• Nenhum resultado encontrado

3. POLÉMICA PÓS-DARWIANA EM TORNO DAS CAPACIDADES DOS

4.1. Biocentrismo senciente

Uma das teorizações que consideramos mais influentes de biocentrismo é a que centra a sua preocupação nos seres sencientes, e tem por base as teses utilitaristas de Bentham e Mill

já mencionadas.132 Foi a partir da década de setenta que o problema do sofrimento animal

voltou a ser tema de debate com o contributo fundamental das ideias de Peter Singer. Na sua obra Libertação Animal este filósofo estabelece a analogia com outras formas de libertação que têm ocorrido ao longo da história da humanidade, como o fim da escravatura, a emancipação da mulher, e especialmente a luta contra o racismo. Singer (2000b) considera que ambas as formas discriminatórias, a dos animais e a das etnias, obedecem a princípios comuns: o racismo conduziu à realização de experiências terríveis em outros seres humanos defendidas na base da sua importância para a etnia que as fez, como as efectuadas durante o nazismo com prisioneiros judeus, russos e polacos; a experimentação animal para fins científicos move-se pela sua alegada importância para os seres humanos, numa manifestação de especismo entendido como "um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies"

(Singer, 2000b, p. 6).133

Embora em conformidade com os princípios utilitaristas, Singer focaliza-se, não na forma hedonista de Bentham, mas num utilitarismo mais globalizante, centrado nas

preferências dos animais sencientes.134 Porém, esclarece que "a igualdade na consideração de

132

Como afirma Marietta (1995), "o utilitarismo pode revelar uma concepção errada ao considerar as experiências de prazer e dor (ou de felicidade e sofrimento) como o único guia para as decisões éticas, mas nenhum sistema ético pode negar que a dor (ou o sofrimento) é algo relevante" (p. 64).

133

Trusted (1992) considera a comparação entre racismo e especismo imperfeita, dado que o racismo é uma forma de xenofobia baseada ou apoiada no medo por desconhecidos e tem como resposta o desejo de submeter as outras etnias. Ora este modo de afirmação de supremacia da espécie - especismo - não tem propriamente o medo na sua origem, embora traduza igualmente uma postura de arrogância e superioridade.

134

Singer (2000a) explica que há interpretações que consideram que "os utilitaristas clássicos como Bentham e Mill usaram os termos 'prazer' e 'sofrimento' num sentido lato que incluía a obtenção daquilo que uma pessoa deseja na categoria de 'prazer' e o contrário na de 'sofrimento.' Se esta interpretação estiver correcta, a diferença entre o utilitarismo clássico e o utilitarismo baseado em interesses desaparece" (p. 30).

interesses é um princípio mínimo de igualdade no sentido em que não dita um tratamento igual" (Singer, 2000a, p. 41).

Com esta afirmação, Singer começa o caminho que conduz à clarificação de que a sua teorização não corresponde a um qualquer tipo de biocentrismo igualitário ou que pretende,

de algum modo, desconsiderar o ser humano.135 Desde logo, assinala que o sofrimento

sentido pelos animais não só varia com a espécie como difere do nosso em muitos aspectos. Além disso, as pessoas possuem um leque mais vasto de experiências possíveis (metas conscientes, desejos, projectos), e não são meros receptáculos que contêm uma certa dose de

felicidade.136 E quanto maior o grau de autoconsciência que um ser vivo possui, maior o

leque de experiências possíveis a que pode ter acesso. Por isso, Singer defende que se pudéssemos escolher que forma de vida gostaríamos de ser, optaríamos certamente por uma de maior complexidade, pelo que o estabelecimento de uma ordem hierárquica entre elas (em

que naturalmente o Homem se encontra no topo) não implica necessariamente especismo.137

Decorrente da aplicação do princípio do utilitarismo centrado nas preferências, torna-se mais grave matar pessoas do que outros seres apenas sencientes. Quando uma pessoa morre fica frustrada a consecução dos seus desejos, a qual não é compensada mesmo que outros seres

nasçam com desejos similares.138 Mas a ideia mais surpreendente é que Singer (2000a) inclui

no conceito de pessoa todos os seres racionais e autoconscientes, e considera que face aos estudos científicos, estes atributos existem nos símios - chimpanzés, gorilas e orangotangos - e depois, com diversos graus de confiança, em baleias, golfinhos, macacos, cães, porcos, focas, ursos, bovinos, ovinos, caprinos e, eventualmente, em todos os mamíferos. Mesmo em

relação às aves, considera um pressuposto duvidoso admitir que não são autoconscientes.E

prevendo a perplexidade perante o seu conceito alargado de pessoa, considera-a desde logo fruto do hábito da nossa espécie em se separar das restantes e lembra igualmente que no

135

Singer (2000a) refere que "o objectivo [da sua argumentação] é elevar o estatuto dos animais e não diminuir o estatuto de qualquer ser humano" (p. 98).

