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Capítulo 2 A Política Racial no Brasil: da eugenia a políticas de promoção da

3.4 A Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PNPIR

Na tradição brasileira de combate ao racismo limitou-se às medidas legais de proibição da discriminação racial direta. Isto é, o conjunto de atitudes que tem por objetivo distinguir, impedir, excluir, prejudicar ou privilegiar um indivíduo ou um grupo de indivíduos por conta da sua raça/cor. O enfretamento da discriminação racial direta orientou tanto a atuação do Movimento Negro quanto o modo de reação do Estado, via aprovação de leis que definiam a prática da discriminação racial como contravenção (Lei Afonso Arinos) e, posteriormente, como crime (Art. 5 da CF88; Lei nº 7.716/89, a Lei Caó; Lei nº 9.459/97, a Lei Paim). A ação do Estado limitava-se a estabelecer uma legislação criminal punitiva (JACCOUD; BEGHIN, 2002), cuja ineficiência é sobejamente conhecida. Poucos são os casos de êxito por parte da vítima de discriminação racial.131

Conforme as bases dessa tradição, pouca atenção foi dispensada à discriminação indireta. Esta, por sua vez, é definida como prática discriminatória que “não se manifesta explicitamente por atos discriminatórios, mas sim por meio de formas veladas de comportamento cujo resultado provoca a exclusão de caráter racial” (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 55). A discriminação indireta se esconde em práticas sociais, administrativas, empresariais ou de políticas públicas, enfim mecanismos societais ocultos da maioria. A discriminação indireta revela-se por meio dos indicadores socioeconômicos invariavelmente desvantajosos para um ou mais grupos racialmente ou etnicamente definidos em uma determinada sociedade frente à média desses indicadores, o que a literatura especializada denomina de racismo institucional (Id. Ibid.).

Desde a década de 1950, no Brasil, o Movimento Negro reivindicam uma ação positiva do Estado no sentido de estabelecer medidas públicas para corrigir desigualdades sociais entre negros e brancos, decorrentes de tratamento desigual proporcionado pelo racismo.132 No entanto, essa proposição ganhou força nos anos de 1980 com o retorno do país à normalidade democrática, como visto no capítulo anterior, em algumas experiências estaduais. Nos anos de 1990, após a Marcha Zumbi contra o Racismo e pela Vida e com a instalação do GTI, mas, sobretudo, após a 3ª CMR, em 2001, o Estado brasileiro foi instado a elaborar políticas públicas para beneficiar populações não-brancas.

A criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 21 de março de 2003, indicava que finalmente a questão racial teria um tratamento mais

131 Cf. Sales Jr. (2006); Silva Jr. (2001).

incisivo. Embora a criação de uma agência federal na administração direta para o desenvolvimento de políticas e ações de promoção da igualdade racial fosse uma proposição do Programa Brasil sem Racismo (PBR) e um dos compromissos eleitorais da Coligação Lula Presidente, a constituição da SEPPIR foi um processo envolto em um clima de tensão e negociação. Como revelou um ativista negro que participou da equipe de transição do governo:

No período de transição, houve um racha dentro do governo quanto à criação de um ministério com essas características. Parte do núcleo duro do governo resistiu e era contrário a isso. Houve um processo de negociação enorme. Tanto é verdade que o ministério não é criado no dia 1º de janeiro, não toma posse no dia 1º, só toma posse no dia 21 de março, dia internacional pela eliminação da discriminação racial. E depois de uma intensa negociação, na qual o ministério da promoção da igualdade racial, primeiro teve que aceitar que não fosse ministério. Era uma secretaria especial vinculada ao gabinete da Presidência da República, ou seja, subordinada à Casa Civil. O primeiro dado era esse, não tinha autonomia de ministério (Entrevista Zulu Araújo). 133

O grupo de trabalho formado para elaborar a proposta da nova secretaria refletia a composição de forças no interior no Movimento Negro e dos dois principais partidos da base do governo. Por parte do Movimento Negro havia representantes de cinco organizações nacionais: Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Movimento Negro Unificado (MNU); União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO); e representante do Partido dos Trabalhadores/secretaria Nacional de Combate ao Racismo (PT); e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) (RIBEIRO, 2014). Matilde Ribeiro, uma das coordenadoras da comissão que elaborou o Programa Brasil sem Racismo (PBR) e integrou a equipe do Governo de Transição (Lei 10.609/2002), foi escolhida para ser a primeira secretária de promoção da igualdade racial.

