• Nenhum resultado encontrado

2.2.4 “Acumular tesouros no céu”: a esperança que nos abre a Deus e ao próximo

2.2.5. O verdadeiro tesouro

2.2.5.4. A posse de Deus, o Sumo Bem

Cristo dá-Se a nós, quando somos capazes de partilhar o que temos e somos. Assim, possuímos o próprio Cristo, quando nos abrimos a Ele e O acolhemos no nosso coração, vivendo a caridade cristã da partilha.

No Sermão 107 A, Agostinho usa nove vezes o verbo “encher”589, em várias formas. Depois de falar de Zaqueu, que deu os seus bens e os restituiu àqueles a quem prejudicou, vai aprofundar o tema do esvaziamento material. Pois só esvaziando-nos da cobiça de possuir bens materiais é que poderemos centrar-nos em Deus, que Se faz próximo do homem590.

Agostinho exorta os seus ouvintes ao desprendimento dos bens materiais, dizendo: “Reconhece e ama quem te criou, e Ele encher-te-á, não de alguma coisa sua, mas de Si próprio. Possuirás Deus e ficarás cheio d’Ele”591. Nestas duas frases vemos, de modo muito acentuado, a dimensão espiritual do despreendimento. O homem é chamado a dirigir o olhar para Deus, porque Ele é, em primeiro lugar, o seu criador. Deus, porém, não nos criou nem nos abandonou, mas continua a agir na história humana, e continua a dar ao homem o que melhor poderia dar, ou seja, dá-se Ele mesmo continuamente a nós. Com esta convicção, Agostinho diz que Deus enche-nos d’Ele próprio. Para tal, o homem tem de, em primeiro lugar, viver desprendido de bens materiais para acolhê-l’O em si. Na segunda parte da frase acima citada, Agostinho diz “E Ele encher-te-á592”. Daqui podemos intuir que Deus nos enche totalmente e que, quando O possuímos verdadeiramente em nós, viveremos desprendidos dos bens materiais, porque viveremos cheios de Deus e não teremos necessidade de mais nada.

589 O verbo impleo aparece 9 vezes, das seguintes formas: 4 vezes na forma implebo e 1 vez respetivamente nas formas implebis, impleri, impleturus, impleam, implebit. Depois de usar estas formas verbais ao longo do seu discurso, Agostinho usa a expressão Deo plenus eris para definir o estado do homem quando fica cheio de Deus. 590 Cf. s. 107 A, 3 (CNE 30/2, 342).

591 s. 107 A, 3: “Agnosce et ama qui fecit te, et implebit te, non de aliquo suo, sed de se. Deum habebis, Deo plenus eris” (CNE 30/2, 342).

Para o Hiponense, os bens de que o corpo tem necessidade são supérfluos, porque o corpo não precisa de muitos bens. Ao contrário, tudo o que são riquezas para a alma, não são supérfluas. A piedade, a caridade, a justiça e a castidade, que Deus nos dá de si próprio, são bens necessários e não são supérfluos. Todas as riquezas que estão no interior do homem são grandes, porque são o próprio Deus593.

Ao homem deve bastar possuir Deus. O homem, quando tem Deus, não tem necessidade de mais nada. A confiança em Deus é uma virtude que permite ao homem esperar, louvar e acreditar num Deus que lhe dará o necessário. A prioridade do homem é procurar o Reino de Deus e a justiça de Deus, e o restante será acréscimo ao que é necessário em primeiro lugar (cf. Mt 6, 33). Deus conhece-nos e sabe do que precisamos, mesmo antes de o pedirmos. Portanto, a posse de Deus é o suficiente para a vida do homem, como bem explica Agostinho na sua pregação594.

Concluindo, ao longo de todo este estudo sobre o “verdadeiro tesouro” verificámos várias vezes que o maior tesouro é Deus595. Este dá-Se ao homem, enchendo-o de bens espirituais e, depois da sua morte, dar-lhe-á uma morada eterna.

Agostinho pregou com o intuito de fazer com que os homens olhassem para Deus, presente no interior de cada um, para viverem dos bens que Deus lhes dá. Tudo o que existe é obra da criação de Deus, para que o usemos com reta intenção. A piedade e a confiança em Deus permitem-nos assimilar esta realidade que orienta e inspira o modo de olharmos para os bens.

Deus é o Bem, do qual emergem todos os outros bens596. O que dizemos de bens, quer sejam materiais ou espirituais, são bens porque têm origem no Criador que é Bom. Este bem

593 Cf. s. 107 A, 3 (CNE 30/2, 342). 594 Cf. s. 107 A, 5 (CNE 30/2, 344).

595 Falando de Deus como Bem dos bens, notamos uma tónica de platonismo, a que os autores, comentadores de Agostinho, chamam de platonismo cristão. Deus é o Bem, no qual reside a perfeição. Este é o Sumo Bem do homem, e todos os seres estão ordenados para Ele. O homem é bem-aventurado, quando vive em gozo n`Ele. O homem deve amar esse Bem por si mesmo, e não em vista de um outro, porque esse bem é a finalidade do homem. Pela participação e iluminação no Sumo Bem, a alma encontra o maior gozo. A alma é mutável, e deve procurar o que, pela natureza, é mais perfeito do que ela, ou seja, Deus imutável: cf. RAMOS, Francisco Manfredo Tomás, A Ideia de Estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho, 52.

nunca deixa de ser Bom597. Com todos os bens que tem ao dispor, o homem deve procurar a sua origem num Bem que torna os bens bons. O homem não se tornará bom, se não encontrar esse Bem. É esse Bem, que habita no coração do homem, que o torna bom. O homem não pode ser dito bom, sem se considerar a sua origem em Deus. Quanto à receção desse Bem, não o recebemos contra a nossa vontade. O homem tem de se abrir a esse Bem, que Se dá a nós para habitar no nosso coração598.

596 Contra os maniqueus, Agostinho escreveu uma obra que nos ajuda a perceber que Deus é o Sumo Bem, supremo e imutável, do qual procedem todos bens espirituais e corporais: cf. Nat. b. 3 (PL 42, 553).

597 No conceito de “bondade” está incluído o conceito de ordem em dois sentidos: 1) em sentido ontológico o ente não é corruptível e está ordenado em si mesmo; 2) em sentido metafísico, existe uma ordem de existência, na qual o ente deve respeitar o seu lugar. O homem está sujeito a estas duas ordens, porque deve manter-se ordenado em respeito a si mesmo e em relação com as coisas exteriores: cf. VECCHI, Alberto, “Il problema agostiniano dell`azione”, 559. A alma racional deve respeitar a ordem dos seres e não poderá tornar-se justa, salva, sábia e bem-aventurada, se não participar no Bem imutável, amando-O: cf. ep. 140, 23, 56 (CNE 22, 268). 598 Cf. s. 72, 5, 6 (CNE 30/1, 462).

Capítulo III