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3 OS/AS PROFESSORES/AS DE HISTÓRIA E O PROJETO ESCOLA CIDADÃ

3.1 OS QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS

3.2.1 A pertinência, o potencial e os limites da proposta pedagógica Escola Cidadã da

Ao reunir e analisar as falas e as escritas dos/as colegas que corroboram ou não a ideia de uma pertinência/relevância, o potencial e os limites do projeto Escola Cidadã, percebemos que as mesmas, de alguma maneira, simbolizam aquilo que apresentamos no capítulo 2 desta dissertação como sendo os 3 grandes objetivos do projeto: a democratização do acesso dos estudantes às escolas; a democratização do conhecimento; a democratização da gestão (GANDIN, 2008, p. 227). Todos/as os/as participantes do encontro tiveram acesso e, na medida do possível, fizeram a leitura de trechos da série de publicações da SMED Cadernos Pedagógicos, números 9, 11, 12 e 21, e do Caderno de Visão de Área e Princípios das

Ciências Sócio-Históricas e Culturais, que apresentam a Proposta Político-Pedagógica da RME de Porto Alegre/RS, bem como da introdução dos Referenciais Curriculares da Rede Municipal de Ensino, cuja publicação ocorreu no ano de 2012.

Como vimos no capítulo 2, um dos eixos temáticos do projeto Escola Cidadã é o da democratização do acesso dos estudantes às escolas, o qual, segundo Gandin (2008, p. 228- 229), possibilitou à RME/POA uma nova organização, não somente no que diz respeito ao acesso inicial à escola, mas também garantiu um espaço educacional para as crianças e adolescentes provenientes de meios sociais ditos subalternos, nos quais as mesmas pudessem ser tratadas com dignidade e respeito e educadas para o exercício da cidadania. Pensando nesse aspecto, o professor Sabiá destacou que as leituras provocadas no encontro permitiram reforçar a ideia de que existem princípios no EC e que os mesmos devem ser lembrados e respeitados, o que atesta a relevância do projeto. Um desses princípios tem a ver com o fato de se levar em conta a realidade onde está inserida a escola. O mesmo colega citou o exemplo da EJA (Educação de Jovens e Adultos) na sua escola, onde os/as professores/as precisam conhecer a realidade do bairro e dos/as estudantes, administrar conflitos violentos que acontecem dentro naquele local e que dividem os/as alunos/as em grupos. Daí a importância de se conhecer a comunidade onde se localiza a escola.

Nessa mesma linha, o professor Sabiá acrescentou o seu entendimento de que o que permanece como princípio relevante do EC é a capacidade de diálogo constante e de manutenção inegociável dos direitos à vida, à pluralidade, ao reconhecimento e respeito ao outro na sua plenitude. E que essa é uma perspectiva quase ideal do que significa ser professor/a de História na RME de Porto Alegre, possível graças às perspectivas lançadas pela efetivação do modelo de Escola Cidadã. Segundo ele, nas práticas e embates cotidianos os/as docentes vão reafirmando e reconstruindo o modelo, seguindo em movimento, afirmando os princípios do Escola Cidadã e, ao mesmo tempo, atualizando práticas na sala de aula. Complementando essa fala, a colega Iraúna comentou sobre a necessidade de a escola voltar- se aos interesses das classes populares, e que isso seria um elemento fundamental para a potencialização do Escola Cidadã.