136

Cf. Singer (2000a, p. 145).

137

Cf. Singer (2000a, pp. 126-127).

138

Com esta posição demarca-se da crítica mais frequente de que o utilitarismo clássico tem sido alvo por tornar permissível o sacrifício da vida de uma pessoa a favor da de outras pelo menos quando daí resulta uma maior agregação de benefícios. Mesmo assim, Regan (1983) salienta que as suas ressalvas não deixam de constituir uma violação das ideias centrais do utilitarismo e que o próprio princípio de igualdade de interesses entra em colisão com o princípio da utilidade.

sentido definido nem todos os seres humanos são pessoas. Ainda assim, mesmo que não se concorde com o seu conceito alargado de pessoa, torna-se difícil contestar que as capacidades cognitivas mais desenvolvidas dos seres dos grupos referidos não exerçam alguma influência na forma de nos relacionarmos com eles.

Maiores dificuldades de aplicabilidade nos suscitam as ideias de Singer acerca da nossa relação com os seres apenas sencientes, onde se incluem vertebrados como os peixes ou invertebrados como os artrópodes. Uma vez que estes seres são incapazes de preferir a sua existência futura face à sua não existência, a sua morte sem sofrimento não constitui propriamente um mal, se for contrabalançada com o surgimento de outros seres semelhantes. Mas dado que Singer considera que os processos humanos que conduzem à sua mortalidade não respeitam a ausência de sofrimento, e já que estes processos se relacionam frequentemente com a sua captura para a alimentação, então a solução mais apropriada seria a

sua exclusão como alimentos.139 Com esta nota restritiva, Singer praticamente inviabiliza a

possibilidade de substitualidade dos seres vivos sencientes menos complexos ou, pelo menos, torna-a refém da procura de novos e difíceis processos de captura, transporte e confecção que sejam inócuos em termos de dor.

Singer salienta que as interferências crescentes do Homem em áreas naturais têm vindo a ser responsáveis pelas frustrações das preferências de muitos seres vivos. Mas as preocupações de Singer acabam por se centrar na esfera dos animais domésticos, embora contemplem também os animais selvagens forçados a abandonar os seus biótopos naturais, ou criados posteriormente em regime de produção, para satisfazerem preferências humanas

duvidosas.140 A produção animal (a expressão é por si só reveladora da desconsideração a que

são votados os seres vivos envolvidos neste processo produtivo) e a utilização de animais em experiências são duas actividades centrais na sua crítica. No primeiro caso, visa-se o lucro

139

Cf. Singer (2000b, pp. 163-164).

140

Rolston III (1988) apresenta uma das críticas mais consistentes a este foco preferencial na relação do ser humano com os animais domésticos. Este filósofo lembra que estes animais foram perdendo muitos dos instintos de sobrevivência que fazem com que o seu abandono conduza, muitas vezes, à sua morte, ou à degradação ecológica, dado que funcionam como elementos estranhos aos ecossistemas. Tornaram-se "objectos culturais que não podem tornar-se sujeitos culturais" (p. 79), o que intensifica a responsabilidade humana de cuidar deles e de não lhes infringir maior sofrimento do que os seus ancestrais sentiriam em meio selvagem. Mas apesar de alguma concordância com as ideias de Singer, preocupa-o essencialmente o facto de só pensarmos nos seres sencientes que nos estão próximos, o que considera poder constituir uma forma subtil de antropocentrismo.

fácil e rápido dos que investem em tais negócios, com total desprezo pela dignidade dos animais, obrigando a lógica comercial e a concorrência entre empresas a um aperfeiçoamento das técnicas conducentes à sua desconsideração. Como afirma Singer (2000b), "não há aspecto da criação de animais que esteja a salvo das incursões da tecnologia e da pressão

exercida no sentido de intensificar a produção" (p. 133).141

Os horrores descritos por Singer associados precisamente ao uso dessas técnicas são praticados em quase todos os países desenvolvidos, e passam por afectar o desenvolvimento normal dos seres vivos, impedindo que estes tomem parte numa comunidade de animais de várias idades, tal como aconteceria nas suas condições naturais, e na violação de grande parte dos padrões e necessidades inatas que manifestavam os seus ancestrais em meio natural. Os exemplos seguintes são prova disso mesmo: as aves são mantidas aos milhares em áreas onde não podem esgravatar, tomar banhos de pó, construir locais de postura ou estender as asas; as vacas leiteiras permanecem em espaços fechados e confinados, onde as condições abióticas são meramente ajustadas à rentabilidade; outros bovinos são mantidos em espaços exíguos para que não desenvolvam tecido muscular e assim a sua carne se torne tenra. Estes animais sofrem ainda experiências dolorosas como o corte dos chifres, a castração e a marcação em brasa; os suínos também são mantidos sem condições, e Singer destaca o facto de estes animais possuírem um grau de inteligência semelhante ao dos cães para melhor entendermos

