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A RELAÇÃO JURÍDICA MATERIAL E A RELAÇÃO JURÍDICA

2 O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO, A NORMA JURÍDICA E NOÇÕES

2.9 A RELAÇÃO JURÍDICA MATERIAL E A RELAÇÃO JURÍDICA

conceitos, como o de processo, direito subjetivo e dever jurídico emanam. Pontes de Miranda, embora priorize o conceito de fato jurídico, corrobora a relevância da relação jurídica:

A noção fundamental do direito é a de fato jurídico; depois, a de relação jurídica; não a de direito subjetivo, que é já noção do plano dos efeitos; nem a de sujeito de direito, que é apenas termo da relação jurídica. Só há direitos subjetivos porque há sujeitos de direito; e só há sujeitos de direito porque há relações jurídicas.110

Na mesma linha, Giuseppe Chiovenda assume “o conceito de relação jurídica é fundamental no estudo do processo.”111

Após o estudo da norma jurídica em sua composição completa, pode-se constatar que a norma primária regula as condutas intersubjetivas, buscando estabelecer direitos e deveres contrapostos. Por isso, a relação jurídica referida no consequente da norma primária é de caráter material. Em contrapartida, a relação jurídica prescrita no consequente de uma norma secundária é de índole processual, pois regula a dinâmica da concretização do direito material, estabelecendo direitos e deveres das partes em relação ao Estado-juiz e vice-versa.

Destarte, aquele que tem (ou que acredita ter) a pretensão (de direito material) procura o Estado-Juiz, para o exercício do direito de prestação jurisdicional, a fim de que o pretenso direito subjetivo material seja em juízo discutido. Forma-se, então,

109 IVO, Gabriel. Norma jurídica: Produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006; p. 62.

110MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I, 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2000; p.

20.

111CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, vol. I. Trad. J. Guimarães

uma relação jurídica diferente daquela de direito material, representada por uma norma jurídica também distinta.

É inegável a interdependência e complementariedade entre ambas as normas, de modo que a norma primária sem a secundária queda-se desjuridicizada, ao passo que a secundária sem a primária é meio sem uma finalidade, um mero instrumento.

A norma secundária, ao prescrever o processo judicial em seu consequente, é responsável por iniciar a atividade de produção normativa, isto é, o Estado-juiz, provocado, tem o dever de exercer a jurisdição, em contraposição ao exercício do direito de ação pelo sujeito ativo, proferindo, ao final, uma decisão (norma jurídica primária). É neste contexto que Tárek Moussallem traz como uma das definições de “atuação judicial” a atividade exercitada pelo órgão jurisdicional, chamada pelo autor de positivação-enunciação112, que visa primordialmente a criação normativa.

Por conseguinte, a norma secundária proporciona a positivação normativa por meio da enunciação, ou seja, a produção de uma nova norma pela autoridade competente (julgador). Essa nova norma como produto do processo judicial pode ser: geral ou individual, mas sempre concreta. Isso porque os consequentes podem ter sujeitos determinados ou indeterminados, mas sempre o antecedente descreverá um fato ocorrido, aquele que foi trazido aos autos do processo.

O descumprimento da norma jurídica primária não implica tão somente em uma relação jurídica processual entre sujeito ativo da relação material (S’) e Estado-juiz (S”’), mas também em uma outra relação jurídica entre sujeito passivo da relação material (S”) e Estado-juiz (S”’). Dessa forma, leciona o doutrinador pernambucano:

A uma relação jurídica material R, entre A e B, sucede outra relação jurídica formal (processual) entre A e C (órgão C que concentrou o emprego da coação) e entre C e B. Figuradamente, se a relação material era horizontal,

112 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2006; p. 73.

Além desta acepção, o autor destaca outros quatro sentidos que a expressão “atuação judicial” pode ter, quais sejam: (i) direito subjetivo de ação; (ii) fatos enunciativos da positivação (enunciação- enunciada); (iii) produto do procedimento lançada pelo Poder Judiciário (positivação enunciado- enunciado); (iv) a coação (execução forçada), nos casos em que o produto do procedimento for uma norma concreta e individual de conduta.

unilinear, a relação formal fez-se angular: não se desenvolve linearmente de A para B, pois conflui em C. Perfaz-se outra relação R’.113

A relação jurídica processual pode caracterizar-se por ser (i) o exercício do direito de ação por S’ contraposto ao dever de jurisdição do Estado-juiz (S”’) e (ii) o exercício do direito de defesa por S” contraposto ao dever de citação do Estado-juiz (S”’). O termo comum dessas relações lineares é o órgão jurisdicional, pois cabe a ele o exercício da coerção estatal, circunstância que perfaz a angularidade da relação jurídico-processual referida por Vilanova.

A angularidade supra, porém, não é necessária, pois existem situações em que não há a contraparte processual, como nos casos em que não há contencioso114, quando o réu opte por não se defender115, ou quando o processo judicial é extinto antes da citação do réu.

