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Dar ao pobre é dar a Cristo, que nos devolverá em bens eternos

2.2.3. O uso dos bens como partilha ou devolução

2.2.3.1. Dar ao pobre é dar a Cristo, que nos devolverá em bens eternos

A prática da caridade tem uma grande marca espiritual, que, em Agostinho, tem sempre uma motivação teocêntrica e cristológica491. Nos Sermões 113 e 113 B, o Doutor da

491 O que moverá a acentuação da solidariedade em Agostinho é a caridade de Cristo e a presença d`Ele em cada homem, ideias já presentes na Sagrada Escritura, nos textos de 2 Col 5, 14-15 e de Mt 25, 31-47: cf. EGUIARTE, Enrique A., “San Agustín y los pobres de su tiempo”, 55. No livro das Confissões, Agostinho exprime esta ideia da ação humana realizada por meio do amor acolhido de Deus com a expressão: “Por amor do teu amor eu o faço”. Conf. 2, 1; Conf. 11, 1: “Amore amoris tui facio istuc” (CC 27, 18).

Graça relembra as obras de misericórdia presentes no texto de Mateus, e que terminam com o dito de Jesus: “O que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos é a Mim que o fazeis” (Mt 25, 40). Temos aqui o fundamento cristológico para a prática da caridade. Fazemos bem a Cristo, quando cuidamos dos que estão próximos de nós. As obras de misericórdia – vestir os nus, dar de comer aos famintos, dar pousada aos peregrinos, visitar os doentes e visitar os presos –, quando praticadas, são obras realizadas a Cristo492.

Esta afirmação evangélica, repetida por Agostinho, é um convite à responsabilidade social de todos, porque temos aqui uma identificação de Cristo com os pobres, com os últimos da sociedade. Quando Cristo Se identifica com estes, está a orientar o nosso olhar para uma realidade que pode passar despercebida ao olhar dos que vivem sem dificuldades económicas. Quem deseja verdadeiramente seguir a Cristo, obrigatoriamente terá de voltar-se para os pobres e para os problemas sociais, porque aí está Cristo, e foi nesse meio que o Evangelho, muitas vezes, colocou Jesus, a prestar auxílio, a aproximar-Se dos mais necessitados.

Com esta identificação cristológica em relação ao pobre, Agostinho evoca o exemplo do rico que despreza Lázaro e não lhe dá nada. O Hiponense salienta esta ideia fundamental, ao dizer na sua pregação que “dás a Cristo, quando dás ao pobre”493. Por conseguinte, cita ele o Salmo 41 para dizer: “Feliz de quem pensa no necessitado e no pobre” (Sl 41, 2). O rico não quis partilhar os seus bens e acabou por perder tudo, porque não os soube partilhar com o pobre. E perdeu também os bens e a felicidade. Como nos indica o Salmo 41, o homem será feliz, se partilhar os seus bens com o pobre, porque Deus irá recompensá-lo com a felicidade494. O rico perdeu os bens e a felicidade, porque não soube partilhar do muito que tinha. Depois, Agostinho lembra que Cristo é todo-poderoso e não perde nada do que Lhe

492 Cf. s. 113, 1 (CNE 30/2, 414). 493 s. 113 B, 4 (CNE 30/2, 456).

494 O tema da felicidade como desejo íntimo do homem é um tema que Agostinho está sempre a retomar nos seus escritos. Tal constatação torna-se, muitas vezes, a base e o início da sua argumentação para os mais variados temas. A filosofia procura a beata vita; os filósofos, porém, procuraram-na em vão, porque não souberam conjugar fé e razão, ou seja, não tiveram a verdadeira piedade para com Deus, que é Eteno e Verdade: cf. RAMOS, Francisco Manfredo Tomás, A Ideia de Estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho, 48-49.

damos; o que damos ao pobre não está perdido, mas será recebido por Cristo e guardado por Ele495.

No Sermão 86496, olhando para o futuro e para o Juízo, Agostinho acrescenta que o que é dado a Cristo, por meio dos pobres, será restituído. Cristo chama os credores, ou seja, aqueles que Lhe deram os bens, quando partilharam os mesmos com os pobres. Quando damos a Cristo, Ele “mais tarde te levará a juízo para te retribuir”497. Salientando esta ideia, Agostinho acrescenta que Jesus diz-nos: “O que lhes foi dado chegou até Mim (...) fui Eu que recebi, sou Eu que devolverei”498.

