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Da Palavra à ação

3.2. Fundamentos teológicos

3.2.5. O mandamento do Amor

3.2.5.2. Caridade ordenada

Na procura do Bem Supremo, o homem põe o amor ao mundo em segundo plano, privilegiando o amor a esse Bem. Este é o “fio condutor que unifica este pôr ordem, esta hierarquização do mundo dos objetos disponíveis”723. O olhar sobre o mundo é feito a partir do bem que se quer alcançar, e cada criatura é amada com o amor que lhe pertence724.

Nesta ordem existe o supra nos (o Bem mais elevado acima de nós), o nos (nós), o

iuxta nos (ao lado de nós), o proximus (o próximo, que está ao mesmo nível que nós) e o infra nos (abaixo de nós, como é o corpo). O amor ordenado orienta o mundo consoante o próprio

eu, numa experiência feita em sociedade com aqueles (proximi) que podem alcançar a beatitude. Nesta sequência do amor ordenado, o outro surge ao lado do “eu”, porque o “eu” deve amar o próximo como a si mesmo e porque ambos pretendem fruir de Deus. A relação de próximo não resulta da relação como amigo ou inimigo, mas da relação de frontalidade com Deus.

A relação entre os homens é de uso (uti), não porque o outro seja um instrumento para atingir Deus, pois o termo (uti) indica a relativização da ordem que preexiste ao amor. O

722 Cf. Mor. 1, 26, 48-51 (PL 32, 1331); GALINDO RODRIGO, José Antonio, “San Agustín y K. Rahner: El amor a Dios y el amor al prójimo”, Augustinus 135-136 (1989) 311-313.

723 ARENDT, Hannah, O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica, 40. 724 Cf. ARENDT, Hannah, O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica, 43.

homem olha para o futuro e ordena o presente como se vivesse fora do mundo, porém como seu ordenador725.

Para Agostinho, a usura é o contrário da caridade, enquanto forma de exploração dos mais fracos. Esta prática, presente na diocese de Hipona, oprimia os pequenos campesinos, que, apesar de trabalharem de sol a sol nas terras dos seus senhorios, viviam na pobreza726.

A teoria do frui e uti727, fundamental para compreender a forma de se relacionar com os bens, está intimamente ligada à doutrina do amor ordenado. O homem deve saber distinguir aquilo que é um meio para atingir um fim, aquilo que deve ser amado em primeiro lugar728, e aquilo que serve para atingir esse primeiro amor. Existe uma escala de amores a ser respeitada, para que seja possível viver segundo um amor ordenado, que contribua para o bem comum da sociedade e, ao mesmo tempo, para a procura do Bem dos bens. O homem tem o desejo de alcançar a plenitude, e para isso deverá amar e desejar fruir729 o que é pleno. No entanto, deverá desapegar-se do que não é pleno e é inferior ao Bem pleno, limitando-se a usá-los como meios para atingir Deus730.

Esta doutrina das riquezas centra-se no uso reto dos bens, e está ligada à noção de ordem. O reto uso dos bens segundo a sua finalidade é o mesmo que dizer o uso ordenado dos bens como instrumentos para atingir uma finalidade731. O objetivo é a fruição do que nos faz felizes, enquanto o que usamos é instrumento para chegar a essa felicidade. Neste contexto, a caridade relaciona-se com o mundo, sendo este um meio para alcançar o fim da caridade, ou

725 Cf. ARENDT, Hannah, O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica, 42-44. 726 Cf. CAMPELO, Moisés Mª., “San Agustín: las bienaventuranzas”, 218.

727 Cf. s. 61, 10, 11 (CNE 30/1, 238-240).

728 O primeiro vício da alma da criatura racional é a vontade de ir contra a sua e íntima verdade. Este vício orientou a desobediência de Adão, e fê-lo passar dos bens eternos aos finitos, da abundância à escassez, da firmeza à fraqueza, do Sumo Bem ao ínfimo. O mal não está nas criaturas, mas na voluntária precipitação e na superstição de servir as criaturas, em vez de servir o Criador. Este vício só será vencido, quando a alma reconhecer o Criador e se submeter a Ele, vendo que todas as coisas estão dependentes d`Ele e por Ele: cf. Vera rel. 20, 38-40 (CC 32, 210-211). O pecado não é o desejo de naturezas más, mas o abandono de outras melhores e mais perfeitas: cf. Nat. b. 34 (PL 42, 562-563).

