• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2 A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 ASPECTOS DA “TELEDEMOCRACIA” PROPOSTA POR PÉREZ LUÑO

2.1.2 A perspectiva forte e a democracia direta 248 (participativa)

A concepção de democracia direta é bem delimitada nas lições de Renato Stanziola Vieira249: “[...] democracia direta pode ser entendida como a ‘forma de governo na qual o direito de tomar decisões políticas descansa sobre todo o corpo de cidadãos, sem mediação de organizações políticas, tais como os partidos’”. Nesse modelo, o povo assume o exercício direto

245 Esse termo também é utilizado nesta obra: LUÑO, Antônio Enrique Pérez. ¿Ciberciudadaní@ o

ciudadaní@.com? Barcelona: Editorial Gedisa, 2012c.

246 GUZZI, Adriana de Araújo. Participação Pública, Comunicação e Inclusão Digital. 2006. 196f. Dissertação

de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e

Semiótica. São Paulo, 2006, p. 31. Disponível em:

<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3525>. Acesso em 15 jul. 2013.

247 Ademais, a possibilidade de utilização das novas tecnologias no âmbito da função jurisdicional influencia na

otimização do acesso à justiça, conforme se analisará no capítulo III na segunda parte do trabalho.

248 Da leitura do texto, observa-se que o doutrinador, por vezes, utiliza o termo “democracia direta” como sinônimo

de “democracia participativa”.

249 VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição constitucional brasileira e os limites de sua legitimidade

do poder, sem qualquer interferência de instituições criadas pelo Estado numa perspectiva ideal de democracia, o que ensejou a sua inviabilidade prática, consoante dispõe Noberto Bobbio250. Com base nas doutrinas de cientistas políticos e sociólogos, identifica-se a possibilidade de as novas tecnologias fortalecerem os pilares da atual concepção de democracia participativa251.

Infere-se, portanto, que a perspectiva forte da teledemocracia reside no fortalecimento da democracia (mormente, a participativa), com a criação de novos instrumentos tecnológicos que viabilizem a participação direta e mais intensa da população no espaço público e, por conseguinte, permitam a descentralização do exercício do poder político.

Em Antônio Enrique Pérez Luño252, um dos maiores benefícios advindos com a utilização das novas tecnologias advém da minoração das dificuldades práticas para o exercício da democracia direta, visto que se faz possível criar canais de comunicação direta e imediata entre o povo e o Estado, viabilizando o que ele nomina de “instant-referendum permanente”.

Essa novel perspectiva permite contestar a concepção tradicional do contrato social de Rousseau253 como elemento essencial pressuposto da legitimação do poder político. A

democracia representativa não era considerada totalmente adequada ao pleno exercício da soberania para esse doutrinador, o qual compreendia que esta compreendia a vontade geral do povo e não poderia ser exercida por meio de representação, mas apenas diretamente.

A possibilidade de acompanhamento direto e simultâneo das ações do Estado pelos cidadãos, sem sombra de dúvida, apresenta-se como elementos que favorecem a transparência da gestão pública e, por conseguinte, viabilizam a legitimidade do ordenamento jurídico que não mais se pressupõe na clássica concepção do contrato social, mas demanda a participação ativa.

250 BOBBIO, Noberto. Teoria geral da política – a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução: Daniela

Beccaccia Versiani. Revisão: Claudia Perrone-Moisés. 8ª tiragem. São Paulo: Editora Campus, 2000.

251“Se trata, en todo caso, de tesis que propugnan el tránsito from parliamentary democracy to participatory

democray; es decir, pretenden ofrecer una alternativa a la democracia parlamentaria, basada en la participación

indirecta de los ciudadanos a través de unos sistemas de mediación representativa articulados en forma de partidos políticos, por una democracia fundada en la participación directa e inmediata de los ciudadanos. Con ello se pretende el logro de las ventajas que reporta la participación real y efectiva de todos los ciudadanos en la toma de decisiones políticas. Asimismo, se aspira alcanzar una creciente descentralización o desconcentración del poder.” Tradução livre: Trata-se, em todo o caso, de teses que propõem a superação da democracia representativa para a democracia participativa; ou seja, pretendem oferecer uma alternativa à democracia representativa, baseada na participação indireta dos cidadãos através de sistemas de mediação representativa articulados na forma de partidos políticos, por uma democracia fundada na participação direta e imediata dos cidadãos. Com isso, pretende-se alcançar as vantagens decorrentes da participação real e efetiva dos cidadãos na tomada de decisões políticas. Além disso, objetiva-se alcançar uma crescente descentralização ou desconcentração do poder. LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. 1. ed. Madrid: Editorial Universitas, 2012a, p. 52.

252 Ibid., p. 53.

Este é o sentido do posicionamento de Antônio Enrique Pérez Luño254: “el consenso o contrato social deja entonces de ser un presupuesto ideal o un valor sobreentendido de legitimación del sistema político, para devenir una experiencia en acto, susceptible de comprobación empírica inmediata”.