Já a colega Granatina levantou uma questão que, de certa maneira, limitou/limita um pouco a atuação do projeto Escola Cidadã, e que tem a ver com as condições de formação e de articulação dos professores para melhorar as práticas inclusivas, que esbarram na falta de recursos escolares, configurando-se como entraves significativos na educação pública. Por conta disso, segundo a mesma, os Ciclos de Formação transformaram-se, na escola regular, nos últimos anos, em escola seriada com progressão automática ou quase automática,

observando-se, segundo ela, nos conselhos de classe, a ausência de critérios para a avaliação do trabalho, recaindo sobre o/a aluno/a e suas faltas (ausências em aula) a responsabilidade de eventual insucesso escolar. Esse limite do EC já tinha sido apontado nas respostas ao questionário, e se configura como um elemento que põem em xeque a credibilidade da progressão continuada dentro do sistema de Ciclos de Formação, essencial para a democratização do acesso e da permanência do/a estudante na escola pública municipal. Por outro lado, a colega traz a questão da falta de recursos escolares, o que será melhor analisado abaixo quando adentrarmos nos avanços neoliberais. Ainda sobre os Ciclos de Formação, outro professor, Quero-Quero, manifestou-se, afirmando que no projeto Escola Cidadã os mesmos fracassaram como proposta pedagógica, tendo em vista, segundo esse colega, que os ciclos não se enraizaram nas escolas e que só persistiram devido a uma combinação de forte poder persuasivo dos gestores/assessores combinado a condições bastante favoráveis de trabalho, salário e carreira para os/as professores/as da RME/POA. É importante destacar que essa manifestação vem de um professor que está há 23 anos na Rede, desde 1996, portanto, e que inclusive atuou na área de assessoria pedagógica da própria SMED ainda dentro do período da AP. Essa manifestação do colega reitera um limite do projeto EC e vai ao encontro de um dos problemas em potencial constatado por Graziella dos Santos (2012, p. 34-35) que, baseada na análise da pedagoga, professora aposentada da RME/POA e ex-coordenadora pedagógica da SMED, Maria Beatriz Paupério Titton, comenta que a postura da SMED foi, muitas vezes, considerada autoritária pelos/as professores/as no que se refere à adesão ou imposição dos Ciclos de Formação.

Essa postura da SMED, ainda dentro do período da AP em Porto Alegre (1989-2004), apareceu refletida também na escrita desse mesmo colega Quero-Quero, quando ele teceu reflexões acerca da democratização do conhecimento, segundo eixo temático do Escola Cidadã e da nossa análise. Quero-Quero argumentou que a concepção hegemônica, vanguardista e, em alguns momentos, autoritária na gestão do EC minou, nas escolas municipais, a vitalidade de experiências de concepção de organização do currículo, de formas de organização dos tempos, de espaços, de planejamento, de avaliação, etc., que poderiam compor, na visão dele, uma política mais plural e que respeitasse a diversidade das escolas, dos coletivos e das próprias comunidades.

Não obstante considerasse legítimos os princípios do Escola Cidadã, o docente Quero- Quero, em consonância com o que foi dito por outros colegas, afirmou que a proposta do EC foi outorgada e imposta em várias escolas municipais, sendo que, por consequência, sua conversão em política pública não necessariamente obedeceu a um processo de democracia

efetiva, evidenciando, uma concepção de estruturalismo e diretivismo pedagógico. Além disso, ele afirmou que o EC se exauriu antes mesmo do final das gestões da AP em Porto Alegre, devido a equívocos, limites e contradições na atuação dos/as gestores/as e até mesmo pela resistência e pelas concepções distintas existentes na RME/POA. Hoje, na visão desse professor, praticamente nada restou desse período do EC, a não ser a memória do vivido, os registros publicados – como os trechos dos materiais disponibilizados para leitura durante o encontro - e nichos muito pequenos de educadores em algumas escolas que ainda tem essa referência do projeto Escola Cidadã. Quero-Quero chegou a afirmar que o projeto EC não se constitui mais como referência para a imensa e esmagadora maioria dos/as educadores da RME/POA, seja pelo seu esgotamento e pela dificuldade para se reinventar, seja pelo desmonte das gestões que se sucederam a AP na Prefeitura de Porto Alegre,seja, ainda, pela hegemonia das políticas educacionais conservadoras, privatizantes, seletivas e pautadas por avaliações padronizadas e estandardizadas.

