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1.2. A missão do bispo no século

1.2.1. Mediador civil

1.2.1.3. Audientia episcopalis

131 s. 340, 1: “Vobis enim sum episcopus, vobiscum sum christianus” (CNE 33, 994).

132 Como iremos ver no ponto seguinte, Agostinho põe em prática esta defesa dos mais frágeis, e condena os injustos através da Audientia episcopalis.

133 Cf. LANCEL, Serge, Saint Augustin, 365-381. 134 Cf. BROWN, Peter, Agustín de Hipona, 205. 135 Cf. BROWN, Peter, Agustín de Hipona, 208-209.

O “Édito” de Milão foi fundamental para a mudança da sociedade e a ampliação da presença da Igreja na esfera pública. O cristianismo podia agora consolidar-se como “religião verdadeira”, e a Igreja ganhar o reconhecimento como personalidade de direito público. Assim nasce uma nova forma de entender a relação entre Estado e Igreja, sendo a esta última reconhecida a competência de julgar assuntos civis136. Assim, o poder civil reconheceu oficialmente a “Audiência Episcopal” presidida pelo bispo. O Codex Theodosianus137 confirmou a possibilidade de submeter à jurisdição do bispo as causas de direito civil. Constantino, nas Const. Sirmond, prevê a possibilidade de o bispo julgar todas as espécies de litígios e de a sua sentença ser definitiva, sem direito a recurso, cabendo ao poder civil garantir o cumprimento da sentença dada138. Tal amplitude de poderes levou mesmo o poder imperial a sentir a necessidade de limitar o poder dos bispos, como farão os imperadores Graciano em 376, Arcádio em 398, Honório em 408 e Valentiniano III em 452139.

Umas das funções do bispo era servir de juiz no tribunal que presidia. O papel destes tribunais era resolver os mais diversos problemas, desde pequenas disputas familiares, por razões de heranças e tutelas, até aos problemas mais dramáticos, como eram os casos de rapto, venda de crianças e outros problemas. O bispo tinha a preocupação de exercer da forma mais justa o direito romano, e com imparcialidade140.

O bispo exercia a sua função de juiz como um pastor, que julga tendo por base a caridade cristã. O objetivo era conciliar e, assim, procurava mais a paz do que o julgamento estrito. Os julgamentos tinham de ser orientados pelas leis. Nos julgamentos em matéria civil

136 Cf. ANDRÉS, Jesús Tejedor, “San Agustín y la audiencia episcopalis”, 130-131.

137 Cf. SC 497; 531. O Codex Theodosianus é promulgado a 15 de Fevereiro de 438 e entra em vigor a 1 de Janeiro de 439 para todo o Império. Este documento é uma compilação de leis que surgiram entre os anos 312 e 437. É uma espécie de mosaico de normas que foram estabelecidos em diversos tempos, lugares e objetivos. As leis foram ganhando valores diferentes ao longo do tempo, distanciando-se do valor da sua primeira promulgação. Contudo, este Codex não contém todas as leis, porque algumas perderam-se e outras encontravam- se já obsoletas em 438. O Codex Theodosianus perdeu-se e temos acesso ao mesmo pela sua reconstrução a partir de várias fontes. As leis do Império por vezes demoravam a chegar a todo o Império ou a chegarem ao lugar onde deviam ser aplicadas. Isto causava alguma dificuldade de interpretação e Agostinho sentiu esta dificuldade: cf. DI BERARDINO, Angelo, “Roman Laws”. In ATA, 731-733.

138 Cf. MUNIER, Charles, “Audientia episcopalis”, 511-512. 139 Cf. MUNIER, Charles, “Audientia episcopalis”, 512.

havia que aplicar o direito romano. O bispo podia julgar os clérigos141 inferiores, assim como os presbíteros e diáconos142.

Poder-se-ia perguntar qual a formação de Agostinho em direito? Conhecia ele as leis e o direito romano? O historiador Henri-Irénée Marrou defende que Agostinho recebeu uma fraca formação jurídica. A formação em direito, cada vez mais relevante no Império Romano, estava reservada a uma certa elite do Império, pertencendo ao grupo das disciplinas que eram especializações. Assim, essa disciplina não era estudada pelo intelectual médio, mas pelos que queriam seguir a carreira legal ou da administração imperial143.