A nova e inédita agência do governo federal foi estruturada tendo por base a Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, o Programa Brasil sem Racismo e a Declaração e Plano de Ação de Durban (RIBEIRO, 2014). Como parte da estrutura básica da SEPPIR, foi também criado o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), órgão colegiado de caráter consultivo, cuja “finalidade é propor, em âmbito nacional, políticas de promoção da igualdade racial, com ênfase na população negra e outros segmentos étnicos da população brasileira”.134 Quando da

133 A SEPPIR foi criada pela Medida Provisória nº 111, convertida na Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003. Em

entrevista, Matilde Ribeiro revelou que parte do governo queria que fosse 13 de maio o dia de criação da SEPPIR. O Movimento Negro pressionou para ser no dia 21 de março, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. As elites brasileiras não conseguem se desvencilhar do dia 13 de maio, independentemente do matiz político.

sua criação, o CNPIR era composto por 44 membros, sendo 22 ministros de Estado, fato que sinalizava que o tema seria uma prioridade do novo governo. Os demais membros eram representantes da sociedade civil. Posteriormente, a composição do conselho foi alterada pelo Decreto nº 6.509, de 2008. Além da inclusão da Fundação Cultural Palmares e da Fundação Nacional do Índio, a principal alteração foi que os ministros de Estado deixaram de ser os conselheiros. Pelo novo decreto, os Ministérios indicariam representantes. Por fim, foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) pelo Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003.

O objetivo principal da PNPIR, conforme o Art. 2º do referido decreto, é a diminuição das desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra, articulando questões de raça e gênero. Os princípios que orientam a PNPIR são a transversalidade, a descentralização e a gestão democrática. A SEPPIR foi definida como o órgão responsável pela coordenação das ações e articulação institucional da política, devendo todos os órgãos da administração pública federal prestar apoio à implementação da PNPIR. Assim, o novo governo emitia sinais de que o Estado brasileiro efetivamente modificaria o conteúdo da sua “política racial”. Assumia que o racismo era um problema político relevante e para o seu enfretamento esboçara uma política e criara órgãos para implementá-la.135

A PNPIR introduziu uma inovação em termos de princípio orientador da política pública, a saber: transversalidade das suas ações, pois gestão democrática e descentralização são princípios das políticas sociais consagrados desde o advento da Constituição de 1988. No que se refere a esses dois princípios, há uma literatura consolidada sobre a formação e funcionamento dos conselhos gestores, bem como sobre a descentralização das políticas sociais brasileiras. Sem dúvida, o princípio da transversalidade constitui uma novidade que traz no seu bojo novos desafios para formuladores e gestores de políticas públicas. Nas linhas que se seguem, descrevo de que maneira cada um desses princípios foi operacionalizado pela SEPPIR para desempenhar sua missão institucional e quais os principais óbices desse processo.

A política de promoção da igualdade racial, como já dito em outras passagens desta Tese, é uma complexa e recente inovação institucional no Estado brasileiro. Portanto, faz-se necessário travar uma discussão sobre o contexto e o processo de seu surgimento, bem como dos seus princípios orientadores.

135 O Governo Lula da Silva regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,

demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (Decreto nº 4.887/2003).

Quando a temática das desigualdades raciais alcança a agenda governamental federal, a partir de 1995, já a faz sob a perspectiva da transversalidade. Conforme visto no capítulo anterior, a ideia de transversalidade já estava contida no documento Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial entregue pelos dirigentes da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Esse princípio também presidiu a atuação do GTI e orientou os documentos subsequentes referentes à construção de uma política de promoção da igualdade racial tanto do Movimento Negro quanto do governo federal no país.

O princípio da transversalidade informa que as ações de uma determinada política pública devem ser consideradas e integradas nas demais políticas. No caso específico da política de promoção da igualdade racial, esse princípio indica que o conjunto das políticas de um governo deve ter como objetivo a redução das desigualdades raciais e que, para tanto, devem incluir esse objetivo nas suas ações setoriais (SILVA; CARDOSO; SILVA, 2014).