729 A relação com Deus na vida eterna é de fruição estável e tranquila. O amor é a tensão dirigida para este fruir, que é também beatitude. Esta é a verdadeira realização humana, onde o homem está “perto-de”, do objeto desejado e amado: cf. ARENDT, Hannah, O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica, 35-36.

730 NORIEGA FERNÁNDEZ, Roberto, “San Agustín, inspirador de los voluntarios”, 712-713. 731 BRAVO, Restituto Sierra, El mensaje social de los padres de la Iglesia, 435.

seja, chegar a Deus732. A caridade ordenada reflete-se num uso e num fruir justos. Além disso, há que fazer referência ao medo relacionado com a caridade, pois existe no homem o medo de perder aquilo para que tende733.

As criaturas devem ser amadas unicamente como meio de alcançar a Deus. Deus deve ser amado por Si mesmo para gozo da nossa alma n`Ele. Se trocarmos esta ordem, teremos o amor desordenado, mas, se respeitarmos esta ordem, teremos a caritas734. No De Trinitate, Agostinho reafirma que não é um mal amar as criaturas; esse amor deve, porém, ser orientado para Deus, transformando-o em caridade. O gozo de nós mesmos e dos outros não é contrário à caridade, se realizado em Deus735. Este gozo dos outros funda-se em Deus e tende para Ele. Em suma, podemos afirmar que o princípio agostiniano do amor ordenado é dito a partir do amor às criaturas736, (um amor uti) que se eleva no desejo permanente de chegar a Deus (ao amor frui).

As noções de frui e uti estão ligadas às noções de vício e virtude. O vício é querer gozar as coisas que devem ser usadas. Por sua vez, a virtude é usar as coisas que devem ser usadas e gozar as que devem ser gozadas. A noção de uso está ligada à de necessidade, pois os bens materiais devem ser usados consoante as necessidades humanas. Tudo o que não é necessário é supérfluo, porque ultrapassa os limites da necessidade e da finalidade do seu uso737. Desta doutrina vem a insistência agostiniana de partilhar o supérfluo com os que necessitam738.

732 Nas Confissões, Agostinho diz que, se nos agradarem os corpos, devemos louvar a Deus por eles e orientar o nosso amor para o Criador. Se as almas nos agradarem, devemos amá-las em Deus, porque só em Deus é que as almas imutáveis encontrarão a estabilidade. Deus não abandonou o que criou, mas permanece no nosso interior, no nosso coração, e o homem, que pelo pecado se afastou de Deus, deve voltar-se para Deus e amá-lo a partir do Seu amor, que já está no nosso interior. Neste sentido, a caridade ordenada é viver o amor desta forma, porque em Deus encontraremos a verdadeira Vida. A caridade desordenada resulta do substituir a adoração e o serviço a Deus pelas criaturas: cf. Conf. 4, 12, 18 (CC 27, 49-50); Conf. 5, 3, 5 (CC 27, 59).

733 Cf. ARENDT, Hannah, O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, 37.

734 Cf. GALINDO RODRIGO, “El amor cristiano en su perspetiva de gratuidad según San Agustín”, 300. 735 Cf. Trin. 9, 8, 13: (CC 50, 304-305).

736 Cf. s. 84, 1 (CNE 30/1, 644).

737 Cf. s. 61, 11, 12 (CNE 30/1, 240-241).

O amor de Deus traz em Si uma forma de amar as criaturas, que Agostinho define através de uma graduação necessária. Para ele, existe em cada criatura um grau de amabilidade que devemos descobrir: primeiro, amar mais a Deus que aos Homens, para depois amar mais o outro que ao próprio corpo; segundo esta ordem, devemos amar a Deus por Ele mesmo e amar ao próximo por Deus. Isso não pode levar a um desprezo das criaturas, pois o desprezo da criação implica a depreciação do seu Criador739.

Do mandamento de amar o próximo nascem os deveres que regem uma sociedade, pois a caridade é a essência da paz e da ordem social perfeita740. A ordem, fundamental para obter a paz, é obtida através da tranquilidade entre coisas iguais e desiguais, colocadas cada qual no seu lugar.

A caridade, a paz, a virtude e a ordem definem a vida humana na terra, e relacionam- se reciprocamente. Todos os atos humanos estão relacionados com Deus, e nem todos os bens têm o mesmo valor. Todos os bens existem na relação de uns com os outros e segundo uma hierarquia. A vontade deve descobrir a ordem dos bens na Verdade741.