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Capítulo 2 A Política Racial no Brasil: da eugenia a políticas de promoção da

3.2 República e Federalismo no Brasil

3.2.2 Relações intergovernamentais e coordenação federativa

Em Estados federativos, qualquer nível de governo pode implementar políticas e programas sociais (ARRETCHE, 2000). Entretanto, dessa assertiva não se pode derivar o argumento de que “a autoridade política de cada nível de governo é soberana e independente das demais” (ARRETCHE, 2000, p. 47). Autonomia e soberania são coisas distintas.

A ideia de soberania das unidades subnacionais é contestada por autores do campo das Ciências Jurídicas (CABRAL, 2015; ANSELMO, 2006; SILVA, J., 2004). A União corporifica a reunião indissolúvel dos Estados-membros, e no caso brasileiro acrescente-se o Distrito Federal e os Municípios. Portanto, a autonomia dos entes federativos não se confunde com soberania, que não é um atributo dos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

Quando da criação da estrutura federativa brasileira (1891), as províncias foram transformadas em Estados-membros. Logo, não cederam à sua soberania, pois já eram partes integrantes de uma estrutura unitária. Todavia, renunciaram à possibilidade de conquistá-la ao aceitarem a soberania nacional do Estado federal e autonomia a ele atribuída (ANSELMO, 2006). Costa (2010, p. 730) é conclusivo:

Um Estado organizado constitucionalmente sob um regime federativo, isto é, que reconhece duas ou mais esferas de poder político – com graus diferenciados de autonomia – dentro de um mesmo espaço territorial, cujo monopólio da coerção legítima, portanto a soberania, é exercido por um único corpo político: o governo federal.

Nesse sentido, Estados-membros e Municípios não são entes soberanos.126 Entretanto, a autonomia das unidades federativas é exercida na capacidade de auto- organização, autoadministração e autolegislação. No federalismo brasileiro, governadores e prefeitos são detentores de autoridade política autônoma, que é exercida nas suas respectivas circunscrições, porém Estados e Municípios não são entes soberanos.127

Assim, ao definir que as políticas sociais são competências comuns aos entes federativos, a Constituição de 1988 desobrigou o nível de governo menos abrangente de executar políticas sociais formuladas pelo nível de governo mais abrangente. Os governos locais têm a prerrogativa de aderir ou não a políticas do governo federal. Aqueles podem, portanto, definir suas próprias agendas sociais. No entanto, o “problema é que dificilmente um Estado ou Município pode realizar políticas consistentes em qualquer dessas áreas [políticas sociais] sem o apoio ou a concordância do governo federal”(COSTA, 2007, p. 218).

Em uma estrutura federativa, espera-se que a União desempenhe as funções de coordenação das políticas sociais em todo o território nacional, no sentido de equalizá-las, bem como atuar na correção das distorções e desigualdades na capacidade de gastos e de gestão dos governos subnacionais (ARRETCHE, 2004). Espera-se, ainda, que ela atue como agente indutor de objetivos nacionais e no estabelecimento de critérios homogêneos de qualidade na provisão de serviços sociais públicos, em conformidade com dois dos quatro princípios básicos do federalismo: subsidiariedade e equidade federativa (Cf. COSTA, 2010).

O desempenho da função coordenativa das políticas sociais depende do grau de autoridade política acumulado pelo governo federal. Arretche (2004) assevera que o grau de autoridade política difere entre os Estados federativos. Essa autoridade oscila conforme a área da política. Assim, quanto maior o grau de autoridade política, maior a capacidade coordenativa do governo federal.

O sistema partidário também pode funcionar como um mecanismo de coordenação de políticas, regulando inclusive as relações intergovernamentais. Partidos políticos nacionais com certo grau de centralização poderiam exercer esse papel. Entretanto, a fragmentação do sistema partidário brasileiro, aliada à inconsistência das bases partidárias de apoio ao governo federal e à ausência de estruturas partidárias centralizadas, impede que os partidos políticos cumpram essa função (ARRETCHE, 2004; COSTA, 2007).

126 Anselmo (2006, p. 47) descreve os atributos da soberania. “Soberania dura enquanto o Estado existir como

pessoa jurídica de direito público internacional” (Id., Ibid., p. 48). Para Silva, J. (2004, p. 101): "o Município é um componente da federação, mas não entidade federativa".

Considerando as características do federalismo brasileiro e do sistema político- partidário, Costa (2007, p. 218) afirma:

As relações intergovernamentais no Brasil dependem muito da disposição dos governos em cooperar, mas principalmente da capacidade e do interesse do governo federal em estimular ou impor regras e programas que impliquem alguma forma de coordenação entre as atividades de estados e municípios.

