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Capítulo 1 Movimentos Sociais e Políticas Públicas: conceitos e modelos

1.3 Análises de políticas públicas: conceitos e modelos

1.3.3 Advocacy Coalition Framework – ACF (Estrutura de Coalizões de Defesa)

Nos anos de 1980, insatisfeitos com os modelos de análise em políticas públicas, Paul Sabatier e Hank Jenkins-Smith (1988) propuseram o Modelo de Coalização de Defesa (Advocacy Coalition Framework - ACF), alternativo ao ainda dominante Policy Cycle. A ACF sintetiza o melhor das abordagens “top-down” e “bottom-up” e incorpora a informação técnica nas teorias do processo político (SABATIER, 1998) com o intuito de construir um quadro conceitual explicativo para as mudanças nas políticas públicas ao longo do tempo sem isolar nenhuma das fases do processo de formulação de políticas (SABATIER, 1988).

56 No original: “(…) the complete joining of all three streams dramatically enhances the odds that a subject will

O arcabouço conceitual da ACF parte de três premissas: a) perspectiva temporal, no mínimo dez anos; b) foco sobre o “subsistema de política” e na interação dos variados atores e instituições interessados em uma política; c) política pública como sistema de crenças e valores (SABATIER, 1988, p. 131). Ulteriormente, Sabatier e Jenkins-Smith (1993) incluíram mais duas premissas ao modelo: d) o papel da informação técnica referente à magnitude e distribuição dos impactos de uma política; e) a ação dos organismos internacionais e de outros países em uma política nacional (SABATIER, 1998).

Segundo a ACF, políticas públicas são formadas por um conjunto de subsistemas que abrange uma variedade de atores individuais e institucionais (públicos e privados). O policy making é definido como um processo interativo que acontece por anos e décadas. A mudança na política é vista como resultante dessas interações. O quadro conceitual incorpora a influência da implementação e o feedback sobre o sistema (BIRKLAND, 2015).

Sabatier (1988) argumenta que a concepção de subsistemas de políticas deve ser ampliada para além das noções tradicionais do "triângulo de ferro" (agências administrativas, comitês legislativos e grupos de interesse em um único nível de governo) e incluir outros atores nos vários níveis de governo, bem como jornalistas, pesquisadores e analistas de políticas que desempenham papéis importantes na geração, disseminação e avaliação de ideias políticas. Incluo também movimentos sociais.

A ideia de subsistemas de políticas é onde reside o poder explicativo do modelo. Um “subsistema de política” é a unidade de análise agregada mais importante para compreender o processo de mudança nas políticas públicas. Em um subsistema se reúnem os atores de organizações públicas e privadas diretamente interessados em um problema ou questão de política pública, envolvendo burocratas em diferentes níveis de governo, corpo de especialistas, legisladores, líderes de grupos de interesses, como também instituições de pesquisa e jornalistas. Um subsistema é um domínio delimitado de atuação, como, por exemplo, agricultura, controle da poluição do ar e saúde mental, nos quais os participantes procuram influenciar a política pública nos seus domínios de atuação (SABATIER, 1988, 1998). Em suma, é uma comunidade de especialistas, que atua no processo de produção de uma política (desde o agendamento à implementação). Enquanto alguns se esforçam para manter o status quo, outros buscam transformá-lo.

Nos subsistemas, formam-se as coalizões de defesas, que competem entre si pelo domínio conceitual, ideológico e material (controle de recursos) em torno de um tema ou área de uma política. Os membros das coalizões compartilham um conjunto de crenças e valores sobre problemas de políticas e como solucioná-los. Em um subsistema, há entre duas a quatro

coalizões em processo de disputa. A quantidade de coalizões dependerá do grau de diferenciação e fragmentação dos grupos e atores participantes do subsistema de políticas.

O sistema de crenças e valores envolve concepções de mundo e percepções das relações causais importantes de um problema de política, bem como compreensões sobre quais instrumentos de política são mais eficazes para a resolução de determinado tipo de problema. Esses sistemas de valores e crenças alicerçam as teorias implícitas sobre como enfrentar e solucionar problemas. Abrange visões e entendimentos sobre o funcionamento da sociedade, do comportamento de indivíduos e grupos, bem como de incentivos e punições mais adequados aos grupos sociais.

A inovação do conceito de coalizões de defesa é reconhecer que “a maioria das coalizões incluiria não apenas os líderes de grupos de interesses, mas também burocratas, legisladores de múltiplos níveis do governo, pesquisadores e provavelmente alguns jornalistas” (SABATIER, 1998, p. 103),57 ampliando assim o “triângulo de ferro” do policy process. Outro aspecto inovador é assumir que a ação dos atores é orientada para a aprendizagem em política pública – policy-oriented learning.

O conceito de "aprendizagem orientada para políticas" é definido como "alterações relativamente persistentes de pensamento ou intenções comportamentais resultantes da experiência e/ou da aquisição de novas informações relacionadas com a realização ou a revisão dos objetivos políticos" (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999, 123).58 Conforme Bueno (2008, p. 32), o policy-oriented learning é a espinha dorsal da dinâmica interna ao subsistema.