a intensidade do seu sofrimento.142

Singer estende também a sua preocupação a animais selvagens como martas, furões ou raposas do árctico, que são mantidos em cativeiro para aproveitamento das respectivas peles. Estes animais, habituados a percorrer quilómetros, são encerrados em gaiolas minúsculas e impedidos de qualquer mobilidade. Apesar de não serem seres autoconscientes, até os peixes, objecto de criação intensiva recente, são para Singer fonte de preocupação. Associada à indústria de aquicultura estão ainda por investigar muitos dos problemas relacionados com o

141

Para além da questão do sofrimento dos animais associada ao uso de determinados métodos de produção, lembramos que o uso de antibióticos, hormonas e outras drogas permitidas ou ilícitas, conducentes ao crescimento rápido dos animais, tem revelado consequências igualmente gravosas para a saúde pública.

142

Midgley (1992) admite que a maioria de nós trataria num contacto directo os animais de maneira distinta da que tacitamente permitimos fora do nosso campo de visão. Por seu lado, Masson e McCarthy (2001), embora admitam que a maioria das pessoas possa desconhecer o modo como os animais são utilizados em experiências científicas, no que se refere aos matadouros é sua convicção de que toda a gente sabe o que lá se passa, mas tentamos ignorar a realidade porque ela nos perturba.

aprisionamento destes animais em tanques, como a densidade de ocupação, a negação do seu instinto migratório ou a tensão provocada pelo seu manuseamento. Lembra ainda os autênticos massacres de que são alvo as espécies marinhas através das técnicas de pesca de arrasto, em que, por vezes, mais de metade do pescado inclui espécies não comerciais que são mortas e depois devolvidas ao mar, pondo naturalmente em perigo o equilíbrio dos ecossistemas marinhos. Por último, assinala o sofrimento provocado em crustáceos, não só decorrente de serem, muitas vezes, confeccionados vivos, como de serem mantidos em aquários de mercados e restaurantes.

O aproveitamento de todas as espécies referidas, essencialmente para a alimentação e vestuário, leva Singer a propor alternativas, uma vez que o aumento da população humana impossibilita a criação de animais apenas em quintas tradicionais ou o recurso exclusivo à pesca artesanal. Consciente de que a diminuição da produção iria tornar o consumo de carne ou de peixe um privilégio dos mais ricos, apresenta o único caminho por ele considerado consistente: o de nos tornarmos vegetarianos. Só uma tal mudança, associada a uma modificação radical dos hábitos de consumo, possibilitaria uma alteração substancial do sistema. Uma alimentação centrada em seres do primeiro nível trófico permitiria um maior aproveitamento do fluxo energético terrestre, e seria até compatível com o crescimento demográfico humano (embora não o defenda), libertando ainda terrenos dedicados ao

pastoreio para o mundo selvagem.143

A outra linha de preocupação de Singer já mencionada é a da utilização de animais em experiências científicas e para testagem de produtos variados, que incluem, entre outros, insecticidas, lixívias, cremes dermatológicos, sais de banho, champôs, verniz para as unhas e lacas. Singer é contundente nas críticas que tece à ciência e à tecnologia, dois empreendimentos considerados maiores pela humanidade, e considera que a sua participação

143

Alguns críticos do vegetarianismo salientam a nossa condição de omnívoros fruto da evolução da espécie humana. Singer liberta-se deste determinismo naturalista e considera que a nossa superioridade intelectual nos permite fazer opções. Entre elas, encontra-se precisamente a de alterarmos o nosso regime alimentar em função da nossa postura ética, tanto mais que não envolve risco à nossa integridade física e intelectual. E salienta que no mundo já existem várias limitações alimentares impostas por motivos religiosos. Como aspecto complementar referimos que perante a insistência dos nutricionistas na redução do peso da carne na nossa alimentação por motivos de saúde, a defesa de uma alimentação vegetariana pode conciliar motivos biocêntricos e antropocêntricos.

no que denomina de chacina só pode dever-se à força e prestígio da comunidade científica, apoiada por diversos grupos de interesse.

