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3. POLÉMICA PÓS-DARWIANA EM TORNO DAS CAPACIDADES DOS

4.4. Biocentrismo extensivo e hierárquico ,

Por último, consideramos a proposta biocêntrica de Varner (1998), que apresenta a especificidade importante de associar a considerabilidade moral de todos os seres vivos com um sistema hierárquico que diferencia e salvaguarda os interesses dos animais mais complexos. A inclusão de um tal sistema é para o autor um contributo importante para aumentar a aplicabilidade de qualquer conceptualização biocêntrica. Também nos parece que

vai ao encontro da empatia que manifestamos pelos seres vivos mais complexos.166

deverem ser sempre objecto de uma avaliação cuidada, não só porque frequentemente existem alternativas à sua construção e viabilização, como a sua própria localização, em determinados locais, pode não ser incompatível com o respeito pelos seres vivos. No caso da alimentação, Taylor, apesar de afirmar que os seres sencientes não possuem um maior valor inerente, reconhece que o sofrimento é algo de intrinsecamente mau e acaba por coincidir com Singer na sugestão de que deveríamos optar por um regime vegetariano, desde que se salvaguarde a especificidade dos seres humanos que, vivendo no Árctico ou nas altas montanhas, não têm alternativa à alimentação animal.

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Des Jardins (2000), a um nível específico da teorização, considera que o princípio da justiça restitutiva, uma vez que não pode ser aplicado aos indivíduos mortos, constitui uma contradição na conceptualização de Taylor. Mas incoerências como esta surgem em qualquer teorização atomista biocêntrica devido ao foco no bem-estar de cada ser vivo. Este foco também acentua a ideia de que o conflito e a competição constituem o estado natural da vida.

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Como afirma Rolston III (1994a), entre salvar um gorila ou uma espécie de carocha, optamos pelo gorila. Mas ainda assim, importa salientar que as nossas opções não revelam sempre um padrão tão linear e meramente apoiado na complexidade. Em relação aos invertebrados, tanto podemos sentir repulsa por aranhas, escorpiões e insectos rastejantes como empatia por borboletas e abelhas. E seres complexos como baleias, lobos e morcegos

Varner considera que não basta distinguir entre interesses satisfeitos ou insatisfeitos, uma vez que alguns são episódicos e outros persistentes, e existe uma variedade de formas e graus conducentes à sua satisfação. Nesta medida, e porque crítico da visão limitada dos utilitaristas, afirma a necessidade de considerarmos dois tipos de interesses: os que são relativos às crenças dos indivíduos e os que são fruto da realização de funções biológicas, independentemente do grau de consciência na sua realização.

Embora consciente de que o termo interesses possivelmente só faz sentido se aplicado aos indivíduos conscientes, aspecto aliás a que já fizemos referência (§ 2.), utiliza-o como sinónimo da satisfação de necessidades conducentes ao bem-estar e bem próprio de todos os seres vivos, desde o mais simples ao mais complexo. E esclarece que a frustração dos interesses dos seres vivos pode ser provocada pelo ser humano, mas surge igualmente no contexto ecossistémico: por exemplo, uma tempestade frustra os interesses de alguns seres e abre caminho para a satisfação dos interesses de outros anteriormente em desvantagem.

Varner distingue ainda as necessidades dos seres naturais das necessidades dos artefactos. Só os primeiros possuem funções biológicas que são fruto da selecção natural, algo que não se passa com os segundos. Se a distinção parece aparentemente irrelevante, ganha destaque perante o surgimento de um número cada vez maior de seres vivos que são fruto de cruzamentos induzidos pelo Homem. Varner considera que, na maior parte das situações, as suas funções biológicas não se alteram e que a identidade das espécies se mantém nos seus aspectos principais, o que permite assegurar-lhes também considerabilidade moral. Portanto, a separação entre animais domésticos e selvagens torna-se para este autor uma questão sem importância.

Varner (1998) assinala o conjunto de organismos que sentem desejos, uma parte dos interesses possíveis manifestados, embora assuma que nem tudo o que um ser deseja possa de facto ser do seu interesse, e nem tudo o que é do seu interesse é objecto de desejo. E começa por definir as condições associadas à sua posse. Se um determinado ser A deseja X é necessário que se verifiquem as seguintes condições:

foram dizimados durante décadas, embora a situação tenha vindo a alterar-se nos últimos anos. Por exemplo, o whalewatching substituiu a pesca da baleia em vários pontos do globo, como na Califórnia e nos Açores. Para esta mudança importa realçar o contributo do conhecimento científico que evidenciou que as baleias são animais inteligentes, com vidas sociais complexas e possuidoras de sistemas de comunicação altamente sofisticados.

1-Se A está disposto a perseguir X;

2-Tal pressupõe a existência de um raciocínio prático para esse objectivo (inferências, formação de hipóteses, testagem);

3-O que implica que o raciocínio prático é, pelo menos, potencialmente consciente.

