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Capítulo 2 A Política Racial no Brasil: da eugenia a políticas de promoção da

2.2 Em busca de uma solução para o problema negro: lei de terras, política de

O Brasil foi o último país das Américas a abolir o trabalho escravo. Um processo que durou 65 anos (1823-1888), cujos debates, embates e negociações foram compilados em “A Abolição no Parlamento: 65 anos de lutas” (BRASIL, 2012).60 Não obstante, essas lutas não se limitaram à esfera parlamentar. Teatros e ruas também foram palcos das mobilizações. O abolicionismo não se restringiu aos salões, como era a preferência de Joaquim Nabuco.61

Sem embargo, a partir de 1850 as soluções para pôr fim ao trabalho escravo começam a ser formuladas. Naquele ano, o parlamento brasileiro aprovara duas importantes legislações: a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queiroz, como parte um ambicioso programa de reformas. A primeira, inspirada nas “teorias de Wakefield”, aplicadas no processo de colonização da Austrália (HOLSTON, 2013). A segunda, criminalizava o infame comércio transatlântico de seres humanos, após anos de pressão da Grã-Bretanha.

60 Cf. Brasil (2012);Holston (2013); Andrews (1998).

A Lei de Terras, além de regulamentar as formas de acesso à propriedade fundiária no Brasil, também foi concebida como uma forma de o Estado financiar a imigração europeia. A legislação definia as formas legalmente reconhecidas de aquisição de terras da Coroa (terras devolutas): compra ou herança. Tipificava como crime quaisquer outras formas possíveis de adquiri-las (HOLSTON, 2013).

Paradoxalmente, o fracasso da Lei de Terras representou o seu sucesso. Malogrou ao não constituir o fundo público que financiaria a imigração, pois o preço da terra não atraiu compradores; inviabilizou a ocupação do território; tolheu o desenvolvimento agrícola. O êxito foi manter inalterada a estrutura fundiária. “Como legislação efetiva, foi uma fonte notável de desigualdade e injustiça na sociedade brasileira” (HOLSTON, 2013, p. 182).

O Brasil resistiu a pôr fim ao tráfico de escravos. Primeiro, significava uma fonte inesgotável de braços para a lavoura. Segundo, tratava-se de um comércio altamente lucrativo. Terceiro, o que fazer com milhões de africanos e seus descendentes após o fim do trabalho servil? Além das motivações racistas, o medo que sempre pairou nas mentes das elites brasileiras, decerto de todas as elites da região, foi um ingrediente a mais nessa agenda: o medo do “haitianismo”62.

Inobstante a crença do “racismo científico”, o “fantasma haitiano” também motivou as elites no seu esforço imigrantista. O aumento das rebeliões contribuiu na formação de um discurso do medo branco frente à onda negra (AZEVEDO, 1987). O discurso do medo modelou um aparato de vigilância e de controle estatal sobre os corpos negros, plasmando uma ação sempre violenta do aparelho policial orientada pela “cor padrão” dos suspeitos. No Brasil, as elites comungam a ideia da violência como a parteira da ordem.63

As reformas de 1850 almejavam preparar o país para o ingresso na modernidade. O Estado brasileiro promoveu a entrada de milhões de europeus e incentivou a mistura racial como mecanismo de “aperfeiçoamento” racial (HOLSTON, 2013).64Os primeiros imigrantes aportaram nas fazendas de café em 1847. O fracasso da Lei de Terras retardou em duas décadas a execução da política imigratória brasileira. Até 1870, apenas 8.600 colonos europeus chegaram ao país (ANDREWS, 1998). “A importação de trabalho livre para substituir escravos seria um projeto do Estado, não de mercado” (HOLSTON, 2013, p. 176).

62 Haitianismo, termo cunhado após a revolução negra de São Domingos (1791-1804). Uma onda de medo entre

as elites brancas ocidentais se seguiu após a independência do Haiti. Cf. Mott (1982); Gomes (1996); Carvalho (1998); Nishikawa (2005); Youssef (2009); Galeano (2010); Sampaio (2016).

63 Na atualidade, essa violência se expressa no genocídio da juventude negra pelo aparato de segurança pública. 64 O estímulo à miscigenação já aparece em José Bonifácio. Entre os brasileiros ainda prevalece a crença de que

a “mistura de raças” conduz ao “aperfeiçoamento racial” na medida em que as “raças mais escuras” tornam-se branca (Sic!) (HOLSTON, 2013, p. 103).

A intensificação da imigração foi posterior à Lei do Ventre Livre (1871) (COSTA, 2008). O abolicionismo avançava pari passu com o imigracionismo (HASENBALG, 2005; COSTA, 2008). No discurso abolicionista hegemônico, o regime escravista era a um só tempo óbice à modernização econômica e à atração de imigrantes (HASENGALG, 2005.). A política imigrantista era “parte de um projeto de modernização a mais longo prazo, em que o branqueamento da população nacional era altamente desejado” (Id. Ibid. p. 165).

Os Estados da região Sudeste, que concentravam a maioria da população escrava, em 1872, foram aqueles que mais incentivaram a imigração europeia. Por exemplo, entre 1871-72, a Assembleia da Província de São Paulo criou um fundo público para subsidiar os imigrantes (ANDREWS, 1998). Na medida em que o país caminhava para o fim do trabalho escravo, aumentava o afluxo de imigrantes. Nos dois últimos anos antes da abolição, mais de cem mil imigrantes europeus chegaram à Província de São Paulo. Em 12 anos (1888-1900), estima-se que cerca de 1,5 milhão de europeus chegou ao país (800 mil italianos), sendo São Paulo o principal destino. Um contingente populacional superior à população escrava existente no território nacional em 1887 (COSTA, 2008).

No pós-abolição, o governo paulista manteve-se como um dos grandes financiadores da imigração europeia. Os cofres públicos paulistas subvencionaram a maioria das passagens marítimas dos imigrantes que desembarcaram no porto de Santos, entre 1889 e 1900 (HOLSTON, 2013). O financiamento público da imigração europeia pelo Estado de São Paulo era uma forma de compensar os antigos proprietários de escravos (MARX, 1998).

No período de 1870 a 1963, o Brasil recebeu mais cinco milhões de imigrantes europeus, dos quais 80% se fixaram na região Sudeste. Pari passu ao incentivo à entrada de europeus, o Estado brasileiro criava barreiras à imigração africana e asiática. Para estes, o ingresso no país somente após autorização do Congresso Nacional (THEODORO, 2008). 65

A afluência de europeus fora de tal magnitude que alterou a composição racial da população. Em 1890, os brancos correspondiam a 44% da população, saltando para 62%, em 1950; ao passo que a proporção de pessoas que se identificavam como “mulato” caiu sensivelmente (MARX, 1998). No Estado de São Paulo, a população não-branca, em 1872, representava 49%; em 1950, reduziu-se a 16%. Em “lugar nenhum, a migração internacional teve um impacto tão intenso quanto em São Paulo” (HASENBALG, 2005, p. 169).

65 Decreto nº. 520/1890. Em 1908, foi liberada a imigração japonesa. A proibição permaneceu para os africanos.

O Estado também interveio fortemente no mercado de trabalho de forma a eliminar a concorrência dos trabalhadores negros. “O mercado de trabalho de São Paulo nos anos imediatamente subsequentes à abolição da escravidão era moldado por um direcionamento e intervenção do Estado em um nível incomum” (ANDREWS, 1998, p. 99). Em 1920, metade do operariado da indústria nacional era de estrangeiros (MARX, 1998).