Renato Stanziola Vieira255 apresenta um posicionamento peculiar ao considerar a falibilidade da concepção de autogoverno do povo (exercício direto, por todos, da soberania), bem como a fragilidade do organismo politicamente criado para expressar essa vontade. Com isso, evidencia-se que o problema em torno da democracia representativa se aproxima da análise da representatividade das decisões a partir do modo como as decisões são tomadas.

Ao permitir que a população tenha, gradativamente, maior participação no processo de tomada das decisões, ampliam-se os aspectos democráticos do sistema político. Embora se tenha ciência de que o aspecto procedimental, por si só, não é suficiente para garantir a legitimidade da representação popular, a sua análise é essencial, por ser um dos fatores para a realização da democracia. Em Gilberto Bercovici256, “[...] a legitimidade do produto da

representação popular estaria mais atrelada às regras do jogo político do que propriamente ao consenso popular que indicou quais seriam os representantes”.

No âmbito do Estado democrático constitucional, portanto, torna-se essencial assegurar a todos os cidadãos um conjunto mínimo de direitos e de mecanismos que viabilizem a sua participação livre e consciente na formação da vontade soberana (majoritária), consoante dispõe Ana Paula de Barcelos257. Os avanços tecnológicos, portanto, merecem ser considerados como um dos instrumentos capazes de colaborar com a democracia participativa e, por conseguinte, permitir o controle simultâneo das ações do Estado.

O próprio Antônio Enrique Pérez Luño258 ressalta que a gradativa transição da democracia representativa para a participativa apresenta dificuldades e riscos, os quais não se resumem aos aspectos relacionados ao uso de procedimentos informatizados.

254 Tradução livre: o consenso ou contrato social deixa então de ser um pressuposto ideal ou um valor subentendido

de legitimação do poder político, para permitir uma experiência em ato suscetível de comprovação empírica imediata. LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. 1. ed. Madrid: Editorial Universitas, 2012a, p. 53.

255 VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição constitucional brasileira e os limites de sua legitimidade

democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

256 BERCOVICI, Gilberto. O impasse da democracia representativa. In: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes;

MORAES, Filomeno (coord.). Direito constitucional contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2005, p. 294.

257 BARCELOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Editora

Renovar, 2005.

No ordenamento espanhol, não se identifica qualquer inconstitucionalidade da norma que restringe os instrumentos para o exercício e o alcance da democracia direta. A justificativa para tal restrição reside no fato de que, em relação a algumas matérias, a discussão merece ser realizada apenas pelos representantes do povo.

No modelo de Estado brasileiro – democrático constitucional –, contudo, o direito à participação do cidadão é elemento essencial, seja para assegurar a colaboração no processo de elaboração das decisões estatais, seja na possibilidade de questionar, em momento posterior, as decisões estatais. Conforme ressalva José Joaquim Gomes Canotilho259, o princípio democrático, presente no paradigma atual do Estado, ocasiona o reconhecimento da democracia participativa com a estruturação de procedimentos que viabilizem a efetiva participação dos cidadãos no processo de decisão.

Hermes Zaneti Junior260compreende que “[...] na democracia participativa ocorre uma espécie de democracia direta, menos intensa que o clássico de Rousseau, mas, mais próxima a realidade hodierna – com a sensível vantagem de recuperar o papel da sociedade civil organizada”. Se, por um lado, a democracia direta pode apresentar alguns obstáculos intransponíveis, conforme salienta Dimitri Dimoulis261, a vertente da democracia participativa

tem o condão de viabilizar a ampliação da participação popular no espaço público.

O próprio Antônio Enrique Pérez Luño262 questiona os fundamentos do Tribunal Constitucional espanhol para restringir o exercício da democracia direta, argumentando que “[...] el TC [Tribunal Constitucional] convierte en excepcional el ejercicio de un derecho que, en virtud de la conclusión lógica que debiera desprenderse de sus propias argumentaciones, tendría que ser considerado normal” 263.

No paradigma do Estado democrático constitucional, ambas as perspectivas de democracia (representativa e participativa) são essenciais para garantir a soberania popular, contudo, busca-se justificar a utilização de novos recursos tecnológicos para ampliar a discussão no espaço público.

259 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra, 2003. 260 ZANETI JUNIOR, Hermes. A Constitucionalização do processo: a virada do paradigma racional e político

no processo civil brasileiro do Estado Democrático Constitucional. 2005. 408f. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito. Porto

Alegre, 2005, p. 171. Disponível em <

http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/4525/000502097.pdf?sequence=1>. Acesso em abr. 2013.

261 DIMITRI, Dimoulis. Conflitos e complementariedade entre direitos humanos e democracia. Revista da

ESMEC. v. 15. nº. 21, 2008b.

