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Capítulo 2 A Política Racial no Brasil: da eugenia a políticas de promoção da

2.7 Ciclo de protesto negro e a crise da democracia racial (1978 2001)

2.7.2 A experiência do GTI

Há duas narrativas para a criação do GTI. Segundo a ótica dos organizadores da marcha, o presidente da República respondeu à pressão do Movimento Negro com a criação do GTI. Por outro lado, na versão dos ativistas do Movimento Negro vinculados ao PSDB e, na ocasião, membros do governo do presidente FHC, a criação do GTI foi fruto de articulações no interior do governo, realizadas por ativistas e funcionários negros. Para alguns, essa narrativa diminuiria o protagonismo da marcha (RIOS, 2012). A passagem abaixo ilustra essa percepção.

Quando a Marcha Zumbi dos Palmares chegou aqui, deu a impressão de que Marcha criou o GTI. Mas na verdade o GTI já estava pronto. Foi uma coisa construída no governo. Não foi feita pela sociedade. O governo fez e apresentou.100

Não argumentarei que se trata de uma disputa de narrativas (RIOS, 2012), nem que a criação do GTI é um resultado direto da pressão exercida pela marcha sobre o governo federal, como defendem os seus organizadores e alguns analistas; muito menos o seu inverso, que a criação do GTI teria sido elaborada no interior do governo independentemente da marcha. Chamo a atenção para a simultaneidade dos fatos e processos. O GTI e a marcha se encontraram no Palácio do Planalto no dia 20 de novembro. Com isso, não se quer tirar ou esmaecer o protagonismo do Movimento Negro. Seria negar a realidade dos acontecimentos.

O decreto de criação do GTI foi firmado no mesmo dia da marcha; por isso, provavelmente, já estivesse pronto. Importante lembrar que a marcha começou a ser organizada desde 1994. Ora, tanto Hélio Santos quanto Ivair Augusto dos Santos, como ativistas do Movimento Negro, em São Paulo, certamente tinham informações sobre os preparativos da marcha, assim como o serviço de inteligência do governo brasileiro.

O modelo do GTI seguiu a mesma lógica do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, criado na gestão do governador Franco Montoro, no Governo do Estado de São Paulo, em 1984, cujos principais artífices foram Hélio Santos e Ivair Augusto Alves dos Santos.101 O modelo era uma experiência conhecida pelos ativistas e burocratas negros e brancos do PSDB. Lembremos que nos processos decisórios as preferências são problemáticas (ambíguas). Participantes de um processo decisório, quando confrontados com uma situação-problema e instados a apresentar propostas, elaboram-nas de

100 Depoimento de Ivair Alves dos Santos concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 355).

101 Hélio Santos e Ivair Augusto Alves dos Santos, militantes do Movimento Negro, filiados ao MDB de São

acordo com suas experiências. Como afirmou Ivair dos Santos: “O GTI, como disse, foi praticamente uma reprodução em larga escala do que a gente fez: era abrir espaço etc. e tal”.

102 A forma como o presidente FHC se refere ao GTI corrobora o raciocínio anterior. Em

determinado trecho de uma entrevista concedida a Roberto de Toledo (1998)103, ele diz: “Há o Conselho dos Negros também, que o Montoro (André Franco Montoro, ex-governador paulista) fez pioneiramente em São Paulo”. Mais adiante, reforça. “Hélio Santos (...), que hoje está aqui, no Conselho dos Negros”.

Ambos os eventos correram em paralelo ao longo do ano de 1995. Eis um caso exemplar de a solução encontrar o problema quase que de modo instantâneo. Embora criado no dia 20 de novembro de 1995, a instalação do GTI só se efetivou em 27 de fevereiro do ano seguinte, em ato rodeado de pompa presidencial.

O GTI foi organizado em 16 áreas de atuação: 1) Informação: quesito cor; 2) Trabalho e Emprego; 3) Comunicação; 4) Educação; 5) Relações Internacionais; 6) Terra (Quilombolas); 7) Política de Ação Afirmativa; 8) Mulher Negra; 9) Racismo e Violência; 10) Saúde; 11) Religião; 12) Esportes; 13) Legislação; 14) Estudos e Pesquisas, Ciência e Tecnologia; 15) Cultura Negra; 16) Política e Estratégia. Em cada uma dessas áreas formou- se um Grupo Temático (GT), que contava com um coordenador. Cada GT deveria produzir propostas e sugestões para subsidiar a elaboração de políticas de valorização da população negra (GTI, 1996). No GTI, havia representantes de oito ministérios e duas secretarias (dez agências governamentais) e oito membros indicados pelo Movimento Negro. Ministérios: 1) da Justiça; 2) da Cultura; 3) da Educação e do Desporto; 4) Extraordinário dos Esportes; 5) do Planejamento e Orçamento; 6) das Relações Exteriores; 7) da Saúde; 8) do Trabalho. Secretarias: 9) de Comunicação Social da Presidência da República; 10) de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (GTI, 1996).

Após mais de dois anos de trabalho (fevereiro de 1996 a maio de 1998), o GTI apresentou documento final contendo propostas e sugestões de medidas para fomentar o progresso social e econômico dos negros na sociedade brasileira. Todavia, o governo federal não criou mecanismos para viabilizar a execução daquelas proposições. Inclusive, ministros boicotaram a implementação das recomendações do referido documento (Telles, 2003), como, por exemplo, o ministro da Educação, Paulo Renato, que era frontalmente contrário à ideia de cotas raciais nas universidades públicas.

