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2 O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO, A NORMA JURÍDICA E NOÇÕES

2.6 NORMAS PRIMÁRIAS E NORMAS SECUNDÁRIAS

Até então, tivemos a visão lógico-estrutural da norma jurídica como entidade singular. Vale recordar, porém, que a norma jurídica é elemento de um todo unitário, e, como já verificado, não devemos considerar a árvore sem a floresta.83 Assim, uma norma jurídica está sempre relacionada a outras normas, integrando o sistema do direito positivo.

Na sua completude, as normas jurídicas têm feição dúplice: (i) normas primárias; (ii) normas secundárias 84 . Apesar da mesma estrutura sintática, divergem semanticamente. A norma primária prevê a ocorrência de um fato, que, traduzido em linguagem competente ao mundo do direito, implica em uma consequência prescrita por modais deônticos. A norma secundária, ainda que possua uma hipótese vinculada deonticamente a uma consequência, prescreve uma providência sancionatória (coercitiva) pelo Estado-juiz85 em caso de descumprimento do dever

contido no consequente da norma primária.86 Assim:

Na primeira [norma primária], realizada a hipótese fáctica, [...] sobrevém [...] a relação jurídica com sujeitos em posições ativa e passiva, com pretensões e deveres [...]. Na segunda [norma secundária], a hipótese fáctica, o pressuposto é o não-cumprimento, a inobservância do dever de prestar, positivo ou negativo, que funciona como fato jurídico (ilícito, antijurídico) fundante de outra pretensão, a de exigir coativamente perante órgão estatal a efetivação do dever constituído na norma primária.87

83 Utiliza-se dessa metáfora ao criticar a análise isolada da norma jurídica sem considerar o

ordenamento: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 9ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997; p. 20.

84 Carlos Cossio (La teoria egológica del derecho. 2ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964) e

Norberto Bobbio (Teoria da Norma Jurídica. São Paulo: EDIPRO, 2001) também trabalham com esta diferenciação, mas utilizam-se de outras terminologias. Aquele prefere referir-se a endonorma (equivalente à norma primária) e perinorma (equivalente à norma secundária). Já Bobbio indica-as como sendo de primeiro e de segundo grau.

85 No presente trabalho, a expressão Estado-juiz será utilizada como gênero que engloba qualquer

órgão julgador do Poder Judiciário.

86 Nas primeiras concepções da feição dúplice normativa, Hans Kelsen utilizou denominação contrária

à adotada neste trabalho. Para o autor, as normas primárias seriam as que estipulavam sanções em decorrência de possível ilicitude, enquanto as secundárias prescreveriam condutas cujo descumprimento estava descrito no antecedente da primária. Contudo, na sua obra póstuma, Teoria

Geral das Normas, tal qualificação foi revista, invertendo-se as denominações. Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986; p. 67.

87 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

Há ilicitude diante da discordância entre o prescrito no consequente da norma primária e o ocorrido no social. Com isso, viola-se a norma primária, isto é, ocorre ato ilícito, ensejando-se a possibilidade de participação do Estado-juiz, por meio da penalização ao infrator ou fazendo-o cumprir, coercitivamente, o que outrora deveria ter cumprido.

O descumprimento da norma primária, assim, permite o surgimento de uma norma de atuação do Poder Judiciário – a norma secundária. Essa norma (N2) descreve em seu antecedente o descumprimento da relação jurídica da norma primária (N1) e em seu consequente uma nova relação jurídica, em que o Estado-juiz é uma das partes. A atuação do Poder Judiciário gerará um processo em que, ao final, será expedida uma nova norma primária para solucionar a lide (N3).

Destaque feito por Vilanova é que as denominações primária e secundária das normas não devem indicar relação de cronologia ou causalidade física, mas de antecedente lógico para consequente lógico88, ainda que no mundo do ser os fatos

verifiquem ou não o disposto na hipótese da norma primária, para depois incluírem- se ou não na norma secundária. Ocorre que o relacionamento entre proposições normativas está restrito ao mundo do dever ser, no qual prevalece tão somente a ordem lógico-formal (causalidade jurídica).

O importante, diante dessa duplicidade normativa, é ter em vista que uma norma é jurídica porque se sujeita a sanção pelo Estado-juiz, característica que a diferencia dos demais sistemas prescritivos como a moral e a religião.

2.6.1 Sanção: termo plurissignificativo

Ao afirmar que uma norma só é jurídica porque possibilita, em sua composição completa, a sanção, deve-se ter cautela, uma vez que sanção é uma palavra que, como muitas vistas, carrega em si o problema da ambiguidade.

Sanção costuma implicar a ideia de penalidade diante do descumprimento de um

dever jurídico, isto é, diante de um ilícito. A sanção-penalidade, então, pode ensejar

88 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 4ª ed. São Paulo:

(i) multas; (ii) pena privativa de liberdade; (iii) pena restritiva de direitos; (iv) restrições na propriedade, etc.

