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2 O PROJETO ESCOLA CIDADÃ EM MOVIMENTO

2.1 A ADMINISTRAÇÃO POPULAR E AS ORIGENS DO PROJETO ESCOLA

2.1.5 Problemas em potencial no projeto

Todavia, os autores e as autoras acima já apontavam alguns problemas em potencial no Escola Cidadã e que levaram a mudanças do projeto mesmo dentro do período da AP em Porto Alegre, ou seja, antes ainda do ano de 2005. Um primeiro problema em potencial, segundo Gandin (2008, p. 237-238), refere-se ao fato de os professores serem, muitas vezes, rotulados como conservadores. Esse autor critica alguns administradores da SMED que tentavam justificar possíveis dificuldades na implementação da Escola Cidadã a partir da caracterização de alguns professores como conservadores, ou seja, tratando qualquer resistência dos professores ao Escola Cidadã como sendo uma resposta conservadora. Segundo ele, uma agência estatal que acabava por ser insensível, como apontado nesse caso, deixava apenas essa alternativa como opção aos sujeitos mais resistentes ao projeto. Além do mais, segundo Gandin, não se pode esquecer que eram os professores os responsáveis por implementar o projeto e que, em não sendo os mesmos respeitados, muito pode ter sido perdido no Escola Cidadã. Gandin aponta como um segundo problema a questão do papel do senso comum na visão dos diretores e assessores da SMED, tendo em vista que, baseados em

uma das tradições do marxismo, os mesmos usavam a noção de falsa consciência para caracterizar o senso comum. Logo, esses diretores e assessores, conforme Gandin (2008, p. 238-239), ignoravam outras vertentes do pensamento marxista, além de contradizerem toda a ênfase da Escola Cidadã:

As contribuições de Gramsci, Hall e Apple enfatizam a necessidade de se enxergar o senso comum como conhecimento prático e de entender o bom senso contido nele. Entretanto, as afirmações dos membros da SMED parecem colocá-los em desacordo com essas contribuições. Existe uma contradição notória entre usar a noção de falsa consciência para caracterizar o senso comum e, ao mesmo tempo, insistir que se deve partir dele e conectar-se com ele para construir o conhecimento na escola.

Escrevendo em parceria com Apple, Gandin (2017, p. 195-199) aponta, ainda, outros quatro problemas em potencial. O primeiro deles tem a ver com o risco de os Ciclos, por meio das Turmas de Progressão, criarem hierarquias no sistema, produzindo “turmas de segunda classe” nas escolas. O segundo é o de reduzir a opressão à questão da classe social, pois a Escola Cidadã fazia poucas referências às opressões raciais e de gênero/sexualidade, por exemplo, em que pese os autores reconheçam que os canais democráticos do projeto Escola Cidadã abriram a possibilidade de esses temas de opressão (raça, gênero/sexualidade) surgirem nas discussões dos Complexos Temáticos nas escolas11. O terceiro problema apontado refere-se ao risco de os participantes que tiveram historicamente mais poder dominarem os Conselhos Escolares e outros mecanismos de participação popular (por exemplo o OP). Porém, para Gandin e Apple, não parece ser os caso das escolas municipais de Porto Alegre, por causa da sua localização nas periferias da cidade. Além disso, os autores afirmam que ainda não existem estudos comprovando a existência desse problema. E como quarto problema em potencial, os autores apontam a sustentabilidade do engajamento ativo dos cidadãos, em razão da sobrecarga ao acumular papéis deliberativos e atividades de trabalho no seu cotidiano, por exemplo.

Moreira (2017, p.71) também aponta alguns problemas no projeto Escola Cidadã. Ela afirma que, no decorrer da ampliação da proposta para todas as escolas municipais de Porto Alegre, uma mudança tão significativa no cenário educacional da cidade recebeu críticas e teve resistências na sua implementação, como por exemplo a progressão continuada dos estudantes prevista pelo sistema de Ciclos de Formação, e que gerou muitos debates, críticas e

11 Mais adiante, no capítulo 4, aparecerá a discussão sobre tais questões de opressão a partir das respostas aos questionários dadas pelos/as professores/as de História da RME/POA, quando serão analisados os temas sensíveis nas aulas dessa disciplina.

angústias em muitos docentes, que entendiam que a reprovação escolar era necessária em algumas situações, em que pese a estrutura dos Ciclos ser avaliada positivamente pelos educadores de um modo geral. Sobre esse aspecto, Santos (2012, p. 37-38) afirma que a preocupação dos professores era legítima. Segundo ela, se a progressão continuada fosse tomada de modo pouco rigoroso ou como sinônimo de progressão automática, realmente esse tipo de progressão acabaria reforçando, mais cedo ou mais tarde, a já marcante exclusão social desses grupos que as escolas públicas municipais em geral atendem. Todavia, Santos faz questão de destacar que, em tese, essa não era a proposta do Escola Cidadã, nem dos Ciclos de Formação. Ao mesmo tempo, o Escola Cidadã tinha a preocupação de eliminar a reprovação escolar e, por consequência, de diminuir evasão de estudantes. Nesse sentido, isso não significava que os processos avaliativos fossem suprimidos e que os/as discentes ficassem isentos de suas responsabilidades ou, ainda, que os educadores exigissem menos esforços de seus educandos.