A transversalidade é uma característica fundante e, talvez, um dos maiores desafios de uma política de promoção de igualdade racial e de combate ao racismo.136 O fenômeno do racismo e seus efeitos são ubíquos. Muito provavelmente, não existe uma dimensão das relações sociais que não seja por ele transpassado.137 Assim, uma política de promoção da igualdade racial não constitui um subsistema de política em si mesmo (SABATIER, 1988; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993), deve estabelecer diálogos para influenciar e modificar os subsistemas de políticas mais afetos àquela problemática.

A transversalidade nas políticas públicas é uma novidade inaugurada com a criação das secretarias Especiais de Direitos Humanos (SEDH), de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), de Políticas para as Mulheres (SPM) e Nacional da Juventude (SNJ), no processo de formulação do PPA 2004-2007 (IPEA, 2009).

A criação dessas secretarias visava, por meio do trabalho de articulação governamental realizado por órgãos ligados diretamente à Presidência da República, mobilizar ministérios para que estes inserissem nos seus planejamentos, bem como na execução de suas políticas, enfoques voltados para temas como direitos humanos, raça, gênero e juventude (id., Ibid., p. 550).

O IPEA (2009) adverte que, em que pese à introdução do conceito de transversalidade no debate sobre políticas públicas ter sido estimulada pelos temas relativos

136 O mesmo se aplica à política para as mulheres, pessoas com deficiência, crianças, adolescentes e jovens.

Enfim, para todos os grupos sociais não identificados no estereótipo do sujeito universal: homem, branco, heterossexual, entre 25 a 65 anos.

aos direitos humanos, raça, gênero, pessoas com deficiência, idosos, criança e juventude, e seja a ótica adotada para essas áreas pelo governo federal, o conceito não deve ser tomado como sinônimo de políticas dirigidas a grupos vulneráveis. O enfoque da transversalidade se aplica a temas complexos e multidimensionais que exigem soluções criativas, inovadoras e pactuadas entre diferentes atores setoriais e em todos os níveis da cadeia decisória.

O termo transversalidade tem sua origem no campo dos estudos educacionais, segundo o qual o processo pedagógico deveria ser pensando sob uma perspectiva interdisciplinar. Posteriormente, o conceito foi incorporado pela sociologia, psicologia e filosofia (IPEA, 2009) e mais recentemente para a área de gestão de políticas públicas.

O estudo do IPEA (op. cit.) revela que há uma compreensão bastante “elástica” sobre o significado de transversalidade nas políticas públicas por parte da alta burocracia federal (planejadores com planejadores da política governamental, em seu nível estratégico; gestores das secretarias especiais e os gerentes dos programas federais), que suscita práticas bastante distintas, por vezes contraditórias, e interpretações equivocadas. Trata-se, portanto, de uma novidade e um desafio institucional, pois implica um compartilhamento de responsabilidades institucionais, ou seja, uma mudança no padrão de gestão de políticas públicas (FERREIRA, 2014).

O conceito de transversalidade implica mudança no modelo de gestão de políticas vigente e o abandono do modelo burocrático-departamental baseado na divisão de tarefas por setores de atuação, segundo os princípios de unidade de comando e estrutura piramidal. Na transversalidade, o princípio organizativo repousa em ações interdepartamentais no interior de arranjos institucionais lastreados na confiança e na cooperação, que privilegiem a negociação e a tomada de decisões em que as competências, experiências, recursos e técnicas, reunidos em cada área de atuação, possam produzir sinergias e concertar ações exitosas (IPEA, 2009).

Quando aplicado a políticas para grupos populacionais específicos, por exemplo, o conceito compreende ações que, tendo por objetivo lidar com determinada situação enfrentada por um ou mais desses grupos, articulam diversos órgãos setoriais, níveis da Federação ou mesmo setores da sociedade na sua formulação e/ou execução (IPEA, 2009, p. 780).