Singer até admite a utilização de animais em investigação científica, dado que como utilitarista considera ser possível o sacrifício de uma vida para salvar outras, até porque parte dessa investigação visa o combate de doenças nos próprios animais. Mas o problema é que a utilização dos animais não obedece a qualquer base criteriosa, e nem sequer se tentam desenvolver métodos alternativos de investigação, prova maior da desconsideração a que votamos os outros seres vivos. A falta de pertinência de muitas experiências é para Singer uma evidência por pretenderem muitas vezes provar o óbvio. Outras vezes, os resultados poderiam ser obtidos com recurso a técnicas menos dolorosas. Por isso, questiona:

Como podem pessoas que não são sádicas passar os seus dias de trabalho a arrastar macacos para uma depressão vitalícia, a aquecer cães até à morte, a transformar gatos em dependentes de drogas? Como podem elas depois tirar as batas brancas e ir para casa, jantar com as famílias? Como podem os contribuintes permitir que o seu dinheiro seja utilizado para financiar estas experiências? Como podem os estudantes manifestar-se contra a injustiça, a discriminação e a opressão de todos os tipos, seja a que distância for de sua casa, e ignorar a crueldade que era - e ainda é - levada a cabo nas suas próprias faculdades? (Singer 2000b, p. 63)

E a propósito da experimentação animal Singer argumenta de modo convincente: afinal não é corrente a afirmação de que somos seres especiais, diferentes dos outros? Então, que validade atribuir à extrapolação de resultados quando se utilizam seres de uma outra espécie? E, se afinal não somos assim tão diferentes, não é tal facto suficiente para atribuir consideração moral aos animais? Por isso conclui: "ou o animal não é como nós - e, nesse caso, não existe qualquer razão para realizar a experiência - ou, ao invés, o animal é como nós - e, portanto, não se deveria realizar no animal uma experiência que seria considerada revoltante se realizada num de nós" (Singer 2000b, p. 48).

O caminho alternativo que propõe passa por uma maior consciencialização dos jovens investigadores que conduza à sua recusa na realização de certos tipos de experiências e dos consumidores, que através das suas escolhas podem inviabilizar o sucesso comercial de produtos testados em animais.

Várias críticas têm vindo a ser formuladas à teorização de Singer, mas algumas delas acabam por não se relacionar propriamente com hipotéticas fragilidades conceptuais. Uma delas procura-nos fazer reflectir acerca da prioridade do sofrimento animal num mundo em que grande parte dos seres humanos se debate com carências várias e vidas difíceis. Mas, é quase impossível não poder argumentar que há sempre algo mais relevante com que nos preocuparmos, mesmo quando nos movimentamos numa ética estritamente humana. Uma tal linha de pensamento parece constituir um convite à inacção perante problemas reais que nos rodeiam. Além disso, a partir do momento em que o ser humano se dedicou à domesticação de animais não pode deixar de assumir a responsabilidade associada a um tal acto. E não faz sentido relativizar os maus tratos, afirmando que os animais nunca conheceram melhores condições de vida. Trata-se de uma maneira inconsistente de pensar, perante as muitas formas de causar dano que não implicam o seu conhecimento por parte das vítimas. Por isso, não vemos como pode ser considerada ilegítima, ou mesmo relativizada, a preocupação pela satisfação dos interesses dos animais. Na realidade, como seres humanos completos, canalizamos a nossa atenção e preocupação em muitas direcções, e muitos dos que se preocupam com o sofrimento animal também se envolvem em causas humanitárias.

De entre as críticas que consideramos mais pertinentes, o destaque vai claramente para a de Johnson (1991), que pergunta: se a racionalidade não serve de critério para diferenciar a consideração moral para com seres humanos e animais, porque deve ser a senciência uma base para esta diferenciação?

Singer, ao propor a senciência como base para a considerabilidade moral dos seres vivos, acaba por excluir grande parte dos seres do reino animal, assim como os de todos os outros reinos. E enfrenta o problema de onde traçar com exactidão as linhas da senciência e da autoconsciência, aspectos que acabam por ser fundamentais para que a sua teorização tenha viabilidade prática. No entanto, é verdade que as dúvidas que decorrem do conhecimento científico produzido até ao momento o levam a optar por um caminho não excessivamente restritivo. E por isso coloca a primeira delimitação algures entre um camarão

e uma ostra144 e a segunda na separação dos mamíferos e aves dos restantes animais.

144

Varner (1998) destaca que vários estudos têm chegado à conclusão de que todos os vertebrados sentem dor e que a maior parte dos invertebrados não a sente, com a excepção notável dos cefalópodes (ou pelo menos os

Mas perante tanta incerteza, qual é o melhor caminho? Procurar que a investigação científica nos continue a ajudar na identificação das características consideradas necessárias? Ou abandonar esta teorização a favor de outras que levantem menos dificuldades conceptuais?