102 Depoimento de Ivair Alves dos Santos concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 355).

103 Cf. http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/fernando-henrique-

Durante o funcionamento do GTI, o grupo temático Saúde da População Negra foi aquele que mais se destacou. É notável a diferença dos avanços desse campo em relação aos demais. No próprio ano de 1996, o Ministério da Saúde dispôs sobre normatização das informações sobre raça/cor nas declarações de nascidos vivos e nas declarações de óbitos. Realizou mesas redondas, participou de encontros e reuniões e elaborou o Programa de Anemia Falciforme. Todavia, até 2002 o programa só havia sido implementado em alguns poucos Estados e Municípios. No ano seguinte, o Ministério da Saúde inicia a discutir a elaboração de uma Política Nacional de Saúde da População Negra (JACCOUD, 2009).

Na área da educação, um campo histórico de reivindicações do Movimento Negro, o documento do GTI cita como objetivo “criar mecanismos que facilitem o ingresso de afro- descendentes nas universidades públicas e privadas” (GTI, 1996, p. 11), sem identificar quais, uma vez que cotas raciais era um tema interdito.

No que se refere ao incentivo às ações dos governos locais, o documento do GTI não definiu quais seriam os meios pelos quais o governo federal estimularia a atuação dos governos estaduais e municipais. Nesse período, o governo federal estava ainda em um processo de aprendizagem institucional sobre o seu papel como indutor de políticas sociais. De fato, não há registro, com exceção da prefeitura de Belo Horizonte, de iniciativas estaduais e municipais diferentes dos conselhos de desenvolvimento da população estaduais e municipais. Quando da criação da Secretaria Municipal de Assuntos da Comunidade Negra (SMACON), da Prefeitura de Belo Horizonte, em 1998, o governo federal estava despreparado, política e institucionalmente, para apoiar a iniciativa mineira.

É importante frisar que tanto a “Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Igualdade, a Cidadania e a Vida” quanto o GTI cumpriram seu papel para que o tema das desigualdades raciais se tornasse um problema político que merecia atenção das agências estatais, inscrevendo-o na agenda governamental. Todavia, inscrever um problema na agenda governamental não significa que esse problema terá atenção dos membros do governo e subirá para a agenda decisória. Também é importante lembrar a lição de Bachrach e Baratz (1962) de que muitas vezes não tomar decisão é a decisão a ser tomada. Nas palavras dos autores, a “tomada de não-decisão, isto é, a prática de limitar o âmbito da tomada de decisões a questões ‘seguras’, através manipulação dos valores, mitos e instituições e procedimentos dominantes na comunidade” (BACHRACH; BARATZ, 1979, p. 43-44).

Durante os seus dois mandatos (1995-1998; 1999-2002), o presidente Cardoso deu inúmeras demonstrações de ambiguidade quanto aos caminhos a serem trilhados para a

formulação de políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil.104 Como parte das suas atividades, o GTI realizou o “Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos”, ocorrido em 1996, no qual o presidente FHC, no seu discurso de abertura, convocou os participantes para apresentar ideias criativas e não imitarem experiências de outros países. Nas entrelinhas, esse discurso pode ser interpretado como um não às cotas raciais.

Na avaliação de Telles (2012), era nítida a diferença entre brasileiros e estrangeiros. Os primeiros eram acadêmicos reconhecidos nas suas respectivas áreas, mas que ignoraram a questão racial ao longo das suas carreiras até o dia da convocação presidencial. As análises esboçadas pelos acadêmicos brasileiros refletiam uma noção popular de raça e de relações raciais, preferindo explorar o conceito de classe social. Entre os estrangeiros, todos eram especialistas em questões raciais, no entanto suas análises tiveram pouca ou nenhuma reverberação entre os tomadores de decisão política. “Líderes do Movimento Negro foram eventualmente convidados (...), mas ficaram em geral relegados à posição de espectadores” (TELLES, 2012, p. 47). Em entrevista o presidente afirmou: “Por causa da nossa hipocrisia racial, (...) é mais difícil uma ação decidida de combate ao racismo”.105

Um dos problemas enfrentados pelo GTI é que se pretendeu assumir a problemática das desigualdades raciais sem, no entanto, se desfazer da noção de democracia racial (Rios, 2012). Esta autora assevera que o GTI representou a abertura de um novo espaço na esfera estatal, alterando a relação entre o Movimento Negro e o Estado.

Outra frente de atuação antirracista refere-se às relações de trabalho. Após as centrais sindicais apresentarem uma representação contra o governo brasileiro na Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo descumprimento da sua Convenção 111106, o Ministério do Trabalho criou o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTDEO), em 1996. No ano seguinte, foi criado o programa Brasil, Gênero e Raça, cujo principal objetivo era a criação de Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Combate à Discriminação. Essas medidas, adotadas pelo governo FHC, surtiram efeitos limitados (JACCOUD, 2009).

104 Cf. Discursos do presidente Fernando Henrique Cardoso em:

http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/fernando-henrique- cardoso/discursos/discursos.

105 Cf. http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/fernando-henrique-

cardoso/publicacoes/construindo-a-democracia-racial.

106 “Convenção 111 prevê que todos os países signatários devem promover a igualdade de oportunidades e de

tratamento em matéria de emprego e de ocupação, incluindo a recusa de qualquer distinção salarial ou diferença de tratamento por motivos de cor ou raça” (JACCOUD, 2009, p. 33, nota de rodapé nº 40).

Sem dúvida ou retoque, a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Igualdade, a Cidadania e a Vida impulsionou o GTI, ajudou o movimento sindical e contribuiu para o estabelecimento de um novo entendimento sobre a problemática do racismo na esfera estatal. A marcha e o GTI fomentaram e ampliaram o debate público sobre as desigualdades raciais, no Brasil. Este debate ganharia novo ânimo após a convocação pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1997, para a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e outras Formas de Intolerância Correlata (3ª CMR), que se realizaria na cidade de Durban, África do Sul, no período de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.

2.7.3 A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo e o Papel da Cooperação Internacional