Alguns autores, como Pugliese, Nonnoi, Gaudemet, Lepelley e Rouge, afirmam que Agostinho tivera contacto com os estudos de direito. Desde os estudos secundários foi tendo contacto com os estudos jurídicos e adquirindo conhecimentos sobre a liberdade pessoal, sobre os processos judiciais e sobre a propriedade privada144.

Assim, é justo concluir que Agostinho teve uma formação jurídica “maior do que a que se considera comum, mas menor do que a que ele teria desejado para o exercício das suas funções”145. O domínio de todas as leis revelava-se complexo pelo elevado número das mesmas, aplicadas em todo o Império, como se pode comprovar pelo Codex Theodosianus146.

Os hiponenses acorriam a Agostinho para procurar soluções aos seus problemas, porque viam o seu bispo como um patronus, cuja função era proteger o povo, especialmente os pobres. Os pedidos eram tantos e tão diversos, que Agostinho teve de pedir que não o solicitassem, se o motivo da acusação fosse humilhante para as autoridades147.

No capítulo XIX da “Vida de Santo Agostinho”, o seu biógrafo, descreve-nos a atuação do santo no campo jurídico. É de realçar o facto de pessoas não cristãs também

141 Os Concílios africanos regularam a possibilidade de julgar os clérigos. Alguém que se sentisse lesado por um clérigo, podia apelar à autoridade eclesiástica, ou seja, ao bispo: cf. MUNIER, Charles, STEAD, G. Christopher, “Causa”. In AL I, 821-822.

142 Cf. MUNIER, Charles, “Audientia episcopalis”, 513.

143 Cf. MARROU, Henri-Irénée, Saint Augustin et la fin de la culture antique, Paris, Èdition E. de Boccard, 1958, 11-115

144 Cf. ANDRÉS, Jesús Tejedor, “San Agustín y la audiencia episcopalis”, 134. 145 ANDRÉS, Jesús Tejedor, “San Agustín y la audiencia episcopalis”, 135. 146 Cf. SC 497; SC 53.

recorrerem a ele. Agostinho ocupava grande parte do seu tempo a ajudar, a escutar e a resolver várias questões jurídicas. Em cada processo, que poderia demorar várias horas, escutava com atenção cada caso148.

No seu modo de proceder, Agostinho dava grande importância à questão espiritual, procurando instruir, quando tivesse oportunidade, na lei de Deus, e dar conselhos de vida eterna. Aos favorecidos pedia a devoção e a obediência cristã. Por sua vez, aos pecadores corrigia-os publicamente, como exemplo para que os outros temessem a Deus149.

O Doutor da Graça introduziu na prática jurídica o ideal evangélico. Tendo por base este ideal, opõe-se à tortura para obrigar o suspeito a dizer a verdade, e criticava a obrigação de jurar sobre os Evangelho, porque muitas vezes isso levava a um juramento falso150.

As sentenças do Hiponense eram matizadas de valores religiosos. As seções de julgamento faziam-se perto do altar, e Agostinho punha a mão na Sagrada Escritura. O temor em relação ao Juízo final contribuiu, em sentido positivo, para o exercício da sua autoridade. Este tema de fundo, acentuava o sentido da responsabilidade de cada um, pois no fim, perante Deus, seremos julgados pelos nossos pecados151.

Os bispos assumiram a proteção dos humildes152, de modo especial dos camponeses, que eram maltratados pelos proprietários. Apesar de os bispos não recusarem a escravatura em si mesma, os direitos dos senhores sobre os escravos e as leis jurídicas romanas, lutavam para se restituir a liberdade às crianças contratadas ou vítimas de razias153.

148 Cf. Vit. Aug.19 (PL 32, 49-50). 149 Cf. Vit. Aug.19 (PL 32, 29-50).

150 Cf. ANDRÉS, Jesús Tejedor, “San Agustín y la audencia episcopalis”, 135. 151 Cf. BROWN, Peter, Agustín de Hipona, 203-207.

152 Agostinho intervém em casos como o das crianças que são vendidas para trabalho escravo, porque os seus pais estavam na miséria. Em Hipona, quando um grupo de mulheres e de crianças foram raptados para serem levados para o Oriente, um grupo de cristãos e clérigos protestaram em favor da liberdade dessas mulheres e crianças. Depois desse facto, foi necessário que Agostinho escrevesse a Alípio, que estava em Roma, para que este mostrasse que os seus fiéis haviam lutado por algo que era justo: cf. DUVAL, Yvette, “L’Afrique: Aurélius et Augustin”, 811.