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A Plasticidade, a Prática Musical e o Cérebro

No documento A dislexia na aprendizagem da música (páginas 85-88)

II 2 Revisão da Literatura

2.1.3.4. A Plasticidade, a Prática Musical e o Cérebro

Com base nos estudos de G. Schlaug (2003), existem diferenças entre o cérebro de indivíduos com e sem treino musical, que se manifestam ao nível da largura do corpo caloso (a região que une os hemisférios direito e esquerdo), da simetria e tamanho do córtex motor em ambos os hemisférios, do tamanho do cerebelo e diferenças ao nível do volume de algumas regiões da substância cinzenta (Hallam, 2006, p.18) (ver Anexo 1 e 1A).

O córtex auditivo do hemisfério direito (ver anexo 1A) tem sido associado ao processamento da altura dos sons (“pitch”), enquanto a informação rítmica (e pulsação) tem estado associada ao córtex cerebral do hemisfério esquerdo (Zatorre et al., 1992, Peretz, 2003; entre outros, citados por Hallam, 2006, p.13).

O processamento rítmico (que envolve métrica e pulsação) é o mais complexo porque a sua perceção e produção requerem informação acerca da intensidade do som (partes acentuadas e não acentuadas) e da sua periodicidade [métrica] (Hallam, 2006, p.14).

A análise de padrões de alturas (“pitch”), tais como as melodias, envolve uma grande distribuição de processos pelo lobo superior temporal e frontal (Hallam, 2006, p.13) (ver anexo 1).

Relativamente ao processamento tímbrico, e com base em estudos que recorreram a instrumentos naturais e a sons sintetizados, observa-se que este ocorre no hemisfério direito (Samson, 2003, citado por Hallam, 2006, p.15), existindo, possivelmente, a contribuição do lobo temporal esquerdo.

Tocar um instrumento musical requer a aprendizagem de muitos processos ao nível motor, o que incita a reorganização plástica do cérebro humano, incluindo o fortalecimento de ligações já existentes e o estabelecimento de novas (Hallam, 2006, p.18). O desenvolvimento de competências motoras, necessárias à prática de um instrumento musical, leva a alterações ao nível do córtex motor. As mudanças de plasticidade que ocorrem nesta região começam por acontecer num plano de curto prazo, transformando-se em alterações de longo prazo

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quando a competência é alvo de uma maior aprendizagem e automatização (Pascuel-Leone, 2003, citado por Hallam, 2006, p.21).

Na realidade, o cérebro dos músicos tem sido usado como modelo de neuroplasticidade (Habib & Besson, 2009; Zatorre & McGill, 2005; citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010), cujo desenvolvimento está directamente associado à quantidade de treino realizado, não sendo reflexo de uma condição inata [genética]. Existem diferenças ao nível estrutural que podem ser observadas entre músicos e não-músicos, nomeadamente no volume de massa cinzenta em áreas importantes para a prática instrumental, em particular nas regiões motora, auditiva e visuoespacial (Gaser & Schlaug, 2003, citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010).

Os substratos do cérebro responsáveis pela perceção auditiva conseguem adaptar-se rapidamente aos estímulos musicais, inclusivamente as estruturas auditivas responsáveis pelo processamento de longo prazo, que permanecem moldáveis e sujeitas a mudanças ao nível de plasticidade (Pantev et al., 1999, citado por Hallam, 2006, p.18). Uma vez que a aprendizagem de um instrumento constitui um estímulo ao desenvolvimento cortical auditivo, a sua influência é tanto maior quanto mais cedo se iniciar essa aprendizagem na infância pois, neste período, o córtex auditivo tem períodos de maior sensibilidade para a auto-organização (“self-organization”), ou seja, plasticidade. Porém, a aprendizagem continua a ocorrer em idades mais avançadas, implicando, no entanto, um maior esforço (Hallam, 2006, p.17).

Neste sentido, o professor necessita de se focar nos conteúdos e nas capacidades que pretende que o seu aluno adquira. Dispondo de tempo suficiente para a aprendizagem, o cérebro irá desenvolver as redes neurológicas adequadas para reter o conhecimento e as competências aprendidas (Hallam, 2006, p.26).

Embora as estruturas cerebrais se adaptem rapidamente a novas experiências musicais (de curto prazo), estas serão esquecidas se não forem regularmente revisitadas. As alterações neurológicas, que se pretendem sólidas e sustentadas, requerem prática continuada ao longo do tempo, e não a prática isolada de longas horas, sendo a primeira aquela que melhor conjetura a transformação neurológica (Hallam, 2006, p.26).

