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Capítulo 2 A Política Racial no Brasil: da eugenia a políticas de promoção da

3.3 Desigualdades regionais: pobreza e clivagens raciais

O federalismo brasileiro é simétrico em uma Federação assimétrica (SOUZA, C., 2006). A simetria se expressa no tratamento isonômico dispensado aos entes federativos, onde nenhum Estado ou Município tem primazia sobre os demais. Cada nível de governo tem seus respectivos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Municípios não contam com judiciário municipal.

Além da repartição de as competências e receitas seguirem o princípio da homogeneidade e isonomia, os Estados-membros desfrutam de igualdade absoluta na representação política no Senado. No Brasil, como nos Estados Unidos, os senadores representam os Estados-membros. Assim, no Senado, independentemente da dimensão territorial ou do tamanho das suas populações, o número de representantes por Estado é igual para todos. O princípio da proporcionalidade, empregado na eleição dos deputados, não se aplica ao Senado, por ferir um dos princípios do federalismo.

A assimetria diz respeito às desigualdades e disparidades regionais. As regiões Norte e Nordeste figuram como as menos desenvolvidas. A literatura acadêmica refere-se a ambas como áreas pobres; com baixo dinamismo econômico; com governos de baixa capacidade institucional, administrativa e fiscal. Por extensão, dependentes de transferências financeiras constitucionais ou do governo federal.

A explanação sobre o subdesenvolvimento do Nordeste assentava-se em questões geográfica e climática. No final da década de 1950, sob a influência da CEPAL, embasado nos conceitos de “centro-periferia” e “deterioração dos termos de troca”, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) sugeriu que às causas do subdesenvolvimento decorriam do sistema de “trocas desiguais” com as regiões Sul e Sudeste. Enquanto estas já haviam alcançado o estágio da industrialização, o Nordeste permanecia agrário-exportador.

Sem desconsiderar a importância dos fatores de natureza econômica, a explicação alternativa chama a atenção para outros aspectos das desigualdades. As regiões Norte e Nordeste são aquelas em que há uma desproporção no número de pobres, bem como de pretos e pardos. Assim, o argumento alternativo é de que as pessoas não são pobres porque vivem em regiões pobres, mas que a pobreza dessas regiões decorre de que nelas há um grande contingente de pobres, de maioria negra e do sexo feminino (PLANK, 2001).

O modelo de modernização econômica da Região Nordeste, via industrialização incentivada, não se fez acompanhar de um desenvolvimento social rumo à equidade (ALBUQUERQUE, 1997, p. 481). No período de 1960-1980, o índice de Gini diminuiu no Brasil e na Região Sudeste, enquanto aumentou no Nordeste.

Tabela 3.1 Coeficiente de Gini em 1960/1980 - Brasil, Sudeste e Nordeste

Brasil/Região Coeficiente de Gini/ano

1960 1970 1980

Brasil 0,639 0,620 0,625

Sudeste 0,615 0,584 0,591

Nordeste 0,596 0,618 0,638

Fonte: Albuquerque, 1993.

Para o período de 1990-2012, o coeficiente de Gini apresenta uma queda em todas as regiões do país. Todavia, no Nordeste, o índice é insistentemente mais alto. As regiões Sul e Sudeste são aquelas em que o índice apresenta as maiores quedas.

Tabela 3.2 Índice de Gini Brasil e por região 1990-2012 Índice de Gini

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste 1990 0,612 0,585 0,625 0,573 0,575 0,609 1995 0,599 0,585 0,603 0,564 0,563 0,582 2002 0,587 0,565 0,594 0,560 0,527 0,592 2006 0,560 0,523 0,572 0,534 0,504 0,559 2012 0,526 0,506 0,542 0,501 0,465 0,527

Fonte: Elaboração própria, adaptado de Brasil (2014, p. 182).

No ano de 1998, a população do Nordeste correspondia a 30% da população brasileira. Na distribuição por raça/cor (Tabela 5.3), a população que vive no Nordeste era formada majoritariamente por pessoas que se autodeclaravam como pretos ou pardos (70%).

Tabela 3.3 Distribuição % da população brasileira segundo raça/cor, por região, em 1998

Região Raça cor

Branca Preta Parda Indígena Amarela

Norte 28,7 2,2 68,5 0,4 0,2 Nordeste 29,7 5,7 64,3 0,1 0,1 Centro-Oeste 46,9 3,7 48,3 0,6 0,5 Sudeste 64,0 7,3 27,3 0,2 0,9 Sul 82,9 3,0 13,5 0,2 0,3 Brasil 54,0 5,7 39,5 0,2 0,5

Quando se observa a distribuição da pobreza pelo país (Tabela 5.4), nota-se que quase a metade da população nordestina é formada por pessoas pobres (47,8%). Considerando o total de pobres no país, 63% moram no Nordeste. Quase 70% dos pobres vivem nas regiões Norte e Nordeste.