Uma das exigências da transversalidade é uma ação proativa e dirigente que consiga estabelecer interlocução com as diferentes áreas identificadas como estratégicas para a política transversal, de modo que se traduza em uma agenda positiva às agências finalísticas (DE PAULO, 2015). A princípio, o conceito é aparentemente de fácil compreensão, todavia sua operacionalidade revela-se bastante complexa e difícil. Exige a incorporação de uma

perspectiva de complementaridade e confluência entre as políticas e programas. Assim, a aplicação do conceito de transversalidade exige um novo desenho institucional, menos orientado pela hierarquia e centralização, mais favorável a modelos de gestão horizontal, em cuja perspectiva interdepartamental ou intersetorial os atores desenvolvem ações cooperativas para alcançar objetivos comuns. “Nesses desenhos, a coordenação dos trabalhos envolve mais organização das agendas, acompanhamento das tarefas e relatoria do processo e menos relações de mando e subordinação” (IPEA, 2009, p. 780).

Como verificar a institucionalização do princípio da transversalidade em uma política pública? Silva, Cardoso e Silva (2014) consideram que a institucionalização de uma política pública se efetiva quando ela é inserida de maneira “articulada e consistente nas peças de planejamento e orçamento” (id. Ibid., p. 7). Assim, quando se mira o Plano Plurianual (PPA)138 2000-2003, elaborado no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, a dimensão racial não consta em nenhum dos seus 28 objetivos (SILVA, CARDOSO; SILVA, 2014). Esse assunto será inserido como diretriz do governo federal pela primeira vez no PPA 2004- 2007 e mantido nos PPAs subsequentes (PPA 2008-2011; PPA 2012-2015). Considerando que o PPA é o elemento estrutural da ação governamental (SILVA et al., 2014), a inserção e a forma como a temática da igualdade racial é contemplada nos Planos Plurianuais devem ser consideradas como a “prova de ácido” (SILVA, N.; HASENBALG, 1992) tanto da política de promoção da igualdade racial quanto do princípio da transversalidade.

Em primeiro lugar, porque segundo a lógica da transversalidade as agências federais deveriam alocar recursos para as áreas estimuladas pela PNPIR (SEPPIR, 2007), ou seja, as ações e metas da PNIR devem ser contempladas nos orçamentos dos órgãos finalísticos. Segundo, a cultura organizacional da administração pública é ainda notadamente departamental/setorializada, o que gera a ausência do diálogo horizontal entre as agências (JACCOUD, 2009). Junte-se a isso a própria composição política de um governo de coalizão com partidos bastante heterogêneos.

Numa análise pormenorizada do PPA 2004-2007 e do PPA 2008-2011, Silva; Cardoso; Silva (2014) chegam a algumas conclusões. No PPA 2004-2007, embora conste como megaobjetivo 8 “promover a redução das desigualdades raciais” (SILVA; CARDOSO; SILVA, 2014, p. 16), essa ação não foi efetivamente incorporada como meta central no projeto nacional de desenvolvimento. Segundo, a temática racial não é abordada sob a

138 O Plano Plurianual (PPA) é um instrumento de planejamento de médio prazo (4 anos), previsto na

Constituição Federal de 1988, cuja elaboração é obrigatória para todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal), cf. http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/ppa; e http://www.gestaopublica.org.br/o-que-e-o-plano-plurianual-municipal/

categoria da transversalidade. Os autores reconhecem que a referência à questão das desigualdades raciais no texto da mensagem presidencial que acompanha a proposta do PPA seja um avanço significativo, sobretudo quando comparado ao PPA 2000-2003. Eles constatam que a problemática racial, “quando mencionada em outros desafios, aparece dissociada de ação específica a cargo das demais pastas do governo”. Mais adiante, apontam que “a redução da desigualdade racial não estava nem ao menos mencionada nas 63 metas prioritárias elencadas em 16 categorias” (SILVA; CARDOSO; SILVA, 2014, p. 17). Ao avaliar a execução do PPA 2004-2008, os autores verificaram que, não obstante conste como um dos seus desafios reduzir as desigualdades, “80% dos programas do Executivo – 60% nas pastas sociais – ainda não haviam incorporado a questão racial nem no nível mais elementar” (Id. Ibid., p. 30).

No PPA 2008-2011, os autores são categóricos em afirmar que “a questão racial também não encontra eco entre as dezenove áreas em que estão organizadas as metas prioritárias para o período 2008-2011” (SILVA; CARDOSO; SILVA, 2014, p. 23). Argumentam que, na mensagem presidencial para o plano do quadriênio 2008-2011, o enfrentamento das desigualdades raciais ficou circunscrita à questão quilombola. Por fim, os autores detectaram alguns problemas referentes ao modelo de gestão dos planos, entre outros eles ressaltam “a tendência ao insulamento da questão racial no âmbito da SEPPIR; falta de correspondência entre os diagnósticos relativos à população negra e as ações apresentadas para enfrentar a desigualdade racial” (Id. Ibid., p. 31).