O modelo de coalizão de defesa sugere a existência de quatro mecanismos capazes de provocar, em maior ou menor grau, mudanças na política pública: 1) choques externos; 2) choques internos; 3) um impasse pernicioso – impasse político; 4) acúmulo generalizado de evidências técnico-científicas (WEIBLE; SABATIER, 2007).

O primeiro mecanismo compreende eventos que ocorrem fora dos subsistemas, como, por exemplo, mudanças socioeconômicas, mudança na coalizão governamental e impacto de outros sistemas, cuja força e efeitos podem produzir modificações na política de duas maneiras básicas: a) alterar a disponibilidade de recursos disponíveis para as coalizões, por conseguinte desorganizando o arranjo de poder entre as coalizões; b) modificar as crenças

57 No original, “The ACF explicitly argues that most coalitions will include not only interest group leaders, but

also agency officials, legislators from multiple levels of government, applied researchers, and perhaps even a few journalists” (SABATIER, 1998, p. 103).

58 No original, “relatively enduring alterations of thought or behavioral intentions that result from experience

and/or new information that are concerned with the attainment or revision of policy objectives” (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999, p. 123).

fundamentais da política da coalizão dominante no subsistema, provocando mudanças relevantes, substituindo uma coalizão dominante por outra (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999).

Como segundo mecanismo de mudança vêm os choques internos, que se inspiram no evento-foco (KINGDON, 1984 [2014]), a exemplo dos desastres de dentro do subsistema de políticas (SABATIER; WEIBLE, 2007). Os autores não fornecem poucos exemplos de choques internos. Devemos compreender choques internos como demonstrações de falhas monumentais no funcionamento de uma política que conduzam para confirmar o sistema de crenças de políticas da coalizão minoritária e aumentem as dúvidas no interior da coalizão majoritária (SABATIER; WEIBLE, 2007).

O terceiro mecanismo de mudança refere-se àquelas situações de impasse político. São situações em que, apesar de a continuidade do status quo ser inaceitável, a coalizão conservadora não aceita negociar mudanças. Todavia, quando sem alternativas para manter suas posições, os defensores do status quo são obrigados a negociar, solucionando a paralisia e promovendo a transformação na política pública.

O quarto mecanismo abrange a aprendizagem orientada pela política pública. Ele opera transformação no nível das crenças das coalizões via acúmulo gradual de informações proveniente de estudos e pesquisas científicas, como as avaliações. Se os choques externos podem ocasionar mudanças rápidas, nos processos baseados na aprendizagem orientada pela política a mudança tende a demorar uma ou mais décadas.

O enfoque da ACF chama a atenção para a força das ideias, dos símbolos, dos valores e das crenças no processo de elaboração de políticas públicas. Essa abordagem se caracteriza por seu intento de entender as políticas públicas como matrizes cognitivas e normativas que conformam sistemas de interpretação ou de representação da realidade, nos quais os atores públicos e privados disputam no campo das ideias (ROTH, 2007).

Na ACF, a formulação de políticas públicas é influenciada pela interação de duas ordens de variáveis exógenas: variáveis estáveis (parâmetros “relativamente estáveis"); e variáveis “dinâmicas" (eventos dinâmicos externos ao sistema). A interação entre ambas pode promover ou inibir o policy process.

Os parâmetros “relativamente estáveis” são aqueles que contam com uma estabilidade medida por longos períodos de tempo - no mínimo, 100 anos (WEIBLE; SABATIER, 2007). São esses os elementos fundamentais do conjunto dos “parâmetros relativamente estáveis”: (1) atributos básicos da área problemática; (2) distribuição básica de recursos naturais; (3) valores socioculturais fundamentais e estrutura social; e (4) estrutura

constitucional (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993). Esses parâmetros estruturam a natureza do problema; limitam os recursos disponíveis para os participantes; estabelecem regras e procedimentos para mudanças e para obter decisões coletivas; e enquadram os valores que informam a formulação de políticas. Eles incluem a estrutura jurídico-legal, valores socioculturais e os recursos do sistema político. Dada a quase imutabilidade de tais parâmetros, raramente eles são objetos da ação estratégica dos participantes do subsistema político (WEIBLE; SABATIER, 2007). Os fatores estáveis podem ser internos ou externos ao subsistema de políticas. Eles limitam e constrangem a variedade de alternativas viáveis ou, ainda, afetam os recursos disponíveis e as crenças dos atores do subsistema de políticas. No caso brasileiro, é preciso matizar esses parâmetros, uma vez que a Constituição Federal foi alvo de inúmeras emendas.

Os fatores dinâmicos são aqueles que podem variar substancialmente em poucos anos. Eles alteram as oportunidades e as restrições que os membros de um subsistema de política enfrentam. O dinamismo desses fatores coloca a necessidade dos atores do subsistema de aprender a antecipar e a responder a eles conforme as suas crenças e interesses básicos. Segundo Sabatier (1998), muitas vezes esse processo é frustrante, pois os atores podem trabalhar por anos para obter vantagens dentro de um subsistema e ter seus planos prejudicados repentinamente por um evento externo inesperado.