262 LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. 1. ed. Madrid: Editorial

Universitas, 2012a, p. 55.

Noberto Bobbio264, do mesmo modo, ressalta a necessária harmonia entre as duas perspectivas da democracia (direta e representativa) como elemento essencial para viabilizar o fortalecimento das bases democráticas do Estado, o qual deve manter o equilíbrio entre elas. A questão que se torna essencial, hodiernamente, não é na opção pelo sistema de democracia participativa ou representativa, mas como é possível viabilizar a ampliação e o fortalecimento dos instrumentos democráticos na sociedade, com o único objetivo de aproximar cada vez mais o povo (titular do poder que fomenta a soberania) das questões políticas.

Hermes Zaneti Junior265 entende que o atual estágio da democracia abarca a “democratização das instâncias de poder”, nominada de “democracia social”, e que compreende o entrelaçamento entre direitos fundamentais e democracia, considerando os primeiros como elementos essenciais para o exercício desta última – acepção da tese da complementariedade questionada por Dimitri Dimoulis266.

Nesse diapasão, a teledemocracia apresenta-se como elemento essencial para viabilizar a democracia participativa (bem como a representativa), razão pela qual se identifica uma nova perspectiva de participação democrática compatível com os atuais avanços da sociedade. Ademais, a teledemocracia demonstra ser o elemento mais adequado para a criação de procedimentos para a restituição do poder antes direcionado ao poder político (pela democracia representativa) para o povo, mediante o seu exercício direto e efetivo (democracia participativa).

Em Antônio Enrique Pérez Luño267, esse novel fenômeno permite que seja transferido o protagonismo político dos partidos para o povo, haja vista que é recorrente a discussão sobre a crise de representatividade que o sistema de democracia indireta apresenta, ao limitar consideravelmente a participação política.

Esse doutrinador enumera, sob a perspectiva política, outros benefícios que compreende serem frutos da aplicação das novas tecnologias no âmbito da democracia. Inobstante ele apresente fundamentos para justificar cada um deles, infere-se que a questão

264 BOBBIO, Noberto. Democracia representativa e democracia direta. In: O futuro da democracia. 8. ed.

Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

265 ZANETI JUNIOR, Hermes. A Constitucionalização do processo: a virada do paradigma racional e político

no processo civil brasileiro do Estado Democrático Constitucional. 2005. 408f. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito. Porto

Alegre, 2005, p. 195. Disponível em <

http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/4525/000502097.pdf?sequence=1>. Acesso em abr. 2013.

266 DIMITRI, Dimoulis. Conflitos e complementariedade entre direitos humanos e democracia. Revista da

ESMEC. v. 15. nº. 21, 2008b.

267 LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. 1. ed. Madrid: Editorial

central versa sobre a gradativa ampliação da democracia participativa, mormente diante do controle simultâneo da opinião pública e das ações estatais.

Relevante destacar, contudo, a relação proposta entre a teledemocracia e a legitimidade da legislação positiva: “el principio democrático, que concibe la ley como expresión de la voluntad popular, ya no será un mero postulado ideal y contrafáctico, en la medida en que reflejará la participación real y efectiva de los ciudadanos en la aprobación de las leyes”268.

É necessário advertir que, embora disponíveis para utilização, a infinidade de recursos tecnológicos não é, por si só, suficiente para garantir a democratização do espaço público. A efetiva ampliação da participação democrática é problema presente há anos nas sociedades dos diversos Estados e não poderia, por razões lógicas, ser solucionada de maneira imediata, apenas com a possível utilização de recursos tecnológicos – mormente a internet.

Um dos riscos mais suscitados na doutrina reside na questão da segurança dos dados arquivados em ambientes virtuais, bem como na possibilidade de se estabelecer mais uma forma de distinção entre as classes sociais: (a) os que teriam acesso aos recursos tecnológicos; (b) os que estariam fora desse ambiente de discussão no âmbito virtual.

No Estado democrático constitucional, portanto, os instrumentos de participação popular devem ser os mais amplos possíveis e os poderes institucionalizados devem permitir que os seus procedimentos sejam acompanhados pelos cidadãos, como forma de viabilizar a democratização das decisões e, com isso, conferir legitimidade às ações estatais.

No momento em que os novos recursos tecnológicos oferecem alguma contribuição para tal ampliação, devem ser considerados como elementos essenciais para o fortalecimento da democracia. Esclareça-se: essa temática enseja ampla discussão que tangencia os objetivos deste trabalho, razão pela qual as conclusões aqui expostas são propostas iniciais para a compreensão do tema.

268 Tradução livre: O princípio democrático, que concebe a lei como expressão da vontade popular, já não será um

mero postulado ideal e fático, na medida em que refletirá a participação real e efetiva dos cidadãos na aprovação das leis. LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. 1. ed. Madrid: Editorial Universitas, 2012a, p. 64.