A pesquisa de Silva, Cardoso e Silva (2014) ao penetrar no âmago dos PPAs, onde a política pública efetivamente se materializa, fornece elementos para aquilatar com maior precisão avanços, limites e óbices à política de promoção da igualdade racial, de modo a realizarmos “avaliações menos ingênuas” das políticas públicas (ARRETCHE, 2001b). A análise dos PPAs desvela que, se do ponto de vista retórico, as desigualdades raciais são reconhecidas como graves e sublinhadas nas várias dimensões da vida social, todavia, além de não ter centralidade no projeto de desenvolvimento nacional, a ação governamental visando ao equacionamento enclausura-se nos programas da SEPPIR, com poucas chances de romper as grades da lógica burocrático-departamental. Por fim, mas não menos importante, Silva, Cardoso e Silva (2014) alertam que políticas como a de igualdade racial, por serem recentes e com menor grau de institucionalização, revelam fragilidade no que tange à capacidade de indução. Essa fragilidade repercutirá no desenho institucional e nos mecanismos disponíveis para promover a descentralização da política pública.

Sem embargo, antes de descrever o modus operandi do processo de descentralização da política de igualdade racial, sumarizo as bases de como o princípio gestão democrática se consubstancia. A literatura especializada sobre o tema demonstra que a operacionalização da noção de gestão democrática nas políticas públicas segue, em linhas gerais, um roteiro, uma vez que, ao mesmo tempo em que é conhecido, se revela pouco eficaz e efetivo na realização das suas promessas.

O princípio da gestão democrática da PNPIR materializa-se em órgãos e instâncias de participação da sociedade civil, sobretudo, mas não exclusivamente, organizações do Movimento Negro, como o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), no plano do governo federal. Essas estruturas deveriam ser replicadas no âmbito dos Estados e Municípios, seguindo o princípio da descentralização.

O CNPIR foi instituído quando da criação da SEPPIR, em 2003. A I CONAPIR foi realizada em julho de 2005, reunindo mais de mil delegados de todos os Estados brasileiros, em Brasília. A conferência nacional foi precedida de conferências municipais e estaduais. Estima-se que o processo como um todo, da realização das conferências (municipais, estaduais e nacional), tem mobilizado e envolvido cerca de 90 mil pessoas em todo o país (JACCOUD, 2009). Os números revelam um esforço hercúleo para a realização da I CONAPIR, considerando o ineditismo do órgão (SEPPIR) e da política. O esforço e a atuação da SEPPIR e do Movimento Negro brasileiro para a efetivação desse encontro se recobrem de simbolismo histórico e político, pois se trata de uma área sem uma herança institucional (“legado de políticas prévias”), sem regras constitucionais e sem uma engenharia operacional inerente ao seu funcionamento (ARRETCHE, 2000).

Dentre os objetivos da I CONAPIR estava a definição das diretrizes da PNPIR, considerando a perspectiva de gênero, cultura e religião, e também a formulação de proposta para subsidiar a elaboração do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR), que deveria ter sido lançado em novembro de 2005. No entanto, esse plano somente ganhou forma e foi aprovado em 2009, em seguida à II CONAPIR.

A II CONAPIR, embora prevista e convocada para acontecer em 2008, só se concretizou em 2009. Com um atraso de quatro anos, a SEPPIR sistematizou o conteúdo das propostas das duas conferências, dando materialidade ao Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (RIBEIRO, 2014), seis anos após a criação da SEPPIR. Por conseguinte, as proposições do PLANAPIR não foram inseridas no PPA 2008-2011. Por seu turno, a III CONAPIR foi realizada no conturbado ano de 2013, marcado por uma onda de protestos em

inúmeras cidades brasileiras, que ficou conhecida por “jornadas de junho”, e os dez anos da instituição da PNPIR.

As conferências são importantes porque têm o papel de definir as diretrizes da Política de Promoção da Igualdade Racial para um período de gestão. Entretanto, os