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CAPÍTULO III – CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO CIVIL

1 ANÁLISE DA TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL

1.2 O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE NA TEORIA DE BÜLOW

A teoria do processo como relação jurídica exposta por Oskar Bülow348 demonstrou- se imprestável à legitimação das decisões, porque não oferecia parâmetros suficientes para a análise do grau de legitimidade da atividade jurisdicional que poderia ser pautada, em última análise, em elementos emocionais e sentimentais, bem como por restringir a jurisdição ao ato do magistrado.

Assim, dois fatores são essenciais para a adequada compreensão da legitimidade decisória do Poder Judiciário: (a) ruptura com os ditames da razão prática, com a racionalidade instrumental weberiana e com a filosofia da consciência (do sujeito); (b) filiação à razão comunicativa, com base na filosofia da linguagem, em defesa de institucionalização do discurso no âmbito processual349.

A teoria de Oskar von Bülow350 faz-se presente na atualidade com a escola da

instrumentalidade do processo e compreende, conforme já salientado, o processo como relação pública orientada pela figura do julgador, postura favorável ao problema filosófico- paradigmático da fundamentação das decisões a partir da filosofia da consciência.

Exemplo disso é observado no acórdão proferido pelo Ministro Humberto Gomes de Barros do Superior Tribunal de Justiça, na análise da constitucionalidade da norma jurídica expressa nos parágrafos 1º-A e §1º do artigo 577 do Código de Processo Civil351.

A restrição do ato de julgar ao exercício da vontade do intérprete (sua consciência) enseja ampla discussão na doutrina, mormente quando se problematiza a legitimidade das decisões do Poder Judiciário, conforme já pontuado em momentos anteriores. Essa problemática tem relevância a partir da análise do giro ontológico-linguístico vivenciado na filosofia do século XX, o qual transfere o conhecimento para a linguagem, afastando o sujeito como fundamento do conhecimento – no círculo hermenêutico-ontológico.

348 BÜLOW, Oskar von. Gesetz und Richtertamt. In: Berliner Wissenschafs-Verlag. GmbH, 2003, v. 10. 349 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade

de Ciências Humanas/FUMEC, 2008.

350 Ibid.

351“[...] Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça,

assumo a responsabilidade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste tribunal importa como orientação. A ele, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme a minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. [...].” STJ. Agravo Regimental em Embargos de Divergência em Recurso Especial nº. 279.889-AL. Sem grifos no original.

A postura defendida no acórdão prejudica sobremaneira a justificação da legitimidade das decisões judiciais proferidas pelo Poder Judiciário, órgão que, conforme já ressaltado, é alvo de intenso estudo sobre o seu déficit de legitimidade.

Os paradigmas da subjetividade (filosofia da consciência) apresentam-se de modo distintos, por vezes encobertos pelo manto do protagonismo judicial. Uma primeira concepção compreende o ato de julgar como ato de vontade, tendo a norma de decisão como resultado de uma interpretação inadequada, eventualmente fundamentada em métodos incompatíveis entre si. A segunda acepção da subjetividade compreende a busca de justificações no plano da racionalidade argumentativa, recaindo sobre os aspectos discricionários da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy352.

A postura de incentivar o protagonismo judicial e a discricionariedade, pautados em valores não jurídicos, compreende a repristinação equivocada da teoria da jurisprudência dos valores, uma vez que busca ampliar os poderes do julgador com fundamento da necessidade de concretizar os direitos fundamentais, maculando a possibilidade de controle da legitimidade das normas de decisão produzidas sob esse enfoque.

Com efeito, no contexto em que foi desenvolvida (Alemanha, século XX), essa teoria tinha a finalidade de conferir mecanismos de abertura à legalidade fechada existente à época, a qual fundamentava atos totalitários nazistas. A busca, portanto, de elementos fora da lei era imprescindível para buscar legitimar a lei fundamental recém-promulgada (Grundgesetz).

Ocorre que as especificidades do ordenamento jurídico brasileiro, com recente tradição da jurisdição constitucional, a aplicação da teoria da jurisprudência dos valores (e a consequente majoração da intervenção dos órgãos jurisdicionais na realização dos direitos), não apresentaram os mesmos efeitos vivenciados no ordenamento jurídico alemão.

O brasileiro, durante anos, se deparou com a dificuldade no estabelecimento de elementos para a fortificação da democracia353, mediante os pilares da legalidade e legitimidade à luz do texto constitucional. Esse problema apresenta-se com maior evidência nos projetos dos códigos processuais, mormente o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, que, dentre seus pilares fundamentais, apresenta dispositivos para a flexibilidade da técnica processual e para a facilitação do protagonismo judicial.

352 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução: Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Mandamentos, 2001.

353 VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição constitucional brasileira e os limites de sua legitimidade

A vicissitude dessa norma, sob parâmetros democráticos, apresenta-se diante do deslocamento da concretização dos direitos fundamentais das demais funções estruturantes do Estado (e da sociedade) para o Judiciário, majorando o espaço para o protagonismo judicial, numa concepção contestável de que esse órgão, sozinho, teria a possibilidade de solucionar o problema da efetivação dos direitos fundamentais. Acontece que, diante da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais – proposta por Robert Alexy354 –, todas as funções estruturantes do

Estado (legislativa, executiva e jurisdicional) devem agir em prol da sua concretização. Com isso, torna-se imprescindível superar, doutrinariamente, a teoria da relação jurídica de Oskar von Bülow355, em prol da identificação de elementos e conceitos teóricos que justifiquem a legitimidade da atuação do Poder Judiciário no âmbito do Estado democrático constitucional. Diante da delimitação dessa problemática, qualquer estudo sobre processo e jurisdição merece ter como paradigma inicial a necessidade de superação dos pilares da teoria de Oskar von Bülow356, ainda presentes na escola instrumentalista do processo.

354 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2011.

355 BÜLOW, Oskar von. Gesetz und Richtertamt. In: Berliner Wissenschafs-Verlag. GmbH, 2003, v. 10. 356 Ibid.