com os seus parentes genéticos e associados ecológicos. Em situações em que as comunidades por inteiro são dizimadas, como quando se destrói uma floresta, a situação compensatória tem de ser efectuada numa outra comunidade biótica semelhante ou, caso isso não seja possível, numa outra comunidade mesmo que biologicamente distinta. Nestas situações compensatórias pode ser necessário "enganar" os seres vivos sobreviventes, como quando se usam tranquilizantes para remover um animal para outro lugar.

Taylor (1989) estipula as seguintes prioridades entre estas regras: o dever de não causar dano não pode entrar em conflito com o de não interferência, e tem maior importância que o dever de fidelidade e o de justiça restitutiva. O dever de fidelidade e o de justiça restitutiva podem ignorar o de não interferência, desde que um grande benefício ocorra para

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Para Taylor (1989), "o homem caçador é um homem dissimulado. Leva até, no caso da caça aos patos, um chamariz de imitação. (...) A conduta do caçador é a de procurar enganar o animal, ou seja, ganhar vantagem da confiança manifestada por um animal" (p. 180). No entanto, Taylor admite a caça ou a pesca como meio de sobrevivência humana, o que não acontece quando tais actividades são meramente recreativas.

os seres vivos. Também o dever de justiça restitutiva pode ultrapassar o de fidelidade por razões idênticas.

Taylor (1989) define ainda cinco princípios prioritários que afirma respeitarem o princípio da imparcialidade das espécies, e que contribuem para resolver os dilemas morais que surgem quando os direitos e valores humanos entram em conflito com o bem dos seres não humanos. Embora constituam auxiliares para uma resolução justa perante as pretensões em conflito, nem sempre providenciam uma solução clara para todas as situações, até porque nova informação factual pode conduzir a uma reavaliação dos caminhos inicialmente decididos. São eles: o princípio da autodefesa, o da proporcionalidade, o do mínimo dano, o da justiça distributiva e o da justiça restitutiva.

O princípio da autodefesa defende a protecção dos agentes morais contra os organismos nocivos e perigosos. Deste modo é legitimada a eliminação de outras formas de vida, embora esta deva ser efectuada através de processos que garantam o menor dano possível nos outros seres vivos. Traduz a negação de qualquer auto-sacrifício, que apenas se justificaria se reconhecêssemos valor inerente superior aos indivíduos das outras espécies. Os outros quatro princípios encontram-se relacionados e envolvem conflitos à margem das questões associadas à vida e saúde humanas, mas cuja aplicabilidade depende da distinção entre interesses básicos e não básicos para a espécie humana. Assim, os princípios da proporcionalidade e do dano mínimo aplicam-se em situações em que há um conflito entre os interesses básicos dos outros seres vivos e os interesses não básicos dos seres humanos, devendo prevalecer os primeiros. Esta opção não tem sequer que envolver grandes sacrifícios porque, na prática, colocam-se ao ser humano alternativas susceptíveis de provocar um menor dano e sem que a interferência com determinadas áreas naturais seja necessária. O princípio da justiça distributiva implica situações em que apenas estão envolvidos interesses básicos por

parte de todos os sujeitos.164 Uma vez que todos os seres possuem igual valor inerente, o

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Taylor (1989) considera importante lembrar que no caso dos seres humanos os interesses básicos são extensivos a todos os que valorizam a nossa existência como pessoas, o que inclui subsistência e segurança, autonomia e liberdade. E, simultaneamente, menciona um conjunto de interesses humanos não básicos incompatíveis com a perspectiva biocêntrica: a morte de animais selvagens para a confecção de vestuário e objectos variados; o comércio de animais selvagens, quer para zoos, quer como animais de estimação; a recolha de plantas raras para colecções particulares e a pesca ou caça desportivas. Por último, chama a atenção para o facto de outros interesses que considera não básicos, como a construção de barragens e infra-estruturas variadas de comunicação (estradas, portos, aeroportos) ou a substituição de uma floresta nativa por uma de produção,

caminho é o da partilha de recursos. Esta partilha tem de obrigar a que determinadas zonas da Terra permaneçam selvagens e que outras sejam apenas ocupadas e exploradas temporariamente, devendo o tipo de intervenções permitir o seu rápido restabelecimento após a cessação do interesse humano. Dada a dificuldade de uma tal equidade, é fundamental implementar algumas medidas de reparação ou compensação e, daí, o princípio da justiça restitutiva que se aplica a situações do passado em que o princípio do mínimo dano ou o da

justiça distributiva não foram aplicados.165 Assim, apesar das tentativas para tornar aplicável

a sua teorização, parece-nos claro que a multiplicidade de regras de dever e de princípios apresentados por Taylor são a evidência das dificuldades reais com que se depara a sua teoria biocêntrica igualitária. Mas talvez a sua teorização deva ser encarada mais como uma referência que conduza a uma nova atitude perante a Vida (embora Taylor pretenda mais do que isso), já que em termos práticos uma efectiva equidade na distribuição dos recursos parece ser extraordinariamente difícil de alcançar.