Para Nina Kraus e Bharath Chandrasekaran (2010), as capacidades de precisão auditiva evidenciadas pelos músicos, e que são adquiridas ao longo dos anos, estendem-se a outros

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domínios, tais como discurso e língua (idioma), e ao nível do processamento emocional e auditivo (Hanon & Trainor, 2007, citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010).

A música e a linguagem, apesar de serem apreendidos de uma forma distinta, partilham vários componentes ao nível auditivo e cognitivo. Em termos acústicos, tanto a música como o discurso utilizam detalhes associados ao timbre, duração (“timing”) e altura (“pitch”) para transmitir uma determinada informação. Por exemplo, durante o processamento da linguagem, a altura (“pitch”) desempenha funções “extra-linguísticas” (ajuda, por exemplo, a determinar a identidade, o estado emocional e/ou a intenção do interlocutor), cumprindo, também, uma função linguística (por exemplo, em várias línguas, a mudança de altura de uma sílaba altera o significado da palavra em causa) (Kraus & Chandrasekaran, 2010).

Neste sentido, vários estudos realizados revelaram que os músicos desenvolvem plasticidade cerebral não só para os estímulos musicais, mas também para estímulos ao nível da linguagem (Musacchia et al., 2007, citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010). Quando comparados com não-músicos, os músicos revelaram uma representação superior ao nível do tronco cerebral (Musacchia et al., 2007; Strait et al., 2009; citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010), bem como uma melhor compreensão (“encoding”) dos “contornos” linguísticos do discurso (“linguistic pitch contours”) (Wong et al., 2007, citados por Kraus & Chandrasekaran, 2010).

Assim, Bharath Chandrasekaran e Nina Kraus (2010) sugerem que a prática musical pode ser benéfica nos indivíduos com dislexia, desenvolvendo competências de literacia através do reforço da perceção e compreensão das características específicas do som (altura, duração e timbre), bem como do uso de competências cognitivas associadas à memória de trabalho, à atenção, à integração multissensorial (por exemplo, seguir e executar uma partitura musical), e à capacidade para agrupar ou separar elementos acústicos (percecionados) numa linha de compreensão (“stream-segregation”) (Chandrasekaran & Kraus, 2010).

Paralelamente, Flaugnacco et al. (2014, citados por Silva, 2015) confirmaram que as capacidades de leitura podem estar associadas à perceção métrica e ao processamento rítmico. Estas duas medidas de processamento temporal envolvem mecanismos temporais – a atenção auditiva e a memória –, competências que se desenrolam com algumas limitações nas crianças disléxicas. Desta forma, sugere-se uma aprendizagem musical com intensificação no

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desenvolvimento do ritmo com a intenção de incitar competências de leitura (Huss, Verney, Fosker, Mead, & Goswami, 2011, citados por Silva, 2015 ).

Aniruddh D. Patel (2011), segundo a hipótese “OPERA” (“the OPERA hypothesis”), preconiza que a prática musical permite o desenvolvimento da plasticidade das redes neurológicas da linguagem devido a cinco condições essenciais: 1) sobreposição (“Overlap”), assumindo a existência de uma sobreposição ao nível da rede e das ligações cerebrais onde ocorrem fenómenos acústicos fundamentais ao discurso e à música; 2) precisão (“Precision”), admitindo que a prática musical coloca maior exigência no sistema nervoso ao nível da precisão, relativamente ao exercício da linguagem; 3) emoção (“Emotion”), pois as atividades musicais evocam emoções positivas e sentimentos de gratificação; 4) repetição (“Repetition”), considerando que o exercício musical implica, frequentemente, repetição, incitando a plasticidade cerebral ao nível do córtex autivo, motor e somatossensorial (ver Anexo 1A); e 5) atenção (“Attention”), pois a prática musical exige uma maior atenção às características e configurações do som (“amplitude envelope”)11.

É importante referir que os critérios associados à emoção, repetição e atenção podem ser falsiados. Se imaginarmos uma criança que tem aulas regulares de música mas que não gosta daquilo que lhe é ensinado, que não pratica “em casa”, ou que não presta atenção às aulas, então, o reforço da sistematização (encoding) da linguagem não irá acontecer (Patel, 2011). Todavia, se as cinco premissas fundamentais desta hipótese forem observadas, a plasticidade cerebral irá permitir que as redes de neurónios em causa tenham um desempenho mais eficiente que aquele que é necessário para o exercício do discurso. Portanto, uma vez que o discurso partilha estas redes neurológicas com a música, o processamento da linguagem irá beneficiar (Patel, 2011).

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