Tabela 3.4 Distribuição regional dos pobres, em 1998

Região Percentual de pobres na população total Distribuição regional (%)

Norte 30,7 6,7 Nordeste 47,8 62,7 Centro-Oeste 13,7 4,3 Sudeste 8,8 17,3 Sul 12,4 9,0 Total 22,0 100

Fonte: Banco Mundial. Reproduzido de Melo e Rezende (2004, p. 57).

Melo e Rezende (2004) argumentam que as dificuldades na redução da pobreza e das desigualdades regionais decorrem das limitações do arranjo institucional do federalismo brasileiro, marcadamente descentralizado, enquanto aquelas são concentradas espacialmente. Passa despercebido por esses autores que as políticas de desenvolvimento regional foram formuladas sob a égide de três Constituições federais (1946, 1967 e 1988). Porém, em nenhum desses contextos institucionais mostraram-se efetivas na mitigação das desigualdades. Pelo contrário, acabaram por reforçar e ampliar as desigualdades interpessoais. A análise institucionalista sobre as dificuldades de enfrentamento das desigualdades regionais também é compartilhada por Souza, C. (2005b; 2006). A interpretação institucionalista, nesse caso, não se sustenta frente aos fatos. Arretche (2013) chama a atenção de que no federalismo brasileiro não há impedimentos à iniciativa legislativa da União em nenhuma área relevante de políticas públicas. Além da centralização legislativa no governo federal, há ausência de múltiplos “pontos de vetos a serem enfrentados por quem pretende aprovar reformas” (ARRETCHE, 2013, p. 55).

“A população do Nordeste é desproporcionalmente pobre, negra e rural” (PLANK, 2001, p. 169). Em concordância com Plank, Hasenbalg (2003, p. 32) afirma que “a cara da pobreza no Brasil é predominantemente nordestina e não-branca, atingindo grande número de trabalhadores rurais e de baixa educação”. Sob o prisma racial, os indicadores sociais revelam discrepâncias colossais. No entanto, até muito recentemente os dados estatísticos com base na variável raça/cor eram solenemente ignorados, quando não

classificados como irrelevantes.130 O debate público sobre as desigualdades de raça e gênero permaneceu por muito tempo invisível (PLANK, Ibid.).

As desigualdades regionais escondem disparidades raciais. As regiões menos desenvolvidas econômica e socialmente, que correspondem aos 19 Estados mais ao norte, são aquelas com maior proporção de não-brancos. E os sete Estados mais ao sul (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), os mais desenvolvidos, são aqueles de populações majoritariamente brancas. No Brasil, há uma justaposição entre desenvolvimento humano e composição racial (TELLES, 2012).

Com exceção de Minas Gerais, onde os brancos formam uma maioria apertada (51%), e do Espírito Santo, onde os brancos são minoria também apertada (48%), todos os estados com população predominantemente branca são mais desenvolvidos, enquanto os estados com população predominantemente não-branca possuem baixos índices de desenvolvimento humano. Portanto, os brancos são privilegiados por sua localização nas regiões Sul e Sudeste, enquanto os negros e pardos tendem a residir nas regiões socialmente menos desenvolvidas do Brasil (TELLES, 2012, p. 16).

Os indicadores sociais e econômicos revelam que a orientação universalista das políticas sociais e as políticas de desenvolvimento regional são incapazes de identificar o motor produtor das desigualdades no Brasil. Pelo contrário, é crível supor que a perspectiva universalista das políticas públicas, ao invisibilizar desigualdades raciais, acaba por agravá-las e, por conseguinte, as desigualdades regionais.

Em 2003, o governo federal lançou a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003). Pela primeira vez, uma política pública trazia no seu rótulo o termo racial, desta vez não para excluir, impedir ou barrar o progresso social e econômico de algum grupo étnico-racial, pelo contrário, a ideia era de promoção efetiva da igualdade entre os brasileiros.

Qual o desenho dessa política? Quais temas e áreas são abrangidos por ela? De que maneira a variável federalismo impacta nesse tipo de política? Qual o grau de adesão das unidades subnacionais à política? Qual o papel desempenhado pelo Movimento Negro na configuração da política? Enfim, o que podemos aprender com as experiências municipais nesse tipo de política? Essas e outras questões serão abordadas na próxima seção, na qual aduzo o desenho da política e discuto algumas experiências municipais de implementação da política de promoção da igualdade racial.