Os fatores dinâmicos incluem mudanças nas condições socioeconômicas e tecnológicas, na opinião pública, nas coalizões governamentais, nas decisões e impactos de políticas de outros subsistemas. O primeiro tipo de mudança influencia na delimitação de problemas e de políticas. Atividades em um subsistema podem influenciar no processo de produção de política em outro subsistema (BIRKLAND, 2015). Os fatores dinâmicos são os pré-requisitos críticos de mudança na política (SABATIER, 1998).

Segundo o modelo, os indivíduos têm um sistema de crenças hierárquico e tripartite. No nível mais amplo, estão as crenças profundas (deep core beliefs), aquelas que abrangem a maioria dos sistemas de política. São pressupostos normativos e ontológicos gerais sobre a natureza humana. São crenças em grande parte produto da socialização primária. Nesse nível, as crenças são muito resistentes a mudanças. No nível mais profundo de crença, encontram-se os valores relativos a questões de liberdade individual versus igualdade social, a identificação sociocultural (por exemplo, raça, etnia e religião), o papel apropriado do governo versus mercados em geral, sobre quem deve participar na tomada de decisão governamental e sobre prioridade relativa ao bem-estar de diferentes grupos (SABATIER; WEIBLE, 2007).

No nível intermediário, localizam-se as crenças centrais de políticas públicas (policy core beliefs). São crenças normativas e empíricas que abrangem todo o subsistema de políticas (WEIBLE; SABATIER, 2007). Ainda que resistente a mudança, essas crenças são mais maleáveis que as do núcleo duro (deep core beliefs). Representam acordos normativos básicos de uma coalizão e percepções causais em todo um domínio de política ou subsistema. As crenças básicas de políticas funcionam como uma “cola” das coalizões (SABATIER, 1998). Sabatier e Jenkins-Smith (1999) definem 11 componentes desse nível. Envolve desde a delimitação das atividades entre governo vs. mercado, passando por percepções da gravidade e causas de um problema de política, instrumentos da política a serem utilizados e qual nível de governo é mais conveniente para lidar com o problema (SABATIER, 1988; SABATIER. WEIBLE, 2007; WEIBLE; SABATIER, 2007). Os autores ressaltam que nem sempre há uma correspondência entre as crenças profundas e as de políticas, podendo existir subdivisões no interior de uma coalizão por conta de desacordos entre certos componentes das crenças centrais da política (SABATIER; WEIBLE, 2007).

No nível mais básico de crenças, estão as secundárias (secondary beliefs). São crenças empíricas e preferências políticas relacionadas a um subcomponente de um subsistema de políticas. São as preferências por instrumentos específicos de governo para atingir os objetivos de uma política, como, por exemplo, detalhamento de regras administrativas, dotação orçamentária dentro de um programa específico. Nesse nível, as crenças são as mais suscetíveis de mudança em resposta a novas informações e eventos (WEIBLE; SABATIER, 2007). O processo de aprendizagem orientada em política tem mais chances de modificar as crenças secundárias do que as outras duas.

Os conflitos estratégicos entre as coalizões são mediados por um terceiro grupo de atores denominados mediadores políticos (policy brokers), cujo principal interesse é firmar acordos e compromissos que possam reduzir a intensidade do conflito entre elas. Um policy broker pode ser um parlamentar, um servidor público de carreira, um membro do judiciário. Esse ator, usualmente, goza da confiança das coalizões e tem alguma autoridade no processo decisório. Os mediadores políticos são mais bem-sucedidos quando podem firmar compromissos que não ameaçam as deep core beliefs de nenhuma das coalizões.

Nos subsistemas, as coalizões competem pelo direcionamento da política pública. Tentam influenciar as decisões das autoridades quanto às regras institucionais e à alocação de recursos. Movem-se entre a competição e a colaboração, cuja dinâmica nos subsistemas produz os resultados na política (policy outputs) capazes de promover inovação ou

manutenção do status quo. Essa dinâmica é suprida por informações técnicas advindas, sobretudo, da implementação, podendo modificar a percepção das coalizões sobre a política.

Motivados em formular um esquema teórico alternativo ao modelo de ciclos de política, o ACF tem sido adotado, e com sucesso, nos Estados Unidos e na Europa, em pesquisas sobre implementação (ARAÚJO; RODRIGUES, 2017). Nos Estados Unidos, Canadá e Europa, as pesquisas são relativa à energia e ao meio ambiente. O modelo é também aplicado em estudos sobre violência doméstica, política de drogas e saúde pública. Estudiosos na Ásia, África, Austrália e Brasil têm adotado o ACF em seus problemas de pesquisa (WEIBLE; SABATIER, 2007). No Brasil, o modelo foi utilizado por Bueno (2004; 2008).