Outro problema em potencial detectado no Escola Cidadã, ainda dentro do período da AP a frente da Prefeitura de Porto Alegre, tem a ver com a imposição dos Ciclos de Formação às escolas da RME. Baseada na análise da pedagoga, professora aposentada da RME/POA e ex-coordenadora pedagógica da SMED/POA, Maria Beatriz Paupério Titton, Santos comenta que a postura da SMED foi, muitas vezes, considerada autoritária pelos/as professores/as, principalmente durante a gestão 1997/2000 da AP, tendo em vista de que houve uma forte indução no sentido de que todas as escolas aderissem à proposta Escola Cidadã e, assim, passassem a se organizar por meio dos Ciclos de Formação, sendo que, por adesão ou imposição, no ano de 2000 todas as escolas já se encontravam “cicladas” na RME/POA. Santos destaca, que num primeiro momento do projeto Escola Cidadã, havia a afirmação por parte da SMED de que os ciclos não seriam impostos às escolas, tendo em conta de que os princípios e diretrizes elaborados no Congresso Constituinte de 1995 abarcavam a organização por séries e etapas (2012, p. 34-35). Não bastasse isso, e embora todas as escolas municipais de Porto Alegre tenham sido cicladas até o final dos anos 1990 e ao longo do ano de 2000, uma parte relevante dessas escolas não adotou a construção curricular por complexo temático, segundo as escolas pela dificuldade de entender o processo e pela insuficiência de suporte pedagógico da própria SMED, o que levou a uma flexibilização da construção curricular e, em última instância, a uma perda de força do projeto Escola Cidadã (MOREIRA, 2017, p. 71).

Ainda em se tratando de dificuldades para o Escola Cidadã, Santos (2012, p. 76-77), mais uma vez buscando subsídios em Titton, aponta que a Secretaria Municipal de Educação

foi comandada por três secretários diferentes ao longo do último governo da AP em Porto Alegre: Eliezer Moreira Pacheco (01/01/2001 a 31/12/2002), Sofia Cavedon (01/01/2003 a 02/04/2004) e Maria de Fátima Baierle (02/04/2004 à 31/12/2004). De acordo com Santos, tais mudanças de gestores ocorreram devido a rupturas políticas no PT naquele momento, o que sinaliza que a SMED enfrentava disputas internas, as quais trouxeram certa instabilidade e insegurança à RME. Na fase inicial (2001-2002) desse último governo da AP, os princípios da autonomia pedagógica e do protagonismo docente ganharam destaque no discurso e nas ações da SMED, sendo que, em consequência, as escolas passaram a ter mais liberdade para construir suas propostas. Contudo, essa autonomia conquistada e que possibilitava às escolas organizar o currículo de diversas formas para além do Complexo Temático, gerou certo desconforto e desconfiança na Rede como um todo, considerando-se o fato de que o referido processo fora acompanhado de uma progressiva diminuição das intervenções da SMED, o que fez com que as escolas se sentissem solitárias diante dos novos desafios. Essa nova situação também provocou a percepção de que as escolas podiam fazer “o que quisessem”, pois não havia uma unidade em termos de proposta. Além da questão curricular, outros aspectos fundamentais do Escola Cidadã começaram a ser flexibilizados, no último governo da AP, como o da possibilidade de reprovação escolar (SANTOS, 2012, p.77):

Deste modo, se por um lado havia agora maior autonomia e liberdade para as escolas, por outro, observava-se um esvaziamento gradativo nas formações e debates. Assim, neste período começa a se desenhar uma política curricular marcada pela ausência de intervenções por parte da SMED. Isso ocasionou um enfraquecimento progressivo no campo do currículo em diversas escolas, que precisavam buscar sozinhas novos subsídios para as suas construções. Assim, ao final da gestão, a RME já dava sinais que uma nova discussão sobre o currículo e uma avaliação da proposta como um todo era necessária. Foi em meio a este contexto, que a gestão da professora Marilú iniciou o seu trabalho na SMED.

Tais problemas intensificaram-se depois do fim da gestão da Administração Popular, ou seja, a partir do ano de 2005, já com a professora Marilú de Medeiros a frente da SMED, e se agravaram em anos mais recentes chegando aos dias de hoje. A esses problemas em potencial foram somadas outras formas de encaminhamento – ou mesmo de não encaminhamento - pelos novos governos pós-AP.