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A petição inicial como fato jurídico processual

3 ESTABELECENDO ALGUNS CONCEITOS: AÇÃO E CONDIÇÃO DA

3.3 A ENUNCIAÇÃO DA AÇÃO-NORMA CONCRETA E INDIVIDUAL

3.3.1 A petição inicial como fato jurídico processual

Não há dúvidas de que a petição inicial – quando devidamente protocolada – é documento jurídico instaurador da ação-norma concreta e individual. Ocorre que o

jurídico no direito se perfaz por meio de fatos relatados em linguagem competente,

os fatos jurídicos. Tem-se aqui a relevância da distinção entre evento, fato e fato jurídico.

Evento é o acontecimento no mundo do ser, desprovido de linguagem. É uma ocorrência fenomênica, de ordem natural que não se reveste de linguagem. O fato é o relato do evento, trata-se de linguagem operando sobre a situação empírica. Nas palavras de Ferraz Jr.: “‘Fato’ não é, pois, algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”167.

Os acontecimentos no mundo do ser se esvaem no espaço e no tempo, restando- nos falar sobre eles, afinal é somente com a linguagem que o homem pode constituir uma realidade como objeto de seu conhecimento. “A compreensão de qualquer acontecimento requer articulação linguística, em recorte no contínuo heterogêneo do mundo circundante perceptível, capaz de identificar certa situação como objeto”168. Em outras palavras, não relatamos absolutamente tudo o que vemos, sentimos, experimentamos, mas somente aquilo que de certa forma nos convém. Assim, a linguagem que relata o acontecimento faz um recorte no mundo social: o fato realiza um recorte no evento.

Fato jurídico, por sua vez, é o relato do evento em linguagem competente, é a descrição de um evento ocorrido por quem o sistema do direito positivo credencia. Isso porque o direito positivo não se satisfaz com a linguagem ordinária utilizada em

167 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.

6ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2008; p. 244.

168 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-

nossas comunicações cotidianas: exige uma forma especial.169 É tanto que o fato político, econômico, psicológico, histórico, enquanto não traduzidos em linguagem jurídica, situam-se fora da abrangência do sistema do direito positivo.

Destarte, a distinção entre evento e fato é a (in)existência de linguagem, e entre fato e fato jurídico é o sujeito emissor da linguagem. Por isso, diz-se que os fatos sociais, enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como eventos em relação ao mundo do direito170, não sendo capazes de nele produzir qualquer efeito. Qualquer situação fenomênica, ainda que se subsuma a uma hipótese normativa, só ingressará no mundo do direito se adquirir a forma jurídica própria: a linguagem competente, tornando-se fato jurídico capaz de propagar direitos e deveres correlatos. O relato por agente competente, então, não só noticia a ocorrência de um evento prescrito em uma hipótese normativa, mas o insere no mundo do direito, revestindo-o de jurisdicidade e possibilitando a produção de efeitos.

Cabe lembrar que fato jurídico é expressão que padece da ambiguidade inerente aos signos. Assim, a doutrina, a jurisprudência e a própria legislação ora se referem a fato jurídico como (i) a descrição hipotética de fatos prescritos no direito positivo; ora como (ii) o acontecimento a que se refere a hipótese; ou também como (iii) o relato em linguagem competente de tal ocorrência; dentre diversos outros sentidos que não nos são relevantes aqui.

Seguindo a proposta de delimitar com clareza o nosso objeto de estudos, o primeiro conceito designaremos de hipótese de incidência, que nada mais é do que o antecedente de normas abstratas. Para indicar o segundo, utilizaremos o termo

evento. Dessa forma, fato jurídico corresponde à terceira acepção, podendo ainda

ser dividido em fato jurídico stricto sensu e fato jurídico lato sensu171. Ambos seriam o relato em linguagem competente de um evento. Todavia, em sentido estrito, esse relato se refere a uma ocorrência passada que se enquadra nos moldes da hipótese de incidência normativa, ocupando a posição sintática de uma norma concreta. Já o

169 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2012; p. 146.

170 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008; p. 33. 171 Cf. TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008; p. 71.

fato jurídico, em sentido amplo, seria qualquer relato em linguagem competente sem a capacidade de instituir direitos e deveres correlatos por si só: para tanto, deve estar conjugado a outros. Aqui, interessa-nos o fato jurídico em sentido estrito.