A autoridade política de uma instância de governo refere-se ao seu poder de definir as normas de funcionamento de uma política – poder regulamentador – e as regras de financiamento, quando é o principal financiador. A concentração de autoridade política variará conforme a natureza da política em questão e segundo as relações intergovernamentais firmadas em cada setor específico da política social (ARRETCHE, 2004).

O maior ou menor grau de liberdade no exercício da função coordenativa do governo federal decorreu em grande medida do formato organizacional e da estrutura de financiamento herdados por cada política social específica do regime militar (ARRETCHE, 2004). Como salienta essa autora, a Constituição Federal de 1988 não modificou o arcabouço institucional de gestão das políticas sociais, que foram delineadas na ditadura Vargas (Estado Novo) e consolidadas na ditadura militar. O novo regime recepcionou os formatos institucionais e de gestão das políticas sociais do regime ditatorial.

Arretche (2004) sugere que a forma de repartição dos encargos das políticas sociais entre os níveis governamentais deve-se mais ao modelo em que as políticas foram organizadas historicamente e menos como decorrência das definições constitucionais. Assim, é preciso mirar para cada política específica para compreender o seu formato institucional e os seus mecanismos de funcionamento.

Na esteira do sucesso do Plano Real, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, é eleito presidente da República. Sustentado politicamente por uma ampla e heterogênea coalizão de partidos políticos (COSTA, 2010), o novo governo federal iniciou um programa de reformas que, entre outros objetivos, regulamentava as relações intergovernamentais deixadas em aberto pela Constituição de 1988.128

Como efeito da estabilização macroeconômica, o governo federal retoma sua capacidade de coordenação federativa nas políticas públicas, cujas iniciativas e ações promoveram modificações significativas nas relações intergovernamentais, com destaque para a relação direta da União para com os Municípios sem a intermediação dos Estados.

Nas gestões do presidente FHC (1995-2002), o governo federal imprimiu novo ritmo à descentralização administrativa. No processo de aprendizagem institucional em políticas públicas - policy-oriented learning -, nos termos de Sabatier e Jenkins-Smith (1999), a burocracia federal formulou políticas e programas, cujos desenhos institucionais continham uma estrutura de incentivos atraente para obter a adesão dos governos locais ao projeto de descentralização do Sistema de Proteção Social Brasileiro (ARRETCHE, 2000, 2002).

O processo de descentralização administrativa das políticas sociais não ocorreu de maneira homogênea e simultânea. Pelo contrário, esse processo deu-se em ritmos, alcances e resultados bastante distintos entre as diferentes políticas e entre as unidades subnacionais (ARRETCHE, 1999, 2000). Essa autora explica as diferenças observadas conforme a combinação de três ordens de fatores: a) institucionais; b) estruturais; c) ação política.129 O importante a reter é que é preciso mirar o desenho institucional de cada política (legado das políticas, as regras constitucionais que normatizam a oferta de bens e serviços públicos e a engenharia operacional inerente à sua prestação); a presença/ausência de capacidades técnicas e administrativas das unidades subnacionais (desigualdades verticais e horizontais entre os entes federativos); a iniciativa política do governo federal em descentralizar determinada política; e a disposição dos governos locais de assumir a gestão de políticas no nível local. Esses fatores variam para cada tipo de política social (ARRETCHE, 1999). Essas variáveis serão acionadas quando da discussão acerca da formulação e implementação da PNPIR e seus desdobramentos no plano municipal.

A descentralização administrativa das políticas sociais é um processo marcado pela heterogeneidade e desigualdade. Arretche (2000) argumenta que a descentralização das políticas sociais não é um mero reflexo da descentralização fiscal nem das imposições constitucionais. Sugere que é preciso observar “a natureza da política, o legado das políticas prévias, as regras constitucionais e a existência de uma estratégia eficientemente desenhada e implementada por parte de um nível de governo mais abrangente (...)” (Id, Ibidem, p. 53). Ou seja, a área da política condiciona a forma e os mecanismos empregados para promover a descentralização. Esta foi bem-sucedida nas políticas sociais e nas unidades subnacionais em que “a ação política deliberada operou de modo eficiente” (ARRETCHE, 1999, p. 112).

Ao analisar as três políticas sociais de caráter universalista, Arretche (2000) demonstra que as relações intergovernamentais, a capacidade de coordenação e os instrumentos utilizados pelo governo federal para promover a adesão a cada uma das políticas

diferem bastante entre as políticas e entre os entes federativos. O processo de descentralização é multicausal com a confluência de fatores institucionais, estruturais e de ação política.