Na verificação dos seres que se encontram nestas condições apoia-se em estudos provenientes do campo da biologia evolucionária e da etologia animal. A hierarquização de invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, em termos de sofisticação cognitiva e grau de consciência crescentes, não só corresponde à nossa concepção comum do mundo, como decorre de uma análise comportamental e neurofisiológica dos animais, pelo que a

defende em termos de regra geral.167 Deste modo, encontra-se assim justificada a base do seu

sistema de hierarquização, centrada na presença de raciocínio prático consciente, condição

sine qua non do desejo, e que dadas as condições referidas só se verifica com toda a certeza

nos mamíferos e provavelmente nas aves.

Decorrente desta hierarquia, Varner estabelece os princípios normativos seguintes, que admite poderem não resolver todos os casos-problema:

-a morte de um ser que possui desejos é mais gravosa do que a de um que não os possui; -a satisfação dos desejos dos seres humanos é mais importante do que a satisfação dos mesmos nos animais.

Para evitar que o segundo princípio dê origem a uma qualquer interpretação antropocêntrica mais ou menos radical em que tudo é permitido ao ser humano, afirma que os desejos de base ou categóricos, entendidos como projectos de vida que dão um verdadeiro significado à vida humana, têm prioridade sobre os não categóricos. Assim, o seu sistema hierárquico defende que:

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A sua precaução contra uma excessiva generalização é centrada em muitas das razões já discutidas, nomeadamente o facto de os resultados da investigação para determinados grupos taxonómicos se basearem num número reduzido de espécies. Por outro lado, ocorrem excepções a esta cadeia crescente de complexidade, como é o caso da cognição particularmente elevada dos cefalópodes no seio dos invertebrados, possivelmente explicada por fenómenos de evolução convergente das suas estruturas morfofisiológicas. O polvo, um dos cefalópodes mais inteligentes, manifesta a aprendizagem por observação mas, aparentemente, grande parte da informação providenciada pelo sistema nervoso periférico não fica disponível no sistema nervoso central, o que explica o seu desempenho inferior em relação a muitos vertebrados em determinadas situações-problema testadas em laboratório.

-os projectos estruturantes (ground projects) são geralmente mais importantes do que os desejos não categóricos, e os desejos são geralmente mais importantes do que os interesses biológicos simples.

Todavia, assinala ainda que nem todos os projectos estruturantes e significativos para uma vida são igualmente bons, uma vez que o seu impacto sobre os interesses dos outros seres vivos não é semelhante. Curiosamente, e utilizando critérios distintos, acaba por distinguir os mesmos grupos taxonómicos a que Singer e Regan fazem referência (mamíferos e aves) e partilha com estes autores a supremacia dada aos seres humanos, uma vez que possuem uma vida mais rica em significado. Igualmente significativa é a defesa de Varner de uma alimentação predominantemente vegetariana, manifestando no entanto uma posição menos restritiva quando comparada à de outros biocêntricos. A sugestão de que se devem evitar consumir animais, especialmente se eles pertencerem ao conjunto de seres que podem sentir desejos, abre caminho à possibilidade de inclusão dos peixes e invertebrados na alimentação.

Varner acaba por considerar a sua teorização antropocêntrica do ponto de vista axiológico, fruto do favorecimento de alguns dos interesses humanos em situações de conflito, mas não antropocêntrica no sentido valorativo porque envolve a atribuição de valor intrínseco à satisfação de cada interesse presente em todo o ser vivo, independentemente da espécie a que pertence.

A perspectiva hierárquica de Varner problematiza ainda outra dimensão que nos parece especialmente pertinente e que funciona em simultâneo como crítica ao sistema igualitário e atomista de Taylor: a da individualidade dos organismos que não possuem desejos. Enquanto nos vertebrados superiores a individualidade é atribuída tendo por base tanto as suas propriedades mentais como as suas propriedades físicas, nos seres inferiores ela esbate-se, uma vez que muitos se multiplicam vegetativamente, ou seja, não passam de clones biológicos. Embora Varner admita que qualquer parte de um organismo que se separa possa constituir um novo ser com os seus próprios interesses biológicos, prefere considerar que deste processo de clonagem resulta um indivíduo formado por várias partes. Mas se há

árvores e fungos que estão conectados uns aos outros no solo, no caso dos outros seres vivos a simples ausência de interconexão fragiliza a ideia defendida por este autor.