Aprofundando este tema, saliento a imagem do devedor e do credor, muito utilizada pelo Hiponense. Este coloca Cristo como devedor, e os homens como credores. Que é que isso significa? Não somos nós os devedores, e Cristo o nosso credor? O credor é aquele que empresta bens com o intuito de receber com juro o que emprestou. Nesta lógica, nós damos, ou, seguindo a lógica do credor, emprestamos a Cristo, quando cumprimos as obras de misericórdia. Depois, Cristo chama os seus credores para devolver-lhes com juros o que recebeu. Como iremos verificar mais à frente, Cristo devolverá com juros porque nos dará a vida eterna, que é um bem mais precioso.

Falando das bem-aventuranças, Agostinho diz o que Deus nos dá em troca pela vivência prática de cada uma delas. Assim, ele afirma que Cristo nos diz:

“Recebi a terra e darei o céu; recebi coisas temporais e darei coisas eternas; recebi pão e darei pão; recebi bebida e darei bebida; recebi hospitalidade e darei uma morada; estando doente, fui

495 Cf. s. 113 B, 4 (CNE 30/2, 456).

496 Ao longo deste trabalho, continuaremos a usar com muita frequência o Sermão 86 juntamente com o Sermão 85. Os Sermões 84, 85 e 86 são uma trilogia de comentário da passagem do jovem rico. Atendo-nos ao tema do nosso trabalho, faremos um maior número de referências dos Sermões 85 e 86. O Sermão 84 foca-se no versículo 17, sobretudo na frase “Se queres entrar na vida eterna” (Mt 19, 17). O Sermão 85 desenvolve a frase completa, que é: “Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos” (Mt 19, 17). Por sua vez, o Sermão 86 desenvolve a terceira resposta de Jesus ao jovem rico, ou seja, as palavras: “Vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres” (Mt 19, 21). Assim, o Sermão 85 acentua a dimensão do cumprimento dos mandamentos e o Sermão 86 desenvolve aprofundadamente a temática da esmola: cf. MANCA, Luigi, Il volto ambiguo della ricchezza, 44-45.

497 s. 86, 4, 4: “Ipse te convenit ultro, ut recipias” (CNE 30/2, 12).

visitado e darei a saúde; estando na prisão, foram ver-Me e darei a liberdade. O pão que destes aos meus pobres foi consumido; o pão que Eu vos hei-de dar, não só reconforta, como também não há-de faltar”499.

Na continuidade da imagem do credor e do devedor, o Hiponense acrescenta as referidas palavras que mostram Cristo como devedor a pagar a sua dívida ao credor. Verificamos que, tudo quanto o homem dá aos que estão à sua volta, ser-lhe-á retribuído de forma mais plena. Cristo não nos dá as mesmas coisas que Lhe demos por meio dos pobres, mas dar-nos-á coisas mais ricas, como a vida, o Céu, o pão que nunca acabará, uma morada eterna, a saúde e a liberdade. Assim, o homem, quando partilha, receberá depois do próprio Cristo “mais e melhor, (...) o que é eterno”500.

Daí que Agostinho exorte: “Partilha o pão nesta vida, e receberás pão na outra vida”501. Que pão receberemos na outra vida? Receberemos o próprio Cristo, porque nos ensina que Ele próprio é “pão vivo descido do céu” (Jo 6, 51). Agostinho lembra aos ricos que eles possuem riquezas, mas não possuem ainda a Cristo. Por esse motivo, o fundamento para a partilha é cristológico, isto é, quando alguém distribui o que tem pelos outros, receberá o que não tem, ou seja, o próprio Cristo, que Se entregou e continua a entregar-Se por nós502.

No Sermão 53 A, o Pastor de Hipona cita novamente a frase de Mt 25, 40, e introduz uma outra imagem de Cristo, que é a imagem paulina do corpo e da cabeça, em que nós somos os membros, e Cristo a cabeça. Todos somos membros de Cristo, e somos responsáveis uns pelos outros. Neste sentido, Agostinho exorta a que os membros partilhem entre si os bens. Os membros mais carregados com o peso503 dos bens devem partilhar com os outros. O

499 s. 86, 4, 5: “Terram accepi, coelum dabo; temporalia accepi, aeterna restituam; panem accepi, vitam dabo. Imo etiam hoc dicamus: panem accepi, panem dabo; potum accepi, potum dabo; hospitium accepi, domum dabo; aeger visitatus sum, salutem dabo; in carcere visus sum, libertatem dabo. Panis quem dedistis pauperibus meis, consumptus est; panis quem ego dabo, et reficit et non deficit” (CNE 30/2, 12).