Ademais, a angularidade não deve significar prevalência do Estado-juiz em relação a S’ e S”, pois em uma relação jurídica não há superioridade de um sujeito em relação a outro (direitos e deveres são recíprocos, considerando que cada relação jurídica possui uma relação conversa de mesma intensidade). A representação apenas quer indicar que o processo pode envolver mais de uma relação, mas sempre com um termo em comum: o órgão julgador.

Ao falar de relação jurídica processual, não se pode deixar de lado o fato de que não há univocidade de sentido acerca do símbolo processo na Ciência do Direito. Apenas para ficarmos com estas, destacamos pelo menos cinco acepções para o termo processo: (i) processo como meio por meio do qual se realiza algo; (ii)

113 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2000; p. 189.

114 Mesmo assim, o juiz exerce a jurisdição, homologando um acordo, por exemplo.

115 O direito subjetivo processual de defesa não é obrigatório. Por isso, afirmam se tratar de ônus, e

não de dever jurídico – o réu tem o direito ou não de se defender, mas uma vez exercitado esse direito, há um dever a ele contraposto titularizado pelo Estado-juiz. Neste sentido: VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; p. 191.

S”’

processo como um conjunto de atos; (iii) processo como documento normativo (autos); (iv) processo como atividade de produção normativa (enunciação); (v) processo como relação jurídica angular (ou linear, caso não haja citação ou manifestação do réu que angularize dita relação), vocacionada à produção de normas (decisões judiciais).116

Aqui, o processo será trabalhado no último sentido, ou seja, como a relação jurídica entre o autor e Estado-juiz e entre o réu e o Estado-juiz prescrita no consequente da norma secundária (basta a primeira relação jurídica para haver processo, a segunda é prescindível). Nele, diferente do que ocorre nas relações jurídicas materiais, um dos termos será sempre o órgão judicial, não havendo relação direta entre S’ e S” (partes do processo). Dito de outro modo, o processo é uma série ordenada de relações (que podem ir além da que prescreve o direito de ação e o direito de contestação117); todavia, em âmbito da norma secundária, S’ não terá direitos e deveres em relação a S” ou vice-versa. É por isso que a relação jurídica processual não deve ser representada como triangular, mas como angular a partir da citação (antes disso é meramente linear).

Dessa forma, a petição inicial dirige-se ao Estado-juiz e não ao réu, do mesmo modo que a contestação, como bem explica Pontes de Miranda:

Tanto o réu não é sujeito da relação processual entre autor e ele, que a petição se dirige ao juiz, não como intermediário entre ele e o réu, e sim como órgão do Estado, com poderes para aplicar o direito que incidiu no caso e resolver as questões. Em nenhum ponto da petição o autor invoca a outra parte, ou lhe expõe fatos ou pontos de direito. Trata-o com o Estado; e com o Estado é que a outra parte tratará, desde a citação; que o autor requer e é ordenada pelo Estado.118

Aproveitando o ensejo da noção normativa dúplice, observa-se que a relação jurídica material é veiculada no bojo da ação, sendo preexistente à relação jurídica processual, que se forma a partir da instauração da ação. A relação processual não

116 Em um estudo semântico mais detido sobre o vocábulo processo, Paulo Cesar Conrado identificou

dez significados distintos atribuídos ao termo (Processo tributário. 3ª ed. atual. São Paulo: Quartier Latin, 2012; p. 19 e 20).

117 O processo é uma relação jurídica complexa, pois pode originar mais de uma relação jurídica, seja

a referente ao direito de prestação à tutela jurisdicional (entre o autor e o órgão jurisdicional), seja ao direito de defesa (entre o réu e o órgão jurisdicional), dentre outras como o direito à apresentação de provas, ao arrolamento de testemunhas, à assistência judiciária gratuita, etc.

118 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. 2ª ed. Rio de Janeiro:

é desligada da relação material; pelo contrário, elas são interdependentes: esta não tem razão de ser se não houver a possibilidade de sanção-coerção pelo Estado-juiz; aquela só se justifica diante de uma alegação de violação ou ameaça de violação a direito material.

O exercício do direito de ação é ato facultativo, e resolver exercitá-lo significa permitir a incidência de norma jurídica, a norma jurídica secundária. Na relação originada pela norma secundária, caso o Estado-juiz conclua que a relação jurídica material foi negada, ou melhor, que foi descumprido o consequente da norma jurídica primária, ele tem o poder-dever de impor sanção-coerção sobre o réu.

A afirmação do descumprimento do consequente da norma primária na inicial é que dá ensejo ao surgimento da norma secundária, pois dita afirmação consiste no próprio antecedente da norma secundária. Outrossim, a verificação in concreto pelo magistrado acerca da alegação de uma violação ou ameaça de direito material pelo autor e da procedência do pedido é que levará ao provimento da ação, por meio da sentença, que consiste em uma norma jurídica lato sensu reguladora das relações substantivas entre o autor e o réu e que, por não envolver mais o Estado-juiz coercitivo em um dos polos (aqui, ele atua como mero agente competente que insere o enunciado no sistema), trata-se de norma primária (sempre concreta).