Nesse viés, como a hipótese de incidência refere-se a ocorrências futuras possíveis e o fato jurídico volta-se para o passado, pode-se aferir de forma cronológica que primeiro teremos o enunciado da hipótese, depois a ocorrência do evento e, então, a constituição do fato jurídico. É assim que se dá o já mencionado processo de positivação normativa: “exatamente, nessa redução à unidade: de classes com notas que se aplicariam a infinitos indivíduos, nos critérios da hipótese [...], chegamos a classe com notas que correspondem a um e somente um elemento.”172

Considerações feitas, definir a petição inicial como o relato, pelo autor, detentor de linguagem competente, de uma suposta lesão ou ameaça a direito material significa compreendê-la como fato jurídico processual. Isso porque se trata de um relato de um evento ocorrido no passado cuja previsão consta no direito positivo, feito por agente credenciado pelo sistema, qual seja, o autor. Ademais, enseja uma relação jurídica processual, entre o autor e o Estado-juiz: o processo, com direitos e deveres correlatos. Além de instaurar o processo, reiteramos que o protocolo da petição inicial inaugura a ação-norma concreta e individual, que consiste em um dos polos do processo, especificamente o direito de agir do sujeito ativo em face do órgão julgador. Esquematizando, com a petição inicial teremos a seguinte norma secundária concreta e individual:

¬ ( S’ R S” ) à ( S’ R’ S”’ )

172 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2012; p. 192.

Fato jurídico processual: petição inicial Direito de agir (ação-norma concreta e individual) Relação jurídica processual: processo Dever de jurisdição

Na petição inicial, deparamo-nos com dois tipos de enunciados: (i) enunciados- enunciados que: (i.i) relatam um fato ilícito, cuja ocorrência requer uma resposta judicial; (i.ii) requerem um pedido cuja apreciação requer uma resposta judicial; (ii) o veículo introdutor da ação-norma concreta e individual, isto é, a enunciação- enunciada, que remete ao tempo, local, forma e emissor de sua produção (norma concreta e geral). A petição inicial como fato jurídico processual restringe-se à subespécie i.i de enunciados, pois é ali que opera como o antecedente da norma secundária concreta e individual instauradora do processo judicial.

Como fato jurídico que é, faz um recorte jurídico sobre o mundo social, estando delimitado semanticamente pela hipótese normativa, que no caso da norma processual, prevê o descumprimento de uma norma primária (fato ilícito). Esse recorte acaba por reduzir as complexidades do mundo fenomênico, de modo que só ingressará no direito positivo aquilo que o autor entender devido, jamais representando o evento em sua totalidade, podendo, inclusive, não corresponder à realidade social, embora a ela se refira, uma vez que o direito cria a sua própria realidade.

Para ingressar no sistema do direito positivo, a petição inicial além de ser produzida em linguagem competente (autor, por meio do seu representante legal), deve seguir alguns procedimentos e formalidades próprias173, como a indicação do juízo a que é dirigida, os nomes completos e qualificações das partes, os fatos ocorridos, os pedidos, as provas pretendidas, dentre outros (art. 319 do CPC174). Por fim, deve ser devidamente protocolada (art. 312 do CPC). Essas são regulamentações feitas por normas de produção normativa, que consistem em verdadeiros limites sintáticos para o surgimento de um fato jurídico processual.

173 É o caso do pagamento das custas que, se não for efetuado em 15 (quinze) dias da intimação da

parte pelo seu advogado, implicará em cancelamento da distribuição, isto é, sequer haverá a formação de relação jurídica processual.

174 Art. 319 do CPC/15: “A petição inicial indicará: I - o juízo a que é dirigida; II - os nomes, os

prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV - o pedido com as suas especificações; V - o valor da causa; VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII - a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação. […]”

Afora a petição inicial, podemos dizer que a defesa-norma concreta e individual, isto é, a defesa apresentada pelo réu diante de sua citação, também é um fato jurídico processual. Isso porque o réu é competente para exercer o seu direito de contestar, relatando novos fatos ou negando as alegações do autor, em linguagem jurídica. Com o exercício da defesa abstratamente garantida pelo sistema, ele dá ensejo à defesa-norma concreta e individual, inaugurando uma nova relação jurídica processual, entre ele e o Estado-juiz.

Os fatos jurídicos processuais, então, são antecedentes de normas secundárias, viabilizando as relações jurídicas processuais. Ao final do processo, com a decisão judicial, será constituído um novo fato jurídico, desta vez material (civil, penal, tributário, etc.), correspondente à norma jurídica primária concreta (geral ou individual) introduzida pelo órgão julgador (linguagem competente) no sistema.