Todavia, sanção também é usada como uma vantagem, quando o sujeito cumpre o que a lei determina ou deixa de fazer o que a lei proíbe, auferindo, por isso, uma vantagem – tem-se a sanção-premial.

Outrossim, mencionar a sanção em âmbito da norma secundária refere-se à sanção como uma atuação do Estado-juiz, de ordem processual. Isso porque, em nosso ordenamento, o poder de coerção está nas mãos Estado-juiz, não sendo legítimo o uso da própria força pelos sujeitos-de-direito afetados pela ilicitude. Eis a sanção-

coerção.

Justamente por essa imprecisão semântica de sanção é que se pode ter uma norma primária que impute uma penalidade, mas que careça de eficácia coercitiva: restringe-se à esfera do direito material, não emanando relações processuais (é o caso de sanções administrativas ou contratuais não levadas ao Judiciário). Por isso, não é norma secundária. No ponto, explica com clareza Eurico Santi:

Têm-se, portanto, normas primárias estabelecedoras de relações jurídicas de direito material decorrentes de (i) ato ou fato lícito, e (ii) de ato ou fato ilícito. A que tem pressuposto antijurídico denominamos norma primária sancionadora, pois veicula uma sanção – no sentido de obrigação advinda do não-cumprimento de um dever jurídico – enquanto que a outra, por não apresentar aspecto sancionatório, convencionamos chamar norma primária dispositiva.89

Reconhecendo a plurissignificação do termo sanção, o autor aponta, em seguida, três significados possíveis: (i) a relação jurídica consistente na conduta substitutiva reparadora, decorrente do descumprimento de um pressuposto obrigacional; (ii) a relação jurídica que habilita o sujeito ativo a exercitar o seu direito subjetivo de ação (processual) para exigir perante o Estado-juiz a efetivação do dever constituído na norma primária; (iii) a relação jurídica, consequente processual desse direito de ação preceituada na sentença condenatória, decorrente do processo judicial.90

89 SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1999; p. 43-

44.

A sanção, na primeira acepção, (i) está no consequente da norma primária denominada por Santi de sancionadora, que nem sempre deve estar associada a uma norma primária dispositiva: pode haver norma (primária) que não se associa a uma sanção-penalidade (norma primária sancionadora), ainda que haja a possibilidade da atuação estatal (norma secundária). É o caso das normas que atribuem faculdade legislativa a determinadas autoridades: não há sanção material caso não exerçam tal faculdade, ainda que possa haver um comando de índole processual, como uma sentença procedente em mandado de injunção, que declare a omissão legislativa e a necessidade de regulamentação legal.

No segundo significado (ii), sanção é a relação prescrita no consequente da norma secundária, prevendo um vínculo de ordem processual, mediante o qual se busca a atuação do Judiciário para assegurar um direito – é a sanção-coerção como dever de tutela jurisdicional do Estado. Nesse significado, toda norma tem uma sanção.

Na última acepção (iii), a sanção é o resultado do processo judicial, é a positivação do consequente de uma norma de direito material solucionadora da lide. Se a hipótese dessa norma fruto do processo de positivação for ilícita, teremos uma norma primária (sancionadora para Santi), de direito material. Por outro lado, se o pressuposto normativo for lícito, não se trata de sanção, motivo pelo qual preferimos afastar este terceiro significado.

2.6.2 A estrutura da norma completa

Vimos que a norma jurídica apresenta a estrutura simbólica D (HàC). A norma secundária, então, por conter em seu antecedente o descumprimento do consequente da norma primária, pode ser representada por D (¬CàC’), em que sua hipótese (H’) corresponde a ¬C (negação de C) e C’ a uma nova relação jurídica, agora processual. Unindo-se as duas normas a fim de formar uma norma completa, tem-se: D [(HàC) v (¬CàC’)], significando: Se H então deve ser C ou se não C,

então deve ser C’.

D {[ H à ( S’R S” )] v [ ¬ ( S’RS” ) à ( S’R’S”’ ) ]}

Explica-se, a seguir:

D: functor deôntico neutro, com a função de envolver as duas proposições

prescritivas (dever-ser);

à: conectivo implicacional, que traz o nexo de imputação jurídica entre a

hipótese e a consequência de cada norma;

H: hipótese da norma jurídica primária;

S’RS”: consequente da norma jurídica primária, em que se estatui (as notas

de) uma relação jurídica (R) entre dois sujeitos (S’ e S”) sob os modais proibido (V), permitido (P) e obrigado (O);

v: conectivo “ou” em sua função includente, indicando que ambas normas são

válidas no sistema91;

¬(S’RS”): antecedente da norma secundária que descreve um fato ilícito, qual

seja, o descumprimento da relação jurídica primária. Nega-se (¬) o consequente da norma primária (S’RS”);

S’R’S”’: consequente da norma secundária, em que se prescreve uma

relação jurídica processual (R’) entre um dos sujeitos da norma primária (S’ ou S”) e o Estado-juiz (S”’), para o exercício da atividade jurisdicional.