Por outro lado, esse mesmo colega reconheceu de que o EC evidenciou grande avanço em termos de estrutura e organização curricular, forma de organização do ensino, processo de avaliação e estrutura de apoio, além de qualificada formação continuada de professores. Nessa mesma linha, o colega Colibri comentou ter tido a oportunidade, durante o primeiro encontro, de confirmar uma impressão que já tinha quando trabalhou com seus colegas na escola de que, enquanto ideal, acredita que o Caderno Pedagógico n.º 9 ainda seja muito relevante, e que seja muito oportuno se se quer fazer uma educação transformadora na sociedade, partindo da realidade social em que os estudantes estão para construir o conhecimento, e pensando que esse conhecimento seja importante para agir historicamente e transformar a realidade. Portanto, enquanto ideal, utópico, o colega Colibri ainda acredita na pertinência do projeto EC, pelo menos em seus ideais mais abrangentes.

Ratificando o que já havia comentado sobre a democratização do acesso, o docente Sabiá falou acerca da importância da relação com as comunidades escolares, no ensino fundamental e/ou na EJA, e no contexto dos vínculos com colegas de diferentes áreas de conhecimento, defendendo a ideia de que ser professor/a de História significa estabelecer diálogo permanente com as circunstâncias e permanências das nossas realidades, não somente as escolares. E disse que, formalmente, seria preciso reconhecer as possibilidades que uma escola mais vinculada com a comunidade, que a envolve, abre na direção da promoção da diversidade, da pluralidade e da necessidade constante de estudo, reposicionamento, análise e crítica. São essas possibilidades que orientariam, segundo ele, inclusive, a revisão diária de

objetivos, metas, conteúdos, competências e habilidades para a construção coletiva do conhecimento.

No que se refere à democratização da gestão – o terceiro eixo temático do EC –foram externadas, durante o primeiro encontro do grupo de discussões, duas falas que em princípio parecem distintas, mas que ao final demonstram ter pontos em comum. Uma dessas falas deu- se por parte da colega Biguá, que, ao analisar os princípios definidos no projeto EC (objeto de leitura do grupo de discussões durante o encontro a partir de trechos dos documentos), afirmou que temos de estar sempre lembrando da questão da gestão democrática, garantida em lei, porque a SMED atualmente tenta impor a ideia de que as direções das escolas é que têm que se posicionar sozinhas sobre os mais diversos assuntos, sem o aval e a concordância dos Conselhos Escolares. Isso revela uma ideia de pertinência do EC no tocante à gestão democrática na RME/POA, mas que sofre com as ameaças representadas pelo gerencialismo e pela modernização conservadora a partir das administrações que estiveram a frente do Paço Municipal desde o ano de 2005, quando houve o aumento do trabalho docente e da verticalização da gestão, marcada pela colocação do diretor como figura central da escola (AGUIAR; SANTOS, 2018, p. 79-80).

Já a professora Curió considera que o projeto Escola Cidadã, nas condições em que se encontra na RME/POA atualmente, deixou de ser um espaço sensível às demandas e aos anseios da comunidade escolar, e percebe, por outro lado, que a democracia se expressa hoje apenas formalmente nas escolas, não havendo, de fato, um envolvimento da comunidade, o que, em última análise parece configurar-se como um limite do EC, fato apontado como um dos problemas em potencial por Apple e Gandin (2017, p.204). Esse problema, percebido após a saída da AP do poder em Porto Alegre, envolvia os Conselhos Escolares na RME/POA. Segundo os autores, às vezes não havia pais/mães/responsáveis e estudantes em número suficiente participando das deliberações nas escolas municipais. E, mesmo onde se constatava essa participação, o que se via era a simples ratificação de decisões tomadas pela administração escolar (equipe diretiva) e/ou a aprovação de relatórios financeiros, o que enfraquecia a gestão democrática e, por conseguinte, o próprio EC. Exemplos semelhantes foram mencionados por diversos professores ao longo dos encontros.