500 s. 86, 5, 5: “Plus dabo, et melius dabo, et aeternum dabo” (CNE 30/2, 12). 501 s. 85, 4, 4: “Communica hic panem, et accipies ibi panem” (CNE 30/1, 652). 502 Cf. s. 85, 4. 4 (CNE 30/1, 652).

503 Com esta imagem das bagagens e do pobre que pode ajudar a carregar as bagagens, é evocada a imagem do bagageiro, que já vimos antes. Aliás, esse é o tema que Agostinho desenvolve logo depois de usar esta imagem do Corpo.

fundamento e a motivação para a partilha está no facto de todos sermos membros de Cristo e de sermos companheiros de viagem504.

Evocando, novamente, a imagem do Corpo de Cristo, o Doutor da Graça acrescenta que a fé leva-nos a agir de forma reta. E, mais, que devemos viver o amor a Deus de forma gratuita e que o amor ao próximo será benéfico. Assim, surge um novo fundamento para a partilha: o amor a Deus e ao próximo. É com esta fundamentação de amor que o homem deve dirigir-se a Deus e deve fazer boas obras. E, apoiando-se, novamente, nas bem-aventuranças, Agostinho volta a afirmar que amamos a Deus ao amar o nosso próximo, prestando-lhe a nossa assistência e ajuda505.

Para ajudar, não precisa ter muitos bens, ou ter os mesmos bens. Porque ninguém é tão pobre que não tenha algo para dar, nem tão rico que não precise de receber. A partilha de bens é para todos, como nos ensina no Sermão 91:

“Que cada um dê ao outro aquilo que tem, que distribua pelo pobre o que tiver a mais. Se um tiver dinheiro, que dê de comer ao pobre, que vista o nu, que edifique uma igreja, que do seu dinheiro faça o bem que puder. Se outro tem o dom do conselho, que oriente o próximo, que dissipe as trevas da dúvida com a luz da piedade. Se outro tiver formação doutrinária, que distribua da despensa do Senhor, que administre o alimento aos seus companheiros, que conforte os fiéis, faça retroceder os que erram, que procure os perdidos, que faça quanto puder. Até os pobres têm o que repartir. Um pode emprestar os seus pés a um coxo; outro pode oferecer a um cego os seus olhos como guias; outro pode visitar um enfermo; outro pode sepultar um morto”506.

504 Recordemos a temática do pobre e do rico, que se encontram nesta vida e que caminham juntos para Deus. Esta vida aparece nos Sermões como uma espécie de passagem para a vida eterna e, por essa razão, a vida presente é temporária e, sobretudo, de preparação para a outra, ou seja, para a vida eterna.

505 Cf. s. 91, 7, 9 (CNE 30/2, 128-130).

506 s. 91, 7, 9: “Inde unusquisque quod habet, praestet alteri; quidquid plus habet, largiatur inopi. Alius habet pecuniam: pascat pauperem, vestiat nudum, aedificet ecclesiam, operetur de pecunia quidquid boni potest. Alius habet consilium: regat proximum, pellat tenebras dubitationis luce pietatis. Alius habet doctrinam: eroget de cellario Domini, ministret conservis cibaria, confortet fideles, revocet errantes, quaeret perditos, quantum potest faciat. Est quod sibi erogent etiam pauperes: alius claudo pedes accommodet, alius caeco suos oculos duces praebeat, alius visitet infirmum, alius sepeliat mortuum” (CNE 30/2,128-130).

A pregação torna-se assim um apelo à responsabilidade social. Como sociedade, todos temos algo que podemos dar ao próximo. Não são só os ricos que têm a obrigação de partilhar os seus bens; os pobres também podem dar do que têm. Os ricos têm riquezas para praticar a caridade; o pobre, por sua vez, pode não ter riquezas, mas pode dar o seu tempo para visitar os doentes e ajudar os que são coxos e cegos.

A caridade não está pautada apenas pela doação de bens materiais ao próximo, mas também o conselho, a piedade e a formação são dons que nos devem fazer estar atentos ao próximo e ajudá-lo com conselhos, guiando-o na fé e na doutrina. Existem obras de misericórdia corporais e espirituais, que são o apoio para o homem integral, na sua dimensão corporal e espiritual507. Ambas as dimensões são necessárias para a vida do homem, e ninguém pode dizer que não precisa de bens espirituais, ou então que não precisa de bens materiais. Todos estes bens são necessários para uma vida humana integral e digna.