No caso da política de saúde, uma estrutura centralizada, na qual o governo federal, identificado no Ministério da Saúde, é o formulador e financiador da política nacional do setor saúde, concentrando autoridade política suficiente para atuar como o principal coordenador do sistema nacional de saúde. Isso significa que “o governo federal dispõe de recursos institucionais para influenciar as escolhas dos governos locais, afetando sua agenda de governo” (ARRETCHE, 2004, p. 22). A coordenação do sistema é exercida via Portarias Ministeriais e Normas Operacionais Básicas (NOB).

Na área da assistência social, a Constituição de 1988 promoveu mudanças radicais nas regras de funcionamento dos serviços assistenciais e preconizava uma divisão de atribuições mais precisas entre as três esferas de governo (ARRETCHE, 2000). Segundo essa autora, a taxa nacional de adesão dos Municípios ao programa federal de municipalização da assistência social era baixa. Contudo, com variação entre os Estados. Aqueles com graus mais elevados de adesão eram os que tinham “políticas estaduais ativas” de formação e qualificação dos Municípios como gestores das suas políticas de assistência social, anterior ao início do programa federal de municipalização (ARRETCHE, op. cit. p. 194), bem como uma convergência entre as agências federais e estaduais no que tange à municipalização da política de assistência social. Conclui que a existência de um legado institucional de políticas prévias favoreceu a municipalização, dado que reduziu as incertezas quanto aos custos a serem arcados pelos Municípios.

No primeiro governo Lula da Silva foi aprovada uma nova Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004), com a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS), e erigido o Sistema Único de Assistência Social (SUAS/2005), que ampliou as ações do setor, com ênfase na intersetorialidade, em um sistema descentralizado e participativo (cf. MENDOSA, 2012).

No campo da educação, a Constituição Federal estabeleceu que o ensino fundamental fosse ofertado preferencialmente pelos Municípios. Posteriormente, incorporou também a esse ente, a obrigatoriedade da educação infantil. Estados e Municípios devem investir 25% das receitas tributárias em educação. O governo federal exerce a função supletiva, financiando programas como o de transporte escolar, construção de escolas, merenda escolar e fornecimento de livros didáticos, entre outros, além do estabelecimento do currículo nacional mínimo. Na realidade, o Ministério da Educação conta com “recursos

institucionais bem mais limitados para coordenar a adoção de objetivos nacionais de política” (ARRETCHE, 2004, p. 24).

Sem os recursos institucionais disponíveis similares ao do Ministério da Saúde para promover a adesão dos governos das unidades subnacionais a objetivos nacionais do setor, o governo federal adotou a estratégia de reformar a Constituição. A aprovação da Emenda Constitucional nº 14/1996 promoveu uma minirreforma tributária de âmbito estadual, modificou as relações intergovernamentais e influenciou fortemente a decisão dos prefeitos por municipalizar a oferta de educação fundamental (ARRETCHE, 2004; VAZQUEZ, 2003).

A experiência da aprovação da Emenda do Fundef e de outras Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) revela que, frente à impossibilidade de modificar ou produzir uma legislação infraconstitucional, o governo federal aciona o seu poder de alterar na Constituição tópicos que afetam a autonomia e a competência de Estados e Municípios, modificando as relações intergovernamentais.

Isso é possível, como argumenta Arretche (2013), dado o extenso poder legislativo da União e o elevado custo de veto por parte dos governos subnacionais. Associado à dimensão institucional, há ainda o aspecto político-partidário. No Senado (palco dos assuntos federativos e uma arena de veto), as votações obedecem ao critério de disciplina partidária frente à ideia de coesão das bancadas estaduais e regionais. Assim, a União pode impor suas preferências ao exercer o poder de legislar sobre diversas políticas que são executadas de maneira descentralizada por Estados e Municípios.

Nos dois governos FHC, entre 1995 e junho de 2002, foram aprovadas 34 emendas constitucionais, 15 delas referentes a questões federativas (ABRUCIO, 2005). De acordo com o levantamento realizado por Arretche (2013), no período de 1994 a 2011 a Constituição Federal recebeu setenta emendas, das quais 28 referiam-se a matérias de natureza federativa. Para o período analisado, a taxa anual de emendamento é de 4,1. Nos assuntos de interesse federativo, a taxa anual é de 1,6. No período de vinte anos (1989 a 2008), 60% das PECs que tramitaram no Congresso Nacional versavam sobre assuntos de interesse federativo.

No Brasil, como o Senado opera em termos partidários, e não segundo interesses regionais (coesão das bancadas), os partidos políticos atuam como inibidores das tendências limitadoras do federalismo, favorecendo a autoridade do governo central (ARRETCHE, 2013). Desse modo, a maior ou menor iniciativa do governo federal de produzir modificações na Constituição depende do nível de governança que a União detém sobre cada política.

Assim, o argumento de Arretche de que o tipo e a estrutura da política condicionam o processo de implementação mostra-se bastante robusto.