4.5. O biocentrismo centrado nas espécies

O biocentrismo centrado na necessidade de preservação das espécies baseia-se num tipo de argumentação que o aproxima do das teses ecocêntricas. Como afirma Rolston III (1994b), "um individualista insistente pode reclamar que os fenómenos ao nível da espécie (vitalidade numa população, perigo para a espécie, reprodução de uma forma de vida, prosseguimento num ambiente em mudança) são apenas epifenómenos, subprodutos dos agregados individuais nas suas inter-relações" (p. 147). Mas de facto, é difícil sustentar que as espécies não encerram em si mesmas um tipo de unidade e integridade diferente da dos indivíduos, e que todos os contributos para a sua viabilidade se traduzem em benefícios para

os membros que delas fazem parte ou vice-versa.168 Neste sentido, a sobrevivência das

diferentes espécies, condição indispensável à manutenção da biodiversidade terrestre, não decorre do bem-estar alcançado por cada um dos indivíduos que as constituem. Como salienta Lorenz (1993), por selecção natural, ornamentos relacionados com rituais de luta associados à competição intra-específica entre coespecíficos rivais podem conduzir a uma escalada de funções e formas que não é útil para a continuidade de uma determinada espécie. E a viabilidade de uma espécie, se parece mais facilmente assegurada com o florescimento da maior parte dos seus membros, depende quase sempre das características que se revelam mais vantajosas em alguns indivíduos e que lhes permitem enfrentar com sucesso os diferentes tipos de pressão ambiental. É por esta razão que mutações lesivas sob determinadas condições ambientais se podem tornar vantajosas quando essas circunstâncias se alteram, possibilitando assim a continuidade da espécie. As relações de predação que ocorrem entre indivíduos de espécies diferentes evidenciam também que nem tudo o que é benéfico para a espécie o é de forma idêntica para os indivíduos que as constituem. O ataque dos predadores direccionado para animais doentes, ou para outros igualmente menos adaptados, revela-se benéfico para as espécies de presas, porque permite a selecção dos indivíduos mais aptos e estimula a

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Para Gunn (1984) existem características que pertencem a uma espécie e que não podem ser atribuídas aos seus membros, como a afirmação de que uma espécie tem, por exemplo, 20 milhões de anos.

continuada adaptabilidade da espécie. Da mesma maneira, são os predadores mais eficientes que delegam descendência, pelo que o efeito global é o fortalecimento das espécies de predadores e de presas. Este é o princípio muitas vezes aplicado na gestão dos ecossistemas e que conduz à reintrodução de predadores quando estes se encontram em declínio para melhor se assegurar a viabilidade das espécies neles presentes e que, de outro modo, podem extinguir-se perante a maior vulnerabilidade dos indivíduos a doenças ou outras ameaças.

O combate a espécies em perigo de extinção obriga também frequentemente à remoção de animais do seu local de ocorrência tendo em vista a sua reprodução em cativeiro. Este facto leva Russow (1981) a concluir o seguinte:

Os deveres para com os seres individuais (ou os direitos destes indivíduos) não são sempre tidos em conta perante todas as acções a que as pessoas se sentem obrigadas para com as espécies em perigo. Por exemplo, procurar aumentar o maior número possível de indivíduos de uma dada espécie, protegê-los da predação natural, ou estabelecer colónias de procriação separadas. (pp. 497-498)

E perante a pertinência da argumentação até agora apresentada, consideramos desadequada a posição de alguns biocêntricos, como a de Regan, que apenas atribuem relevância à considerabilidade moral dos indivíduos.

O principal problema associado ao biocentrismo centrado nas espécies decorre das dificuldades de delimitação de uma espécie, embora este problema seja relativizado pelos biólogos e por alguns filósofos do ambiente. Gould (1992) afirma que é indiscutível que as novas espécies têm um período de ambiguidade inicial, mas as espécies emergem de forma relativamente rápida em comparação com o período da sua estabilidade posterior, e vivem longos períodos com uma mudança mínima. Daí que durante a maior parte do tempo da sua ocorrência as espécies sejam entidades objectivas. Para Gould são mesmo a única categoria na hierarquia de Lineu que oferece alguma objectividade. Todas as outras categorias - género, família, filo - são convenções humanas que decorrem da procura do estabelecimento de laços conducentes à raiz única que caracteriza o processo evolutivo. Também Rolston III (1985) concorda que não é fácil definir espécie com precisão, mas considera indiscutível a sua existência objectiva como processo vivo no ecossistema e em que vários critérios, como a descendência, o isolamento reprodutivo, morfologia, pool de genes, concorrem, pelo menos

em conjunto, para providenciar a sua existência. Assim, uma espécie é uma forma histórica viva propagada pelos organismos individuais e que flúi de modo dinâmico através de gerações, e não é a falta de agência moral, autoconsciência, senciência ou individualidade orgânica que condiciona a sua existência. E afirma: "Para roubar uma metáfora à física, a vida é, quer uma partícula (um indivíduo), quer uma onda (uma forma específica)" (Rolston, 1985, p. 212). E por isso, cada extinção é uma espécie de superkilling. Mata formas (espécies) e indivíduos, essência para além de existência, alma assim como corpo.

CAPÍTULO III